662 - O perigo das súmulas e teses de jurisprudência em matéria criminal

 

Thiago Baldani Gomes De Filippo [1] – Juiz de Direito

 

 

O Brasil, de tradição romano-germânica, assenta suas tradições jurídicas no civil law, sistema que não costuma se preocupar com a formação de uma jurisprudência estável e uniforme. Essa característica remete à Revolução Francesa, que empregava às Constituições uma natureza essencialmente política e entregava aos órgãos legislativos o papel exclusivo de interpretá-las. Repousava certa desconfiança sobre os juízes que, para que não decidissem consoante os interesses dos poderosos, tinham de se submeter integralmente à letra da lei, pretensamente clara o suficiente para não ser interpretada, mas sim, aplicada.[2]

        

Esse paradigma é absolutamente diverso da tradição dos países de common law, os quais, em sua concepção pura, não enxergavam o Direito como um dado, mas tendiam a reconhecê-lo a partir da identificação dos valores compartilhados em sociedade.[3] Nos Estados Unidos, apesar de não ser um país puro de common law,[4] a Revolução Americana (1776) pregava um pacto de paz e liberdade entre os homens, base do liberalismo contratual de Locke, e na crença de um direito superior, fundado no direito natural.[5] Por este motivo, historicamente, os juízes não se sentiam vinculados às leis do Parlamento, porque entendiam que a essência de suas decisões estava nesse direito superior, que deveria ser declarado a partir dos casos submetidos a julgamento, que revelariam os valores consagrados nas tradições e consciência do povo. Eis a importância dos tribunais do júri. O direito não é visto como um sistema científico, mas como algo que, paulatinamente, aponta os valores do povo a nortear a vida em sociedade. Com isto, é fácil perceber a necessidade de serem aplicadas as soluções já encontradas para os julgamentos de casos idênticos ou muito semelhantes. Nos EUA, sempre se sentiu a necessidade de que as decisões deveriam produzir efeitos em julgamentos futuras, mas isto somente passou a ser implementado no século XIX, com a edição dos primeiros periódicos de case laws.[6]

        

Ocorre que, muito mais recentemente, também em países de civil law, como o nosso, percebeu-se a insuficiência das leis como atos reguladores de todas as situações jurídicas relevantes. Isto se deveu, principalmente, à abertura do sistema gerado por um movimento conhecido por neoconstitucionalismo, que encontrou campo propício no Brasil com a promulgação da Constituição de 1988.[7] Basicamente, ele apresenta as seguintes características: (a) a normatização dos princípios; (b) a constitucionalização do Direito; (c) o protagonismo do Poder Judiciário.   

 

Por um lado, esses efeitos são benéficos e muito bem-vindos, porque implicam uma estreita vinculação entre o Direito e preceitos éticos, abrindo-se as portas para a realização da Justiça. Por outro lado, ele possui obviamente os seus reveses. Talvez, seu efeito mais nefasto seja a profunda insegurança jurídica que propicia, na medida em que: (1) a heterodoxia constitucional consagra inúmeros valores, por vezes contraditórios, conformando-se a diversas formas de pensamento, como expressão de seu regime democrático; (2) a expansão do controle de constitucionalidade, realizado não somente por via abstrata, mas também difusa, por todo e qualquer órgão judiciário, pode ensejar um decisionismo demagógico, que não confere a deferência necessária à capacidade deliberativa dos cidadãos e, por isso, revela uma faceta autoritária.[8]

        

Com o objetivo de encontrar remédios a essa segurança jurídica, o sistema jurídico brasileiro passou a reconhecer mecanismos para atingir certa estabilidade e uniformidade jurisprudencial. Essa tendência passou a ser fortemente evidenciada com a edição do Novo Código de Processo Civil. Destacam-se as súmulas, a inédita previsão do incidente de assunção de competência e as consequências dos julgamentos de casos repetitivos (por meio do incidente de resolução de demandas repetitivas e do julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos). Em todos os casos, haverá a produção de efeitos vinculantes aos demais órgãos jurisdicionais que lhe correlatos (arts. 926, 927, 928, 947, 1.050 e 1.053, todos do NCPC).

        

Esses mecanismos de uniformização de jurisprudência trazem impactos relevantes à jurisdição criminal, devido à aplicação subsidiária do CPC ao processo penal (art. 3o, do Código de Processo Penal). Portanto, existe um estímulo à edição de súmulas e teses de jurisprudência às questões de direito e processo penal, circunstância que, se por um lado pode ser celebrada pela redução da insegurança e da desigualdade na aplicação da lei penal, por outro lado esconde as suas armadilhas e os seus perigos.

        

O Novo CPC inaugurou o nosso sistema de precedentes.[9] Não que se diga que nos aproximamos do common law, porque a estruturação dos precedentes deles é absolutamente diferente da nossa.[10] O que ocorreu é que passamos a sentir a necessidade de uniformização de jurisprudência, algo que sempre esteve presente nos países de influência do common law. As súmulas e teses justificam-se no Brasil como mecanismos de fechamento de um sistema evidentemente aberto, mas elas não cumprirão adequadamente o seu papel se não colaborarem para a diminuição das incertezas.  Isto é particularmente sensível às questões criminais, porque cada caso apresenta as suas vicissitudes e particularidades, relevadas pelas dilações probatórias. No direito penal, não há como se falar em demandas de massa, como ocorre em algumas questões de direito tributário ou bancário, por hipótese.

        

Portanto, dois cuidados relevam-se absolutamente imprescindíveis. Um dirigido ao órgão jurisdicional encarregado da elaboração da súmula ou tese. O outro destinado aos seus intérpretes.

 

Quanto ao primeiro, o tribunal deve ter o cuidado extremo para que seus atos não apresentem conteúdos vagos, imprecisos, como as leis. Tomemos como exemplo a Súmula Vinculante 11 do Supremo Tribunal Federal: “Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato da prisão a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.” Que é “fundado receio”? O que define se haverá “perigo à integridade física”? Como visto, esta súmula foge à lógica do tudo-ou-nada de Dworkin,[11] por envolver expressões demasiadamente fluidas, próprias das leis, diferentemente de outras súmulas, que podem ser consideradas bons exemplos de técnica de redação, como as Súmulas 444 (“É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base”)  e a 269 (“É admissível a adoção do regime prisional semiaberto aos reincidentes condenados à pena igual ou inferior a quatro anos se favoráveis as circunstâncias judiciais”), ambas do Superior Tribunal de Justiça. Essas duas hipóteses não veiculam expressões vagas, e dificilmente haverá divergência quanto à incidência.

        

As teses de recursos repetitivos não ficam imunes a esse problema. Observemos aquela fixada pelo STF no Recurso Extraordinário  603.616: “A entrada forçada em domicílio só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados”. Ora, ninguém duvida que a invasão a domicílio no caso de flagrante delito se justifica diante de fundadas razões. Todavia, o STF perdeu uma excelente oportunidade para dizer o que entende por fundadas razões, expressão polissêmica, que encerra noção meramente retórica, incapaz de inibir práticas estatais abusivas. Poderia o STF, hipoteticamente, ter dito que só haveria fundadas razões quando os policiais vissem o crime ou ouvissem suas tratativas, ou gritos da vítima, por exemplo, encampando-se a teoria do open view do Direito dos EUA.[12]

        

Pois bem. O segundo alerta junge-se aos intérpretes. Ao analisarem uma súmula ou tese, eles deverão ter a máxima cautela para interpretarem-na de acordo com o contexto em que foram editadas. Importa o conjunto de julgamentos que possibilitaram a edição da súmula, ou o julgamento em particular que conduziu à edição da tese. Muitas vezes não bastará uma interpretação (ainda que adequada) do texto, se apartada do contexto. Um exemplo é sintomático. No julgamento do REsp 1.480.881-PI, o STF fixou a seguinte tese: “Para a caracterização do crime de estupro de vulnerável previsto no art. 217-A, caput, do Código Penal, basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos. O consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime.” Mediante uma interpretação pura da tese, parece não haver escapatória para a configuração do crime. Porém, apenas aparentemente este raciocínio é correto, porque, com vistas a repelir a tipicidade de condutas absolutamente inócuas a lesar o bem jurídico tutelado pela norma penal incriminadora,[13] o voto do próprio ministro relator salienta: “É de se admitir, no terreno do debate lateral, a possibilidade de que, em hipóteses muito excepcionais – como o do casal de namorados que mantém, desde a infância e adolescência de ambos, relacionamento amoroso, resultando em convivência estável após o rapaz completar 18 anos – em que, a depender das peculiaridades do caso, o direito penal não encontra solução proporcional para responder a situações que tais”. Portanto, apenas a leitura do contexto permite o abrandamento do aparente rigor da tese.

        

As questões criminais imbricam-se diretamente aos preceitos constitucionais e, consequentemente, relevam-se demasiadamente abertas ao influxo de valores, à medida que o jus libertatis é o valor que ancora todos os direitos de primeira dimensão.[14] Por isso, o estabelecimento de mecanismos de fechamento é tão precioso à jurisdição criminal. Um remédio aparente, se mal utilizado, porém, acabará por trazer inúmeros malefícios. Portanto, é imprescindível que as súmulas e teses sejam editadas e interpretadas com cautela extrema, com o fim de se alcançar uma tutela jurisdicional mais previsível, isonômica e justa.

 



[1] Doutorando em Direito Penal pela USP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University (EUA). Mestre em Ciência Jurídica pela UENP. Docente Formador da EPM. Juiz de Direito em São Paulo.

[2] MARINONI, Luiz Guilherme. A transformação do civil law e a oportunidade de um sistema precedentalista para o Brasil. Revista Jurídica. Porto Alegre: Notadez, 2009, pp. 25-26.

[3] FRIEDMAN, Lawrence M. Law in Amercia: a short history. Nova Iorque: A Modern Library, 2002, p. 8.

[4] O common law predomina dos EUA, mas neles há traços inegáveis de civil law, principalmente em direito de família nos estados em que foram possessões espanholas, como a Califórnia e o Texas, sem contar o Estado de Louisiana, que é puramente civil law (SOARES, Guido F.S. Common Law: introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 52).

[5] ROIG, Rafael de Asís et al. Los textos de las colônias de Norteamerica a lá Constitution. In: História de los derechos fundamentales. Madrid: Dykinson S.Z. Tomo II. Vol. II, p. 61.

[6] ZYWICKI, Todd J. The rise and fall of efficiency in the Common Law: a supply-side analysis. Northwestern Law Review, n. 97, 2003, p. 1551-1592, p. 1571.

[7] O neoconstitucionalismo surgiu como resposta às atrocidades do nazismo, naturalmente surgindo após a Segunda Guerra Mundial, com alicerce na Carta das Nações Unidas (1945), que fiou sua crença nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, e na subsequente Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Portanto, não é por acaso que o neoconstitucionalismo foi deflagrado na Alemanha com a Lei Fundamental de Bonn (1949) e a implantação do Tribunal Constitucional Federal (1951) (Barroso, Luis Roberto. A americanização do direito constitucional e seus paradoxos: teoria e jurisprudência constitucional no mundo contemporâneo. In: Sarmento, Daniel (coord.). Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 309-345, p. 310.

[8] Galvão, Jorge Octávio Lavocat. O neoconstitucionalismo e o fim do estado de direito. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 229.

[9] De maneira um tanto simplista, podemos conceituar precedentes como orientações judiciais sobre certos temas e que podem ser utilizadas para a solução de outros casos, que versem sobre o mesmo assunto ou assunto parecido (TARANTO, Caio Márcio G. Precedente judicial: autoridade e aplicação na jurisdição constitucional. São Paulo: Forense, 2010, p. 6).

[10] O nosso sistema difere-se muito do sistema de precedentes dos EUA, cujas decisões são normalmente mais analíticas que as nossas e as Cortes não indicam quais as razões fundamentais (holdings), separando-as das periféricas (dicta). Para os EUA, não é trabalho dos juízes a indicação dos motivos que vinculariam as decisões futuras, mas se trata de tarefa dos intérpretes, que desenvolveram um método todo próprio para a análise de casos (case briefs), denominado “método IRAC”, onde “I” representa o issue, a análise dos fatos que conduziram ao julgamento; “R” refere-se a rule, regras jurídicas que se aplicam aos issues; “A” para analysis, quando o intérprete separa os holdings das dicta; e “C” para conclusion, com o prognóstico do intérprete acerca do que se pode esperar quando casos idênticos ou muito semelhantes forem postos à apreciação da própria Corte ou de outros tribunais (BERCH et al. Introduction to Legal Method and Process: cases and materials. 4a ed. Saint Paul/MN: Thomson West, 2002, pp. 11-20).

[11] DWORKIN, Ronald. Levando dos direitos a sério. Nelson Boeira (trad.). São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 32.

[12] Trata-se da teoria que fundamenta a licitude de buscas e apreensões sem mandado nas hipóteses em que agentes policiais visualizem algo aparentemente ilícito, desde que eles estejam em um lugar que lhes seja permitido estar (rua, calçada, sobrevoo de céu aberto etc.)  (HUBBART, Phillip A. Making sense of search and seizure law: a fourth amendment handbook. Durham: Carolina Academic Press, 2005, p. 155-156.

[13] À luz da intangibilidade do princípio da ofensividade, de lastro constitucional imanente (D´ÁVILA, Fabio Roberto. Ofensividade em Direito Penal: escritos sobre a teoria do crime como ofensas a bens jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009).

[14] Lopes Junior, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 31.


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