665 - O direito de locomoção e as medidas protetivas de urgência previstas na Lei 11.340/2006

 

Luís Fernando Decoussau Machado [1] – Juiz de Direito no Estado de São Paulo

 

 

1 - Resumo

 

A Constituição da República Federativa do Brasil prevê expressamente no seu artigo 226 que a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado, bem como, no § 8º do referido artigo, dispõe que o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

 

E justamente diante de expressa previsão constitucional e, sendo certo que, infelizmente, as situações envolvendo a prática de violência doméstica ou familiar contra a mulher multiplicam-se e necessitam de uma resposta estatal com a finalidade de, se não erradicá-las, pelo menos coibi-las com a punição dos agressores, é que no dia 07 de agosto de 2006 foi editada a Lei 11.340.

 

É evidente que o objeto deste breve artigo não é exaurir o estudo da Lei 11.340/2006, revestida de especificidades, tanto de natureza penal como cível, mas apenas e tão somente esclarecer pontos polêmicos acerca de um dos mecanismos mais interessantes e, porque não, mais eficazes no combate à violência doméstica ou familiar contra a mulher, as denominadas medidas protetivas de urgência previstas nos artigos 19 e seguintes da Lei 11.340/2006.

 

E neste ponto, além da previsão legal e conceito das medidas protetivas de urgência, serão abordados neste artigo temas como os requisitos legais, rito, caducidade das medidas cautelares e medidas especificas que obrigam o agressor, bem como as consequências do descumprimento da ordem judicial, sempre em compasso com a máxima da proporcionalidade que deve nortear e limitar a atuação do Magistrado, diante da evidente colisão de direitos fundamentais, a saber, a integridade física e psicológica da vítima e o direito de locomoção do agressor.

 

Diante deste contexto, este será o ponto a ser tratado neste artigo, inicialmente com a descrição das especificidades das medidas protetivas de urgência, pressuposto essencial para entendimento da matéria e, posteriormente, a problemática da colisão de direitos fundamentais da vítima e do suposto agressor a ser dirimida segundo a máxima da proporcionalidade.

 

Palavras-chave: Violência doméstica ou familiar. Medidas protetivas de urgência. Requisitos legais. Rito. Caducidade. Descumprimento. Prisão Preventiva. Colisão. Direitos Fundamentais. Proporcionalidade.

 

2 – Considerações gerais

 

A Constituição da República Federativa do Brasil prevê expressamente no seu artigo 226 que a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado, bem como, no § 8º do referido artigo, dispõe que o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

 

E nesse sentido, e justamente com a finalidade de prevenir e coibir a prática da violência doméstica ou familiar contra a mulher, para dar concretude ao mandamento constitucional e a máxima efetividade aos direitos fundamentais, é que a Lei 11.340, editada no dia 07 de agosto de 2.006, prevê em se artigo 1º:

 

Art. 1º. Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica ou familiar contra a mulher, nos termos do § 8º, do art. 226, da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

 

E uma das principais medidas de proteção às mulheres em situação de violência doméstica ou familiar, aliás, a mais largamente utilizada no dia a dia forense, é aquela prevista nos artigos 19 e seguintes da Lei 11.340/2006, as denominadas medidas protetivas de urgência.

 

É evidente, e tal como apontado anteriormente, que o objeto deste artigo não é exaurir as especificidades da Lei 11.340/2006, mas apenas esclarecer alguns pontos relevantes de uma das medidas judiciais mais importantes para a garantia da integridade física e psicológica da mulher em situação de violência doméstica ou familiar, as medidas protetivas de urgência, bem como os limites a serem adotados pelo Magistrado diante da evidente repercussão da decisão na esfera de locomoção do suposto agressor, compatibilizando-a com a máxima da proporcionalidade. Este será o ponto a ser tratado nesta oportunidade.

 

3 – As medidas protetivas de urgência e os requisitos legais

 

Antes da análise da problemática do conflito de direitos fundamentais e a sua solução, segundo a máxima da proporcionalidade, é preciso esclarecer o que são as medidas protetivas de urgência, a sua natureza jurídica, previsão legal e requisitos para o deferimento. Trata-se de conceitos que, a rigor, são de essencial importância para e entendimento da matéria e serão tratados a seguir.

 

As medidas protetivas de urgência são verdadeiras medidas cautelares, tanto de natureza penal como cível, revestidas de urgência que têm por finalidade a garantia da integridade física e psicológica da mulher em situação de violência doméstica ou familiar e estão previstas nos artigos 19 e seguintes da Lei 11.340/2006.

 

E nesse sentido, a Lei Maria da Penha prevê a possibilidade de concessão, em favor da mulher que se alegue vítima de violência doméstica ou familiar, de medidas provisionais, dando-lhes, porém, o nome de medidas protetivas de urgência. A natureza jurídica, no entanto, como já anunciado, é a mesma: providências de conteúdo satisfativo, concedidas em procedimento simplificado, relacionadas à parte do conflito (no caso, do conflito familiar e doméstico)[2].

 

E do próprio conceito das medidas protetivas de urgência, de natureza cautelar, é possível extrair os seus requisitos para a concessão no caso concreto, a saber, a plausibilidade do direito e o receio de dano irreparável ou de difícil reparação. E aqui reside a necessidade de esclarecimento destes requisitos que exigirão, igualmente, a abordagem de questões polêmicas e que serão de fundamental importância para o desenvolvimento do tema.

 

Com efeito, um dos requisitos para a concessão das medidas protetivas de urgência, como toda cautelar diga-se, é a plausibilidade do direito que no âmbito da Lei 11.340/2006 é a plausibilidade da prática de uma conduta envolvendo violência doméstica em face da mulher e imputada ao suposto agressor, segundo dicção do artigo 5º, caput e incisos, da referida lei.

 

Art. 5º. Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

 

I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

 

II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

 

III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

 

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.

 

E nestas condições, para que se configure a violência doméstica ou familiar contra a mulher e, portanto, para o reconhecimento da plausibilidade do direito, não basta que o sujeito passivo da conduta seja a mulher, mas também é preciso que a conduta resguarde nexo causal com as diferenças de gênero e que, além disso, os fatos ocorram em um determinado campo de abrangência. São os chamados elementos subjetivos e objetivos necessários para a configuração da violência doméstica ou familiar.

 

As primeiras conclusões da leitura do artigo 5º da Lei 11.340/2006 revelam que o sujeito ativo da conduta qualificada pela violência doméstica ou familiar poderá ser tanto o homem como a mulher, todavia, o sujeito passivo será necessariamente a mulher. No entanto, a questão adquire complexidade quando se busca a melhor interpretação do vocábulo mulher em cotejo com a questão do transexual.

 

Pois bem, neste ponto há discussão, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, acerca da interpretação do vocábulo mulher para fins legais e, consequentemente, a aplicação da norma em favor dos transexuais.

 

Com efeito, uma primeira corrente de interpretação, mais conservadora, entende que “o transexual, geneticamente, não é mulher (apenas passa a ter órgão genital de conformidade feminina), e que, portanto, descarta, para a hipótese, a proteção especial; já para uma segunda corrente mais moderna, desde que a pessoa portadora de transexualismo transmute suas características sexuais (por cirurgia e modo irreversível), deve ser encarada de acordo com sua nova realidade morfológica, eis que a jurisprudência admite, inclusive, a retificação de registro civil[3].

 

E neste ponto, Maria Berenice Dias, em sua obra “A Lei Maria da Penha na Justiça” defende a interpretação extensiva em favor do sujeito passivo transexual, incluindo-o no espectro de proteção normativo, porquanto a autora, ao mesmo tempo em que reconhece a necessidade da qualidade mulher do sujeito passivo para a incidência das regras protetivas, admite que “lésbicas, transexuais, travestis e transgêneros que tenham identidade social com o sexo feminino sejam protegidos pela norma[4]”.

 

E isto porque conferir ao transexual feminino a proteção da Lei 11.340/2006 seria apenas reconhecer uma realidade daqueles que, na verdade, são mulheres para todos os fins, segundo uma perspectiva de gênero, conferindo concretude, nesse sentido, para os princípios da dignidade da pessoa humana e evitando-se qualquer forma de discriminação, conforme artigos 1º, III e 3º, IV, da Constituição Federal. É o chamado o conceito de mulher sob uma perspectiva de gênero que, embora respeitável, não detém tal alcance normativo pretendido pela interpretação extensiva, contudo. Explico.

 

É que, muito embora o artigo 4º da Lei 11.340/2006 determine que na “interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar”, é certo que, sendo a Lei 11.340/2006 um conjunto de normas restritivas de direitos, inclusive à liberdade, tal como se vê da previsão das medidas protetivas de urgência, da possibilidade de prisão preventiva em razão do seu descumprimento, objeto deste artigo, a sua interpretação deverá ser restritiva.

 

E nesse sentido, havendo, como se vê, normas restritivas de direitos que, sabidamente, devem ser interpretadas restritivamente, é certo que a alcance da Lei 11.340/2006 não abarca, em regra, a situação do sujeito passivo transexual, porquanto, para fins legais, o transexual não é mulher na acepção jurídica do termo.

 

E isto porque a mulher na acepção jurídica do termo é a pessoa que assim for juridicamente reconhecida. Explico. “Mulher” será a pessoa que ostentar esta condição em seu assento de nascimento, ainda que retificado judicialmente ou extrajudicialmente, independentemente de qualquer ato cirúrgico, tal como prevê, inclusive, o Provimento 16/18 da Corregedoria Geral do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

 

Trata-se, com a devida vênia aos entendimentos diversos, de critério objetivo e seguro adotado como forma de aplacar a insegurança jurídica da aplicação da norma penal mais gravosa indiscriminadamente, impedindo, portanto, que uma questão delicada possa ser solucionada segundo o arbítrio do julgador e resulte em distorções que, a rigor, importarão em violação ao princípio da isonomia.

 

E diante deste contexto, admitir a existência de um conceito ampliativo de mulher sob a perspectiva de gênero, não confere a segurança necessária para a aplicação de um arcabouço jurídico revestido tanto de normas protetivas, como também de efetiva restrição de direitos, inclusive à liberdade, tal como se vê dos artigos 20 e 42 da Lei 11.340/2006.

 

E mais. É sabido, repise-se, que as normas restritivas de direitos devem ser interpretadas restritivamente, de tal forma que, neste contexto, revela-se adequado limitar a solução desta sensível questão ao contido nos registros públicos, até porque, sabidamente, devem espelhar a realidade.

 

Aliás, neste ponto muito pertinente a citação de Rogério Greco, pois “se existe alguma dúvida sobre a possibilidade de o legislador transformar um homem em uma mulher, isso não acontece quando estamos diante de uma decisão transitada em julgado. Se o Poder Judiciário, depois de cumprido o devido processo legal, determinar a modificação da condição sexual de alguém, tal fato deverá repercutir em todos os âmbitos de sua vida, inclusive penal[5]”.

 

Além disso, também é forçoso ressaltar da simples leitura do artigo 5º, caput, da Lei 11.340/2006, que o legislador prevê expressamente a necessidade de o sujeito passivo vítima de violência de gênero ostentar a condição de mulher à época da conduta. Fosse o contrário e, caso pretendesse abarcar a situação de outras pessoas que não ostentassem expressamente esta condição, mas que fossem consideradas mulheres por exercerem esses papéis na sociedade, o legislador, é certo, suprimiria tal expressão, mantendo apenas o conceito violência baseada no gênero como suficiente para delimitar o sujeito passivo. Se não o fez, é porque quis excluir tais situações, porquanto a lei não contém palavras inúteis.

 

Assim, conclui-se que o sujeito ativo da conduta envolvendo violência doméstica pode ser tanto o homem como a mulher, mas o sujeito passivo deve ser necessariamente a mulher na acepção jurídica do termo, assim entendido como a pessoa que ostentar esta condição no seu assento de nascimento e que for vítima de violência motivada pelo gênero, conceito a ser delimitado a seguir.

 

No entanto, e como já dito, não basta que a conduta seja praticada em face da mulher em seu conceito jurídico e restritivo. É preciso que, além disso, a conduta do agressor seja baseada no gênero, isto é, que resguarde nexo causal com os papéis historicamente atribuídos ao homem e à mulher pela sociedade para que se configure a violência doméstica ou familiar para fins da Lei 11.340/2006.

 

E novamente há aqui intensa discussão na doutrina e na jurisprudência acerca do alcance do vocábulo violência baseada no gênero.

 

Com efeito, os conceitos de gênero e sexo não se confundem. É que, “enquanto sexo está ligado à condição biológica do homem e da mulher, gênero é uma construção social, que identifica papéis sociais de natureza cultural, e que levam a aquisição da masculinidade e da feminilidade[6]”.

 

E isto quer dizer que para a configuração de elemento subjetivo e, portanto, para a aplicação da Lei 11.340/2006 é preciso que a conduta tenha como sujeito passivo a mulher, em seu conceito jurídico, e que a referida conduta resguarde nexo causal com os papéis historicamente atribuídos ao homem e à mulher pela sociedade.

 

E presume-se a existência da violência de gênero nas relações baseadas em vínculo afetivo como o namoro, a união estável e o casamento, porque as mulheres são reiteradamente vítimas de violência de gênero nestas situações, bem como a necessidade de erradicar este tipo de violência. Todavia, nas demais situações é preciso avaliar no caso concreto a existência da violência de gênero contra a mulher.

 

É que, se existem situações claras em que evidentemente há violência baseada no gênero, há outras situações em que o panorama nebuloso, cabendo ao intérprete, neste cenário, avaliar o caso concreto para verificar se os fatos ocorreram em face da mulher e, em caso positivo, se a conduta resguardou nexo causal com o gênero da vítima. Se a reposta for positiva, haverá o preenchimento do elemento subjetivo da Lei. Em caso negativo, não.

 

A este respeito, confira-se.

 

Tribunal de Justiça de Minas Gerais - TJMG.

 

APELAÇÃO CRIMINAL - crime de lesão corporal praticado contra irmã - relação comercial - violência não baseada no gênero ou em razão do vínculo familiar - situação não alcançada pela lei maria da penha - baixa dos autos para a proposta de suspensão condicional do processo.

 

- Configura-se violência doméstica contra mulher a prática de qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, no âmbito da unidade doméstica ou no âmbito da família ou, ainda, em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor tenha convivido com a ofendida, independente de coabitação.

 

- Em que pese à vítima ser mulher e parente do agressor, restando evidenciado que o crime ocorreu independentemente do gênero e do parentesco entre ambos, mas sim em razão da relação comercial que possuem, não há que se falar em aplicação da Lei Maria da Penha.

 

- Afastada a aplicação da Lei 11.340/06 e verificado que a pena privativa de liberdade mínima prevista para delito não supera 01 (um) ano, deve-se conceder, ao Ministério Público, a oportunidade de oferecer a suspensão condicional do processo ao acusado.

 

(TJMG - Apelação Criminal 1.0313.13.001247-6/001, Relator(a): Des.(a) Cássio Salomé, 7ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 28/09/2015, publicação da súmula em 02/10/2015).

 

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - TJSP

 

CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO. Vara Criminal e Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Ação penal pela prática, em tese, do crime de lesão corporal, supostamente cometido pelo ex-companheiro da vítima, com quem manteve relacionamento amoroso por dezessete anos, motivado por ciúmes. Hipótese de violência doméstica e familiar configurada. Conflito procedente. Competência do Juízo suscitado.  

 

(TJSP; Conflito de Jurisdição 0023022-05.2014.8.26.0000; Relator (a): Pinheiro Franco (Pres. Seção de Direito Criminal); Órgão Julgador: Câmara Especial; Foro Regional II - Santo Amaro - 2ª Vara Criminal; Data do Julgamento: 04/08/2014; Data de Registro: 06/08/2014).

 

Além disso, confira-se julgado do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo acerca do não reconhecimento da situação de violência doméstica ou familiar em situações em que o fator de vulnerabilidade decorreu da tenra idade da vítima e não o gênero.

 

CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO. Crime do artigo 136, §3º do Código Penal (maus tratos). Genitor acusado de ter agredido fisicamente a filha. Conduta praticada não baseada no gênero da vítima. Violência contra criança de 01 ano de idade, vulnerável em razão da idade. Inteligência do artigo 5º da Lei 11.340/06. Incompetência da Vara responsável pela análise de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Conflito procedente. Competência do Juízo Suscitado (Vara do Juizado Especial Cível e Criminal). 

 

(TJSP; Conflito de Jurisdição 0008040-78.2017.8.26.0000; Relator (a): Ana Lucia Romanhole Martucci; Órgão Julgador: Câmara Especial; Foro de Salto - Vara do Juizado Especial Cível e Criminal; Data do Julgamento: 29/05/2017; Data de Registro: 31/05/2017).

 

Como se vê, não basta que a vítima seja mulher para a aplicação da Lei 11.340/2006, é preciso ademais, que os fatos resguardem nexo causal com o gênero para a configuração da violência doméstica ou familiar e, consequentemente, para o preenchimento do elemento subjetivo exigido pela norma, havendo a presunção relativa da existência da violência de gênero nos casos de relações afetivas como namoro, casamento e união estável.

 

Ocorre que não basta o preenchimento do elemento subjetivo para a incidência da Lei 11.340/2006, mas também é necessário que os fatos ocorram em um determinado campo de abrangência, seja no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família ou em qualquer relação íntima de afeto. É o chamado elemento objetivo do conceito de violência doméstica ou familiar e está previsto nos incisos I, II e III do artigo 5º da Lei 11.340/2006.

 

A lei não poderia ser mais didática. Primeiro define o que seja violência doméstica (artigo 5º): qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. Depois estabelece seu campo de abrangência. A violência passa a ser doméstica quando praticada: (a) no âmbito da unidade doméstica; (b) no âmbito da família; (c) em qualquer relação íntima de afeto, independentemente da orientação sexual da vítima.

 

É obrigatório que a ação ou omissão ocorra na unidade doméstica ou familiar ou em razão de qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente da coabitação. Modo expresso está ressalvado que não há necessidade de vítima e agressor viverem sob o mesmo teto para a configuração da violência como doméstica ou familiar. Basta que agressor e agredida mantenham, ou já tenham mantido, um vínculo de natureza familiar[7].

 

E compreende-se por “unidade doméstica”, tal como descrito no artigo 5º, I, da Lei 11.340/2006, como sendo o “o local onde há convívio permanente de pessoas, em típico ambiente familiar”, vale dizer, como se família fosse, embora não haja a necessidade de existência de vínculo familiar, natural ou civil”[8].

 

O requisito “âmbito da família”, por sua vez, está previsto no inciso II do artigo 5º da Lei 11.340/2006 e, segundo disposição legal, é a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa. E nesse sentido, a violência praticada no âmbito da família “engloba aquela praticada entre pessoas unidas por vínculo jurídico de natureza familiar, podendo ser conjugal, em razão de parentesco (em linha reta e por afinidade), ou por vontade expressa (adoção)[9].

 

O requisito “relação íntima de afeto”, finalmente, está previsto no inciso III do artigo 5º da Lei 11.340/2006 e, segundo disposição legal abarca qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Com efeito, a relação íntima de afeto é o “relacionamento estreito entre duas pessoas, fundamentado em amizade, amor, simpatia, dentre outros sentimentos de aproximação[10] e prescinde para a sua configuração da coabitação.

 

Preenchidos os elementos subjetivos e objetivos haverá, a princípio, a presença de um dos requisitos cautelares para a configuração da violência doméstica ou familiar na forma da lei, possibilitando a concessão das medidas protetivas de urgência, a denominada plausibilidade do direito.

 

Mas não é só.

 

É que para o deferimento das medidas protetivas de urgência em favor da mulher em situação de violência doméstica ou familiar, é preciso, como em qualquer medida cautelar, que haja o receio de dano irreparável ou de difícil reparação, ou seja, que a medida seja proporcionalmente necessária e adequada para fins de garantir a integridade física e psicológica da referida vítima, sob pena de ineficácia do provimento final.

 

E nesse sentido:

 

Apelação – Violência doméstica – Crime de injúria– Extinção da punibilidade pela decadência – Revogação das medidas protetivas de urgência – Manutenção – Inviabilidade – Ausência de 'periculum in mora' – Fatos que ocorreram há mais de três anos – Ausência dos requisitos da atualidade ou iminência da violência doméstica a justificar o deferimento das medidas protetivas – Não há como se manter, indefinidamente, o cerceamento de direitos fundamentais do acusado, sem que para tanto se demonstre a efetiva necessidade, sob pena de se configurar constrangimento ilegal – Recurso de apelação desprovido. 

(TJSP;  Apelação 0005572-09.2015.8.26.0002; Relator (a): Cesar Augusto Andrade de Castro ; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Criminal; Foro Regional II - Santo Amaro - Vara da Região Sul 2 de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; Data do Julgamento: 24/04/2018; Data de Registro: 27/04/2018).

 

PROCESSO PENAL. Medidas protetivas de urgência. Artigo 22, inciso III, alíneas "a" e "b", da Lei nº 11.340/06. Proibição de se aproximar da vítima, com manutenção de distância mínima, e vedação de contato por qualquer meio de comunicação. Providências cautelares revogadas devido ao arquivamento do inquérito policial instaurado para apuração de ameaças, injúrias e outras infrações supostamente praticadas pelo recorrido. Pretendido restabelecimento das medidas protetivas. Inadmissibilidade. Imprescindibilidade da tutela cautelar não comprovada pela interessada. Investigação infrutífera quanto a eventuais infrações penais cometidas pelo recorrido. Ausência de indícios da prática de violência física ou psicológica. Situação de risco não evidenciada, principalmente porque deferida a separação de corpos, estabelecida a guarda da criança e fixada a verba alimentar no Juízo competente enquanto pendente a ação de divórcio. Prova documental de encontros ocorridos pacificamente entre as partes na vigência das medidas cautelares. Recurso recebido como apelação e, no mérito, desprovido. 

(TJSP;  Recurso em Sentido Estrito 0093240-05.2014.8.26.0050; Relator (a): Otávio de Almeida Toledo; Órgão Julgador: 16ª Câmara de Direito Criminal; Foro Central Criminal Barra Funda - Vara do Foro Central de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; Data do Julgamento: 10/10/2017; Data de Registro: 11/10/2017)

 

Desta forma, presentes os requisitos cautelares da plausibilidade do direito e do receio de dano irreparável ou de difícil reparação, desde que haja requerimento da vítima ou do Ministério Público, o Magistrado deverá conceder as medidas protetivas de urgência que, todavia, serão proporcionalmente adequadas e necessárias, tanto para a garantia da integridade física e psicológica da vítima como também para causar a menor restrição possível aos direitos do suposto agressor.

 

4 – O rito das medidas protetivas de urgência

 

O procedimento das medidas protetivas de urgência está previsto nos artigos 19 e seguintes da lei 11.340/2006, aplicável, no que couber, o rito cautelar previsto nos artigos 300 e seguintes do Código de Processo Civil por expressa previsão do artigo 13 da Lei 11.340/2006, conforme se vê a seguir:

 

Art. 13: Ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica contra a mulher aplicar-se-ão as normas dos Códigos de Processo Penal e Civil e da legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido nesta lei.

 

Assim, ocorrida uma situação de violência doméstica ou familiar contra a mulher, a vítima, desde que presentes os elementos objetivos, subjetivos e a urgência, poderá requerer diretamente e sem acompanhamento técnico, leia-se, de advogado, a concessão das medidas protetivas de urgência no momento da lavratura do boletim de ocorrência.

 

E com estas informações, a Autoridade Policial reduzirá a termo as declarações da vítima e remeterá o expediente para o Juízo Criminal competente em razão do local da consumação do delito ou do último ato de execução, caso haja a tentativa, cabendo ao Juiz decidir em 48 (quarenta e oito horas), tanto acerca do pedido de concessão das medidas protetivas de urgência, como também para determinar os encaminhamentos aos órgãos de assistência judiciária e proceder as comunicações pertinentes para o Ministério Público para a adoção das medidas cabíveis. Isto é o que se depreende da leitura do artigo 18 da Lei 11.340/2006.

 

Art. 18. Recebido o expediente com pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas:

 

I – conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de urgência;

 

II – determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso;

 

III – comunicar ao Ministério Público para que adote as providências cabíveis.

 

Note-se que ao receber o expediente, conforme visto acima, o Magistrado decidirá em 48 (quarenta e oito horas) acerca da possibilidade da concessão das medidas protetivas de urgência, concedendo-as caso entenda presentes os requisitos cautelares. No entanto, também é possível o indeferimento do pedido, evidentemente ou, caso necessário, a designação de audiência de justificação para oitiva da vítima e de pessoas por ela indicadas para verificação da presença, ou não, dos requisitos cautelares com a maior brevidade possível, considerando os bens jurídicos em conflito.

 

Aliás, é forçoso ressaltar a importância da juntada de fotografias, declarações da vítima e de terceiros, bem como o preenchimento pela vítima de um questionário à disposição dela nas delegacias de polícia com a finalidade de fornecer maiores elementos fáticos possíveis para o Magistrado, diante de todas as limitações existentes no caso concreto, e demonstrar a presença dos requisitos cautelares.

 

Pois bem. Apreciado o pedido de concessão das medidas protetivas de urgência pelo Magistrado, a parte contrária será citada para se defender na forma dos artigos 303 e seguintes do Código de Processo Civil, aplicável supletivamente à espécie na forma do artigo 13 da Lei 11.340/2006. Apresentada a defesa, que se limitará, apenas e tão somente, a contrariar os requisitos cautelares e apreciados os argumentos pelo Magistrado, sem que haja irresignação, os autos serão apensados ao respectivo inquérito policial, até que sobrevenha nova decisão, arquivamento dos autos do inquérito policial ou a propositura de ação penal.

 

Havendo irresignação da decisão por qualquer das partes, seja pela concessão ou não das medidas protetivas de urgência, caberá a interposição de recurso de apelação nos termos do artigo 593, II, do Código de Processo Penal, embora aceitável pela fungibilidade recursal a interposição de recurso em sentido estrito, ainda que não seja uma das hipótese previstas no rol taxativo do artigo 581 do Código de Processo Penal.

 

5 – As medidas protetivas de urgência em favor da vítima e o direito de locomoção do agressor

 

O artigo 22 da Lei 11.340/2006 prevê as medidas protetivas que obrigam o agressor e aqui serão analisadas, mas não em sua totalidade, registre-se, porquanto apenas aquelas que colidirem com o direito de locomoção do agressor. E são as seguintes medidas:

 

I - o afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

 

II - proibição de determinadas condutas, entre as quais:

 

a)   Aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;

 

b)   Contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;

 

c)   Frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida

 

É evidente que da análise das medidas protetivas previstas no artigo 22 da Lei 11.340/2006 extrai-se a colisão entre dois direitos fundamentais, a saber, o direito à integridade física e psicológica da vítima e o direito de locomoção do agressor que, neste contexto, devem interagir, prevalecendo no caso concreto a medida mais adequada, necessária e proporcional em sentido estrito a fim de harmonizar os princípios constitucionais.

 

É que os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas).

 

Desta forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando-se o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance da cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua[11].

 

E diante deste contexto, somente da análise do caso concreto é que será possível verificar a prevalência do direito fundamental com a mínima restrição possível do direito colidente, segundo a máxima da proporcionalidade em sentido amplo.

 

Nestes termos, sendo a hipótese de concessão das medidas protetivas de urgência pelo Magistrado, desde que presentes os requisitos cautelares, o direito à integridade física e psicológica da vítima restringirá o direito de locomoção do agressor que, por determinado prazo, não poderá, por exemplo, aproximar-se da referida vítima ou mesmo manter qualquer tipo de contato com ela. As medidas protetivas de urgência concedidas pelo Magistrado serão apenas aquelas estritamente necessárias para garantia da integridade física e psicológica da vítima com a menor restrição possível ao direito de locomoção do agressor.

 

Ex1. “A” postula a concessão de medidas protetivas de urgência em face de “B”, com pedido de proibição de contato e aproximação, alegando que ele a ameaçou por telefone. “A” e “B” estudam na mesma faculdade e sala de aula. Neste caso, não havendo aproximação e sendo certo que “A” e “B” estudam na mesma sala, a proibição de contato revela-se adequada e necessária para garantia da integridade física e psicológica da vítima, bem como para garantir que “B” continue os seus estudos.

 

Ex2. “A” postula concessão de medidas protetivas de urgência em face de “B”. “A” e “B” possuem um filho “C” em comum. No caso de concessão de medidas protetivas de urgência em favor de “A”, sobretudo proibição de contato e aproximação, “B” não poderá ser privado de contato com o filho “C”. Assim, segundo a máxima da proporcionalidade, será mantido o direito de visitas, todavia, a entrega e devolução de “C”, apenas e tão somente, ficará a cargo de uma pessoa de confiança das partes, diante do teor das medidas protetivas de urgência.

 

Todavia, ao reverso, caso não estejam presentes os requisitos cautelares, o direito de locomoção do agressor prevalecerá em relação ao direito à integridade física e psicológica da vítima, com a rejeição das medidas protetivas de urgência, sem prejuízo de reapreciação da questão futuramente, conforme se vê a seguir.

 

Agravo de Instrumento – Violência doméstica – Interposição contra indeferimento de medidas protetivas de urgência - Pretensão potencialmente prejudicial ao suposto agressor desprovida de embasamento probatório mínimo – Ausência de fumus boni iuris e de periculum in mora – Entendimento. Em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, se ausentes o fumus boni iuris e o periculum in mora, é de rigor o indeferimento de medidas protetivas de urgência pleiteadas, sobretudo se potencialmente prejudiciais ao suposto agressor.  

 

(TJSP;  Apelação 0009105-60.2015.8.26.0168; Relator (a): Grassi Neto; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Criminal; Foro de Dracena - 3ª. Vara Judicial; Data do Julgamento: 15/12/2016; Data de Registro: 15/12/2016)

 

Portanto, conclui-se que a medida protetiva de urgência, por se tratar de medida interventiva e limitativa dos direitos fundamentais, deverá limitar-se ao estritamente proporcional, adequado e necessário para a fim de garantir a integridade física e psicológica da mulher em situação de violência, desde que presentes os requisitos cautelares, não se esquecendo, todavia, do direito de locomoção alheio que não poderá ser tolhido indefinidamente, conforme será visto no capítulo a seguir.

 

6 – A caducidade das medidas protetivas de urgência

 

Neste capítulo será abordado prazo das medidas protetivas de urgência, sobretudo porque na hipótese de concessão, havendo evidente restrição ao direito de locomoção do suposto agressor, deve-se verificar se seria proporcionalmente adequado e necessário permitir a sua continuidade indefinidamente, ou mesmo independentemente da instauração de inquérito policial ou da propositura de ação penal. A resposta ainda é motivo de intenso debate na doutrina e na jurisprudência.

 

E nesse sentido, debate-se a doutrina sobre a natureza jurídica das medidas protetivas. Não se trata de discussão meramente acadêmica, pois significativos são os reflexos de ordem processual. Uns afirmam que, se a medida for de natureza penal, pressupõe um processo criminal. Outros pregam sua natureza cível, só servindo para resguardar um processo civil. Mas há mais. Enquanto consideradas acessórias, só funcionariam enquanto perdurar o processo cível ou criminal. Fausto Rodrigues de Lima afirma que a discussão é equivocada e desnecessária, pois as medidas protetivas não são instrumentos para assegurar processo. O fim das medidas protetivas é proteger direitos fundamentais, evitando a continuidade da violência e das situações que a favorecem. Não são, necessariamente, preparatórias de qualquer ação judicial. Não visam processos, mas pessoas[12].

 

No entanto, a despeito de entendimento diverso, as medidas protetivas de urgência não podem perdurar indefinidamente em razão da nítida restrição de direitos e, sobretudo por haver risco concreto de decretação de prisão preventiva em caso de descumprimento (questão a ser analisada oportunamente).

 

Explico.

 

As medidas protetivas de urgência dependem do preenchimento dos requisitos cautelares, a plausibilidade do direito e o receio de dano irreparável ou de difícil reparação, importando, quando concedidas, em verdadeira limitação ao direito de locomoção da parte contrária. Sendo assim, e havendo o risco concreto de a parte contrária ser presa preventivamente não há como permitir indefinidamente a insegurança da possibilidade da adoção da medida extrema, mormente nas hipóteses em que transcorrer razoável prazo sem que existam notícias de fatos novos.

 

E mais. Se as medidas protetivas de urgência exigem o reconhecimento da plausibilidade do direito para a sua concessão pelo Magistrado, é certo, por dedução lógica, que arquivado o inquérito policial ou mesmo julgada improcedente a ação penal por ausência da comprovação da materialidade ou dos indícios de autoria, não haverá, consequentemente, o aludido requisito cautelar que justifique a manutenção da referida medida acautelatória.

 

Além disso, existente o inquérito policial por longo período, sem que haja a propositura da ação penal, à míngua de complexidade ou justificativa idônea para tanto ou mesmo ausência de representação da vítima no prazo legal, quando for o caso, nada impede a revogação das medidas protetivas de urgência, desde que não haja fato novo que a justifique. Note-se que aqui não se fala em prazo certo para a manutenção das medidas protetivas de urgência, mas tão somente na necessidade de análise do caso concreto para verificar se o direito à integridade física e psicológica da vítima deve continuar a limitar o direito de locomoção do suposto agressor.

 

Nesse sentido, vejamos:

 

PENAL. APELAÇÃO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. CONCEDIDAS MEDIDAS PROTETIVAS, POSTERIORMENTE, REVOGADAS DIANTE DO ARQUIVAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL. RECURSO DEFENSIVO.

 

Pretendido que as medidas protetivas, concedidas anteriormente, mantenham seus efeitos enquanto perdurar a situação de violência. Descabimento. As medidas protetivas de urgência possuem natureza jurídica de urgência, preventividade, provisoriedade e instrumentalidade. Assim, está vinculada à presença dos requisitos típicos das medidas de urgência - o perigo da demora e a fumaça do bom direito, podendo ser revogadas, a qualquer tempo, caso a urgência desapareça, a violência inexista ou não seja provada, como é o caso do arquivamento do inquérito respectivo. Negado provimento. 

(TJSP;  Apelação 0019906-82.2014.8.26.0002; Relator (a): Alcides Malossi Junior; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Criminal; Foro Regional II - Santo Amaro - Vara Reg.Sul2 de Viol. Dom. e Fam.Cont.Mulher; Data do Julgamento: 24/05/2018; Data de Registro: 29/05/2018).

 

Apelação – Medidas Protetivas – Deferidas – Prazo decadencial de 6 meses para representação do ofendido – Prazo transcorrido in albis – Extinção da Punibilidade – Perda dos efeitos das medidas protetivas – Possibilidade – Recurso não provido. 

(TJSP;  Apelação 0006217-34.2015.8.26.0002; Relator (a): Osni Pereira; Órgão Julgador: 16ª Câmara de Direito Criminal; Foro Regional II - Santo Amaro - Vara da Região Sul 2 de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; Data do Julgamento: 08/08/2017; Data de Registro: 09/08/2017).

 

Diante do que foi exposto, conclui-se, portanto, que as medidas protetivas de urgência não podem perdurar no tempo indefinidamente, mas a sua manutenção depende do caso concreto e da sensibilidade do julgador, a fim de evitar o risco à integridade física e psicológica da vítima, sem olvidar do direito de locomoção do suposto agressor.

 

6 – O descumprimento das medidas protetivas de urgência e a prisão preventiva

 

Neste capítulo será abordada uma das modificações mais importantes trazidas pela Lei 11.340/2006 e, posteriormente pela Lei 12.403/2011, a possibilidade de decretação da prisão preventiva do agressor para garantia da execução das medidas protetivas de urgência e a adoção de medidas alternativas proporcionalmente adequadas e necessárias no caso concreto, se for recomendável, porquanto não se pode olvidar que a prisão é a ultima ratio.

 

A decretação da prisão preventiva depende do preenchimento dos pressupostos previstos no artigo 313 e, caso existente, dos requisitos cautelares previstos no artigo 312, ambos do Código de Processo Penal. É dizer que somente será admissível a prisão preventiva daquele que praticar um crime com pena superior a 04 (quatro) anos de reclusão; reincidente em crime doloso, ressalvadas as hipóteses previstas no artigo 64 do Código Penal; ou se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência, quando a medida for necessária para garantia da ordem pública, para a conveniência da instrução criminal ou para assegurara a aplicação da lei penal.

 

A hipótese de decretação da prisão preventiva do agressor para garantia da execução das medidas protetivas de urgência será analisada neste capítulo em confronto com o direito de liberdade e, porque não de locomoção, do suposto agressor.

 

Com efeito, é sabido que infelizmente os crimes mais comuns envolvendo o tema da violência doméstica são punidos com detenção. E isso é o que se denota do tipo secundário dos crimes de lesão corporal e de ameaça previstos nos artigos 129 § 9º e 147 ambos do Código Penal.

 

E nesse sentido, caso não existisse a alteração inicialmente trazida pela Lei 11.340/2006 e posteriormente confirmada e alargada para outras hipóteses pela Lei 12.403/2011, não haveria a possibilidade da decretação da medida extrema, ainda que o suposto agressor resistisse à ordem judicial de não aproximação e contato com a vítima. Haveria, em síntese, o risco concreto à integridade física e psicológica da vítima que ficaria a mercê dos atos do agressor, sem que daí houvesse qualquer medida mais enérgica para fazer valer o comando judicial.

 

Todavia, felizmente fez bem o legislador ao prever a nova hipótese de prisão preventiva do agressor. É que, a partir da edição das duas leis acima citadas, e desde que concedidas as medidas protetivas de urgência anteriormente, o Magistrado poderá decretar a prisão preventiva do agressor para garantia da execução das medidas cautelares, desde que, repise-se, presentes um dos requisitos previsto no artigo 312 do Código de Processo Penal.

 

E diz-se que o Magistrado poderá decretar a prisão preventiva porque, em se tratando da prisão a ultima ratio, as medidas cautelares poderão ser agravadas ou mesmo ser designada audiência de advertência do agressor antes da adoção da medida extrema, caso a desobediência não seja grave, quando daí sim, no caso de renovação das práticas delitivas, será decretada a prisão preventiva nos termos do artigo 313, III, do Código de Processo Penal.

 

Aliás, nesse sentido, outro ponto em que insistimos: a prisão preventiva somente é cabível, nos termos do artigo 42 da lei, para garantir a execução das medidas protetivas. Pressupõe assim, necessariamente, que medidas protetivas à vítima já tenham sido deferidas e, posteriormente, descumpridas pelo agressor. Em nossa experiência prática, inúmeras vezes recebemos expedientes em que o Delegado de Polícia, face a uma agressão, representa pela decretação da prisão preventiva do agente. Em muitos casos, não há qualquer expediente anterior e não se pediu a imposição de qualquer medida de proteção, sendo aquela a primeira notícia que se tem dos fatos. Em uma hipótese dessa, eventual adoção da medida excepcional se reveste de inegável ilegalidade, se não estiverem presentes os requisitos que permitem a prisão preventiva em outras hipóteses. Há, portanto, por assim dizer, uma ordem cronológica a ser seguida: primeiro são impostas medidas de proteção e segundo, caso descumpridas, se decreta a prisão preventiva. Sua decretação, de plano, sem se observar a primeira cautela, fere o próprio texto legal, como se vê da leitura do artigo 42[13].

 

Portanto, diante do exposto, conclui-se que a prisão preventiva somente poderá ser decretada para garantia da execução das medidas protetivas de urgência, desde que presentes um dos requisitos previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal, pressupondo, evidentemente, a concessão das medidas cautelares anteriormente. Admitir entendimento diverso seria subverter o escopo legal, tornando a medida extrema desproporcional frente à conduta violando, desta maneira, a proporcionalidade que deve nortear medidas restritivas extremas deste porte, mormente porque em jogo está o direito à liberdade do indivíduo.

 

7 - Conclusão

 

Diante de que tudo o que foi exposto no presente trabalho, verifica-se que as medidas protetivas de urgência previstas na Lei 11.340/2006 constituem uma importantíssima ferramenta a ser utilizada nas hipóteses em que presentes os requisitos cautelares como forma de salvaguardar a integridade física e psicológica da vítima, face às investidas do agressor.

 

É evidente que, ainda que se trate de uma medida em vigor há mais de dez anos, pairam dúvidas acerca da sua aplicabilidade, rito, requisitos para a sua concessão e, principalmente o prazo de duração, mormente porque evidente a existência de conflitos de direitos fundamentais que devem ser sopesados e harmonizados no caso concreto.

 

E nesse sentido, e considerando a colisão de direitos fundamentais dos sujeitos envolvidos no processo cautelar, verifica-se a necessidade da adoção, desde que presentes os pressupostos e requisitos cautelares, da medida proporcionalmente adequada e necessária para fins de tutelar os direitos fundamentais, com a mínima restrição possível do direito diverso, por prazo razoável, enquanto necessária, segundo as peculiaridades do caso concreto.

 

Além disso, também se verifica a possibilidade da decretação da prisão preventiva do agressor para a garantia da execução das medidas protetivas de urgência, observada, igualmente, a proporcionalidade da medida, frente ao direito de locomoção da parte contrária.

 

Como se vê, seja qual for a medida a ser tomada no caso concreto, a concessão, ou não, das medidas protetivas de urgência importa em atenta observância pelo Magistrado dos requisitos legais, bem como à máxima da proporcionalidade como forma de harmonização constitucional e, consequentemente, a adoção da solução mais justa, segundo as peculiaridades do caso concreto.

 

8. Referências bibliográficas

 

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

 

BARROS, Suzana de Toledo, O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais. Brasília Jurídica, 1996.

 

CAVALCANTE, Elaine Cristina Monteiro. Cadernos Jurídicos Jurídicos. Violência Doméstica. Escola Paulista da Magistratura, Ano 15, n.38, Janeiro – Abril 2.014.

 

DIAS, Maria Berenice, A Lei Maria da Penha na Justiça, 3ª Ed, Ed. RT, 2013.

 

DIDIER, Fredie Jr. Et al., R. Aspectos Processuais e Civis da Lei Maria da Penha – Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, Família e Responsabilidade , Teoria e Prática do Direito de Família. Porto Alegre: instituto Brasileiro de Direito de Família, 2010.

 

MORAES, Alexandre, Direito Constitucional. Ed. Atlas, 21ª Ed, 2007.

 

NUCCI, Guilherme de Souza, Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, 4ª Ed, Ed RT, 2009.

 

PINTO, Rogério Sanches Cunha Ronaldo Batista, Violência Doméstica, Lei Maria da Penha Comentada Artigo por Artigo, 4ª Ed, Ed. RT, 2012.



[1] Aluno do curso de Mestrado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP.

[2] DIDIER, Fredie Jr. Et al., R. Aspectos Processuais e Civis da Lei Maria da Penha – Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, Família e Responsabilidade, Teoria e Prática do Direito de Família. Porto Alegre: instituto Brasileiro de Direito de Família, 2010.

[3] CUNHA, Rogério Sanches, PINTO, Ronaldo Batista, Violência Doméstica, Lei Maria da Penha Comentada artigo por artigo, 4ª ed, Ed. RT2012, p. 34.

[4] DIAS, Maria Berenice, A Lei Maria da Penha na Justiça, 3ª Ed, Ed. RT, 2013, p. 61/62

[5] PINTO, Rogério Sanches Cunha Ronaldo Batista, Violência Doméstica, Lei Maria da Penha Comentada artigo por artigo, 4ª ed, Ed. RT2012, p. 122, citação Curso de Direito Penal, Niterói: Impetus, 2006, vol III, p. 530.

[6] DIAS, Maria Berenice, A Lei Maria da Penha na Justiça, 3ª Ed, Ed. RT, 2013, p. 44, citando GOMES, Acir de Matos, Discurso Jurídico, Mulher e Ideologia, p. 88.

[7] DIAS, Maria Berenice, A Lei Maria da Penha na Justiça, 3ª Ed, Ed. RT, 2013, p 45.

[8] NUCCI, Guilherme de Souza, Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, 4ª Ed, Ed RT, 2009, p. 1167.

[9] PINTO, Rogério Sanches Cunha Ronaldo Batista, Violência Doméstica, Lei Maria da Penha Comentada artigo por artigo, 4ª ed, Ed. RT2012, p. 51.

[10] NUCCI, Guilherme de Souza, Leis Penais e Processuais Comentadas, 5ª Ed, Ed. RT, 2010, p.1264.

[11] MORAES, Alexandre, Direito Constitucional. Ed. Atlas, 21ª Ed, 2007, p. 28.

[12] DIAS, Maria Berenice, A Lei Maria da Penha na Justiça, 3ª Ed, Ed. RT, 2013, p 148.

[13] PINTO, Rogério Sanches Cunha Ronaldo Batista, Violência Doméstica, Lei Maria da Penha Comentada artigo por artigo, 4ª ed, Ed. RT2012, p. 122.


O Tribunal de Justiça de São Paulo utiliza cookies, armazenados apenas em caráter temporário, a fim de obter estatísticas para aprimorar a experiência do usuário. A navegação no portal implica concordância com esse procedimento, em linha com a Política de Privacidade e Proteção de Dados Pessoais do TJSP