666 - A inconstitucionalidade da lei federal que ampliou a competência da Justiça Militar para outros crimes previstos no Código Penal e na legislação especial – Lei Federal nº 13.491/2017
Carlos Alberto Corrêa de Almeida Oliveira [1] – Juiz de Direito no Estado de São Paulo
Introdução
O presente trabalho se deve às discussões geradas pela dupla tipificação de crimes no âmbito do Código Penal e do Código Penal Militar, com reflexos na competência para o julgamento, o que se intensificou a partir da promulgação da Lei Federal nº 13.491, de 13 de outubro de 2017, com a ampliação das hipóteses, bem como em face da intervenção federal que vem ocorrendo, com uma certa frequência, para a chamada garantia da lei e da ordem, mormente a mais grave ocorrida na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, através de efetivos das forças armadas, com base no artigo 34, inciso III, da Constituição Federal de 1988, utilizando-se a justificativa de grave comprometimento da ordem pública por força do crime organizado e da ação de milícias, conforme teor do Decreto Federal nº 9.288, de 16 de fevereiro de 2018 e entrevistas ofertadas na época.
Embora a utilização pontual de pequenos efetivos das forças armadas para a manutenção da lei e da ordem, dentro da ideia de segurança pública interna não seja algo novo, a medida excepcional de intervenção federal com o uso de um grande efetivo das forças armadas foi alcançada gerando a intensificação dos confrontos armados envolvendo militares e civis, além de serem atingidos patrimônios privados e civis inocentes, com a morte e o ferimento de militares e de civis, criando discussões sobre o conflito aparente de normas e o acerto da aplicação de determinada legislação ou de outra, bem como a competência para apuração das ocorrências e o seu julgamento quando envolva a ação de militares em face de civis.
A vida em sociedade não é algo simples e sem nuances, razão pela qual não se poder apontar uma única questão como comprometedora da ordem pública, escolher uma classe como responsável, bem como não se pode estabelecer uma solução mágica para todos os problemas.
Embora o que se visa é o bem comum, o respeito, a humanidade, a fraternidade, a liberdade e a igualdade, o que se imortalizou na Declaração dos Direitos do Homem e Cidadão da Revolução Francesa 1789, ainda naquele país e no resto da Europa não se evitou a violência e a opressão, as quais somente foram contidas e melhoradas dentro de um processo civilizatório baseado nas experiências, na educação e em mudanças de pontos de vistas e condutas, o que separa, hoje em dia, os países mais desenvolvidos da Europa em relação aos países mais atrasados do resto do mundo.
O chamado poder de polícia, como fonte da ordenação social interna, deve ser vinculado ao militar o ao civil, bem como deve ser atributo de uma instituição ou de uma sociedade, bem como submetido a uma Justiça Comum ou Especial?
A questão a ser discutida é relevante, uma vez que a apuração e a punição de crimes que envolvam militares e civis poderão ser prejudicadas pela discussão da competência para o julgamento, sem mencionar os efeitos nefastos da eventual declaração de nulidade de processos, com o risco da prescrição da pretensão punitiva sobre condutas apuradas, favorecendo a impunidade.
O desenvolvimento do presente estudo não se presta a dar uma solução definitiva, a qual depende da ação do Egrégio Congresso Nacional, no âmbito da sua atividade legislativa, bem como dos Egrégios Tribunais Superiores com o exercício das suas competências.
Longe de buscarmos uma palavra final, devemos estabelecer o debate, ouvir as opiniões contrárias, refletir e, após um processo de conhecimento, alcançar o desenvolvimento de uma opinião e de um modo de agir.
O que se pretende é mostrar o que está sendo observado, o que entendemos equivocado e perigoso, bem como a apresentação do que compreendemos por inconstitucionalidade sistêmica.
Visando o desenvolvimento do trabalho, procuraremos definir o que entendemos por polícia, estabelecer a diferença entre o militar e o policial nas suas ações fins, passando pela questão da banalização da garantia da lei e da ordem por militares, as suas consequências, para podermos discutir o que é inconstitucionalidade sistêmica e como ela ocorreu no caso da Lei Federal nº 13.491/17.
Conforme dispõe a Constituição Federal de 1988, junto ao seu artigo 142, as Forças Armadas são representadas pelo Exército, a Marinha e a Aeronáutica, sendo que as funções de segurança pública interna estão previstas no artigo 144 da Constituição Federal, onde são tratadas as forças policiais existentes no país, discussão que desenvolveremos na sequência.
O poder de polícia
Resolvemos iniciar o nosso estudo pela explicação do significado da palavra polícia, bem como mostrando a sua afinidade com o civil e não com o militar nos Estados Modernos, para podermos desenvolver a ideia de que a atividade militar é diversa da atividade policial.
A palavra “polícia”, nas explicações de Manuel Emídio Garcia, então professor de Direito Administrativo da Universidade de Coimbra em Portugal, por volta de 1874, citado por Fernando Catroga, na sua etimologia, designava um complexo de leis e instituições que formavam o governo de uma cidade ou nação[2].
Essa explicação inicial é importante, uma vez que a ideia de polícia não nasce com a criação de uma instituição para a preservação da ordem pública e do cumprimento da lei, mas dentro de uma finalidade administrativista de regulação, fiscalização e promoção do bem estar social, ou seja, possui um sentido mais amplo e ligado à própria governança de um Estado.
Logo, no seu sentido lato e clássico, a palavra polícia não se confundia com a finalidade de proteção pública.
A invenção do significado mais moderno e com o valor que a palavra empresta para todos na atualidade, mais precisamente, confundindo uma função administrativa com uma instituição hierarquizada, especializada e paga pelo Estado com o fim de manter a ordem pública interna e combater as infrações penais é algo próprio do século XIX, conforme cita Maria José Moutinho Santos[3].
Foi apenas no século XIX que a questão da segurança pública interna passou a ser confundida com o chamado Poder de Polícia, o que é algo maior e mais complexo, bem como ainda com as instituições criadas para a proteção pública interna
O esclarecimento apresentado é importante para se perceber que a finalidade do Poder de Polícia, que é a base para a atuação da polícia instituição, desde os tempos mais remotos, passando pelo Gregos, Romanos, pela Idade Média e pelo próprio absolutismo idade moderna, sempre esteve ligado a uma finalidade de regulação e administração de natureza civil e não militar, ainda que corpos militares tenham exercido a função de segurança pública interna, principalmente na falta ou na carência de milícias civis para tal exercício ao logo da história.
Não se deve confundir o exercício da segurança pública externa, própria dos militares, com o exercício da segurança pública interna, o que é uma função da administração civil dos Estados, mormente, aqueles que buscam ser um Estado Democrático de Direito.
Embora possam existir instituições policiais militarizadas, com hierarquia e disciplina, o poder de polícia é tradicionalmente ligado ao civil e não ao militar, o que se mostra adequado, uma vez que a forma do militar ser formado, pensar e agir são diferentes do policial, até porque possuem atividades distintas.
A diferença entre o militar e o policial
Existe uma diferença na forma como o militar pensa e é treinado para o desenvolvimento da sua atividade fim e como o policial pensa e é treinado dentro da sua ação profissional fim.
Essa diferença de pensamento, a qual reflete no trato das questões que surgem durante o exercício das atividades, representa um dos problemas mais sérios no exercício da atividade policial pelas forças de segurança pública, sendo elas externas ou internas.
Isso porque o militar em função propriamente militar, possui parâmetros diversos de atuação e acaba por enxergar o opositor como um inimigo, o que pode ser perigoso quando se trata da atividade policial, a qual exige a consideração de nuances entre vítimas, infratores, parentes de infratores, testemunhas e meros espectadores da ação policial. Anota-se que o próprio trato com o infrator possui doutrina diversa, uma vez que a sua eliminação é o último estágio dentro do uso progressivo e justificável da força na ação policial[4] e não existe a mesma preocupação na ação militar[5].
Outro ponto que também precisa ser considerado é o de que o policial, muito mais que o militar, precisa ter a consciência do relevante papel social que exerce na pacificação da sociedade, o que acaba sendo algo além de simplesmente o exercício da função policial[6].
O policial não pode pensar nele e na sua instituição como algo a parte das demais pessoas que vivem em sociedade, o que acaba sendo mais comum quando se vive e trabalha de forma aquartelada, saindo apenas para missões específicas, como ocorre normalmente com os militares[7].
Demonstrando a diferença da forma de pensar entre o militar e o policial, nos vem a memória, um evento ocorrido na Escola Paulista da Magistratura, muitos anos atrás, oportunidade em que o Desembargador José Damião Pinheiro Machado Cogan, um estudioso da matéria de segurança pública, convidou o então Comandante da 2ª Região Militar do Comando Sudeste do Exército Brasileiro para participar de um circulo de debates e palestras envolvendo o assunto segurança pública.
Na mencionada oportunidade, participaram pessoas de diversos seguimentos da sociedade, especialmente, da imprensa.
Um dos jornalistas presentes, repetindo um questionamento que é feito comumente pelas pessoas em sociedade, perguntou qual a razão para o Exército Brasileiro não ir para as ruas garantindo a segurança pública?
O general, pessoa muito preparada, de forma muito polida e serena, respondeu que aquela não era a missão fim das forças armadas.
O mencionado repórter insistiu e questionou o experiente general, recebendo, por fim, a resposta de que a forma de visão, treinamento e ação dos profissionais militares e dos policiais são diversas, uma vez que o primeiro possui a prioridade da missão, aceitando efeitos colaterais, enquanto que ao segundo cabe as prioridades da manutenção da vida e da integridade física e mental das vítimas, do patrimônio público e privado e da própria vida e integridade física e mental do autor da infração penal.
Tal explicação nos fez refletir sobre o assunto e nos mostrou a diferença da ação de militares e de policiais, bem como as consequências que podem ser esperadas quando militares exercem a função policial.
Obviamente, o atento leitor já se perguntou como se justifica a ação das polícias militares, uma vez que reúnem aspectos de militares e de policiais?
O questionamento ainda se torna mais importante diante do disposto no Decreto-Lei nº 667/1969, o qual reorganizou as polícias militares e foi criado sob a égide do § 1º do artigo 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, ou seja, por norma de exceção em um momento de ausência de democracia.
Inicialmente, necessário distinguir as chamadas polícias militares próprias das forças armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica), as quais fazem parte delas e possuem a missão de policiamento interno das mesmas, das polícias chamadas impropriamente de militares, as quais não são parte dos quadros das Forças Armadas e possuem essa nomenclatura por terem organização semelhante e, no caso do Brasil, são apenas forças auxiliares e reservas das forças armadas.
O nome “polícia militar” utilizado pelas forças de segurança interna estaduais é usado em um sentido amplo, em face de terem um estatuto militar, mas possuem como funções principais a manutenção da ordem pública interna, através de ações próprias como as de policiamento civil ostensivo, embora, no passado as antecessoras Força Pública do Estado de São Paulo, Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul ente outras, já tenham sido tropas militares envolvidas em confrontos internos e externos nos séculos passados, especialmente, na Guerra do Paraguai, na Revolução Federalista, na Campanha de Canudos e na Revolução Constitucionalista.
Apenas para melhor orientar o nosso leitor, quando utilizarmos o nome “polícia militar” estaremos nos referindo às polícias estaduais e não às Forças Armadas, salvo se houver uma observação específica.
Logo, o fato das polícias estaduais, com a função de garantir a ordem pública interna, chamarem-se “polícia militar” não permite uma resposta simples quanto à natureza da instituição e da sua atividade.
Importante mencionar que no passado, antes do Decreto-Lei nº 2.010 de 1983, o comando das polícias militares estaduais era exercido por um oficial do Exército Brasileiro e não por um oficial da própria instituição policial.
Inclusive, ao contrário do que ocorria anteriormente ao Decreto-Lei nº 2010/1983, a escolha será livre por parte do governador dos Estados, ou seja, não será nomeado um candidato indicado pelo Poder Executivo Federal, sendo a nomeação mero ato formal.
O que se mostra fundamental é distinguir a natureza da ação fim das polícias militares, no nosso entender, como força de segurança civil interna, das atividades de forças auxiliares e reservas do Exército Brasileiro, ai sim, como força militar integrada ao Exército do Brasil.
A explicação inicia-se na constatação de que a ação profissional do policial militar, em regra, é a de um policial, bem como na própria verificação quanto às modificações da doutrina, do fim e da formação de policiais militares ao longo dos anos, mormente após a Constituição Federal de 1988 e da própria chamada redemocratização do Estado, com profundas alterações no currículo de formação de policiais militares, com ênfase ao estudo da legislação civil, direitos humanos e de ações controladas com o uso da força dentro de uma escala de gravidade determinada pela situação.
O próprio treinamento na solução de conflitos policiais com o uso de armas de fogo mudou, adotando-se o método desenvolvido pelo Coronel PMESP Nilson Giraldi, atualmente reformado, com ênfase a utilização seletiva e proporcional da força.
Importante mencionar que o policial militar do passado, especialmente, na década de 70 do século passado, era mais voltado para o aspecto militar da sua formação e estruturação, bem como atuação, do que para o aspecto policial da sua atividade fim, até porque o Brasil estava envolvido em uma situação de conflitos armados internos fomentado por questões de ordem filosófica e política, bem como com o auxílio de Estados Estrangeiros (ação de guerrilha na década de 70 do século XX).
A consequência disso foi a verificação de que as ocorrências policiais, por ação das polícias militares (forças policiais estaduais), proporcionalmente, eram marcadas por maior violência e com resultados mais graves do que atualmente em que há a preocupação do estabelecimento de uma forma gradativa e seletiva do uso da força nas ocorrências policiais.
Não se confunda a quantidade de ocorrências graves atuais por força do aumento da população, da organização do crime, da disponibilidade de armas de uso restrito e do próprio aumento do efetivo das polícias militares, com a proporção de mortes e ferimentos graves em ocorrências policiais militares do passado.
Inclusive, apenas para exemplificar o que está sendo afirmado, basta ser avaliado o período de criação ou pelo menos a especialidade de finalidade, à época, de grupos especiais de elite da Polícia Militar do Estado de São Paulo, mais precisamente as Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA) e o Comando de Operações Especiais (COE), ambas voltadas para o combate da guerrilha dos anos 70 do século XX em áreas urbana e em áreas rurais ou de florestas[8].
Algo que é especialmente esclarecedor do que se está afirmando, está no fato de que, dificilmente, na atualidade, um policial militar operacional vai colecionar um número elevado de ocorrências policiais com o resultado morte e continuar na atividade operacional, ainda que todas as ocorrências sejam legítimas e marcadas pela necessidade do uso máximo da força.
Tal medida não é um demérito para o policial, mas a busca da sua preservação enquanto pessoa, uma vez que pode ocorrer a desumanização do homem pelo confronto com morte, com sérios prejuízos para o policial, para a sua família e, eventualmente, para a própria sociedade.
Também, dificilmente, um policial militar envolvido em uma situação de confronto armado não irá passar por uma avaliação psicológica, o que sequer se pensava no passado[9].
O policial militar da atualidade possui o seu treinamento voltado, principalmente, para o aspecto policial da sua atividade, o que já é algo muito complexo, embora existam unidades especiais das polícias militares que possuem o aspecto militar da ação profissional mais intensificado.
Porém, é uma exceção e quando no desempenho da atividade policial, atuam como policiais e não como militares.
Talvez, o aspecto militar predominante de determinadas unidades policiais, as quais permanecem aquarteladas em regra, seja um fato decorrente da história das polícias militares e da própria experiência adquirida no período de guerrilha dos anos 70 do século XX.
O importante é não confundir o militarismo ditado pelos princípios da hierarquia e da disciplina, formação, organização, uso de uniformes, com a ação militar dentro da sua missão constitucional específica de segurança externa.
A atividade militar propriamente dita e a policial possuem técnicas diversas e peculiares que as tornam distintas e inconfundíveis.
O policial militar é policial, ainda que possa ser membro de uma força auxiliar e reserva das forças armadas, conforme dispõe o artigo 144, inciso V, §6º, da Constituição Federal de 1988, e ele atua como policial, ainda que seja submetido a um estatuto militar, disciplina e hierarquia, bem como faça parte de uma instituição estruturada de forma militar.
Voltando ao ponto principal da diferença entre o militar e o policial, a distinção pode ainda ser exemplificada no caso hipotético da ocupação de uma determinada posição estratégica, que pode ser uma comunidade (favela), existindo fogo inimigo em um determinado ponto que impeça a progressão e o cumprimento da missão de controle e domínio do local.
Dentro da visão militar, o objetivo primário é o cumprimento da missão, com a supressão do fogo inimigo que impede a progressão no terreno, analisando-se a melhor forma em termos de eficiência, rapidez e efetividade da ação[10].
Logo, dentro desta análise de ação militar, pode ser decidido que há a necessidade da supressão do ponto hostil com o uso de artilharia, com a consequência da morte dos ocupantes do local, sejam eles beligerantes ou não, e ainda a própria destruição do local.
Já, dentro da visão policial, a ação é pautada pelo cerco e a contenção do agressor, preservando as vidas e o patrimônio ao máximo, até submetendo o policial a um risco maior do que é esperado e exigido de um militar em situação análoga dentro de uma ação militar de combate.
Também podemos demonstrar, de forma clara a distinção entre a formação e o pensamento de um militar em relação a um policial, quando ouvimos declarações de determinadas autoridades, dando-se como exemplo, o atual governador do Estado do Rio de Janeiro, Dr. Wilson José Witzel, o qual já foi um fuzileiro naval.
O atual governador do Rio de Janeiro (2019), ao dar entrevistas a respeito da ação contra o crime organizado nas comunidades do Estado do Rio de Janeiro, especificamente, com relação às pessoas portando fuzis de assalto, declarou que era a favor do uso de atiradores de elite para a eliminação de tais agentes.
Dentro de uma visão militar, existindo uma região conflagrada, com pessoas em situação de combate, armadas e prontas para atacar, apresenta-se legítima a ação de franco atiradores para a eliminação de tais oponentes, dentro daquilo que se entende por uma “legítima defesa preventiva”[11].
Porém, dentro da visão policial, bem como considerando o fato de que estamos sob um regime de um Estado Democrático de Direito, onde não se aceita a existência de uma região a parte do Estado, somado ao fato de que não há a possibilidade da declaração de guerra contra o próprio país, mesmo que para a solução de problemas graves de segurança pública interna, bem como se observando que nos casos extremos dos estados de defesa e de sítio, ambos previstos no artigo 136 e s.s. da Constituição Federal de 1988, ainda se preserva a vida, não há espaço para a chamada “legítima defesa preventiva”.
A legítima defesa dentro do Estado Democrático de Direito do Brasil, ou ela é real, decorrente da reação a uma agressão injusta atual ou iminente (artigo 25 do Código Penal), ou ainda putativa, ou seja, quando o agente se sente em tal situação (artigo 20, §1º do Código Penal), mas sempre com a moderação dos meios.
Não se trata de discutir qual é a melhor atividade, entre a militar e a policial, mas apenas aceitar o fato de que são atividades diferentes para situações distintas e com finalidades próprias.
O militar e o policial, além de pensarem diferente, os resultados das ações militares possuem tolerâncias diversas de uma intervenção policial.
Isso porque, a destruição de um prédio, a morte de pessoas em atividade hostil e de outras atingidas pela ação militar, sem falar na quantidade de tiros e da própria intensidade de destruição das pessoas atingidas não são aceitas da mesma forma quando em uma ação policial.
O chamado excesso para o policial, no exercício da sua atividade, acaba sendo muito mais sensível do que o militar na sua ação principal.
Oportuno mencionar que a morte de um criminoso deve ser o último grau da necessidade do uso da força em uma ação policial e não o primeiro quando se pretende uma sociedade mais humana, solidária e segura[12].
Logo, o militar pensa e age diferente do policial, razão pela qual o militar deve ser guardado para o cumprimento de ações específicas previstas na Constituição Federal, bem como dentro de uma excepcionalidade extrema que necessite da sua intervenção interna, não se podendo confundir militar com policial, ainda que existam as chamadas polícias militares.
Por outro lado, existindo a mobilização das polícias militares pelo Exército do Brasil, uma vez que são forças auxiliares e reservas, elas passam a ser militares e a estarem sob o comando do Exército, ou seja, existe uma modificação na sua natureza.
Um paralelo semelhante existe no caso dos reservistas que são pessoas civis comuns e passam a ser militares a partir da convocação e incorporação.
Existe um antes e um depois, bem diferentes, com consequências muito distintas sobre o comando, os objetivos de trabalho e a própria natureza da relação do homem ou da instituição (polícias militares) com relação ao sistema jurídico do Estado do Brasil. Anota-se que a competência para o julgamento de crimes também muda.
Na sequência, procuraremos desenvolver a crítica à exceção da intervenção militar para a garantia da ordem e da segurança pública internas.
A intervenção militar em face do grave comprometimento da ordem pública como uma exceção
Já dissemos no item anterior que as atividades militares e policiais são distintas, a doutrina de ação profissional é diversa e as consequências esperadas podem ser muito diferentes, mormente no tocante aos efeitos colaterais.
Essas são as razões pelas quais a intervenção militar na segurança pública interna deve ser reservada para casos excepcionais, para missões específicas e por prazo temporal curto, conforme o teor e a inteligência da Lei Complementar nº 99/1999, de 09 de junho de 1999.
Qualquer medida que fuja de tal excepcionalidade, bem como sem uma finalidade específica e por um prazo longo, corre o risco de comprometer o estado democrático de direito e a imagem das forças armadas, por estarem exercendo uma missão excepcional na sua atividade principal.
O emprego das forças armadas de forma ordinária na segurança pública, além de criar problemas estruturais graves para a democracia, para a população civil, para os militares, bem como para o próprio sistema jurídico, pode levar ao descrédito das Forças Armadas.
Isso porque, após a intervenção daquilo que entendemos como sendo o último baluarte do Estado contra o crime, não existindo resultados positivos reais e a mudança na situação de insegurança pública, restará apenas a sensação de descrédito e de abandono, o que pode ser perigoso para a integridade do próprio Estado[13].
Inclusive, o descrédito foi o que aconteceu no Estado do Rio de Janeiro, através do Decreto Federal nº 9.288 de 26 de fevereiro de 2018.
Infelizmente, por melhor que tenham sido os esforços e os sacrifícios dos militares, a missão dada para eles não tinha um objetivo pré-determinado, era anômala e ainda foi prolongada no tempo, ou seja, não resolveu o problema da segurança pública interna do Estado do Rio de Janeiro e as Forças Armadas acabaram demonstrando que não são uma solução mágica. Observa-se que não se pode resolver problemas sociais, urbanísticos, de educação e de corrupção, apenas com as forças armadas nas ruas, mormente sob a égide de um Estado Democrático de Direito e uma situação social alarmante.
O criminoso não é apenas um inimigo a ser neutralizado, mas uma pessoa que está submetida a uma série de direitos e de garantias, bem como acolhido pela finalidade penal de punir, reeducar e de modificação de valores, mesmo que seja utópico dentro da atual realidade da sociedade e dos presídios[14].
Além do que já foi mencionado, quando ocorrem confrontos entre militares e civis, bem como havendo vítimas civis inocentes, na ação de garantia da lei e da ordem, qual é a legislação que deve ser adotada, com foco na ideia de um Estado Democrático de Direito, será a excepcional do Código Penal Militar ou a geral do Código Penal?
Como se não bastasse, de quem é a competência para o julgamento, da Justiça Militar, da Justiça Federal ou da Justiça Estadual?
O julgamento, caso entenda-se que seja pela Justiça Federal ou Estadual, será pelo magistrado togado ou pelo Tribunal do Júri nos casos de crimes dolosos contra a vida de civis?
Acreditamos que não há como afastar o interesse Federal quando a ação policial de garantia da lei e da ordem seja realizada pelas Forças Armadas, uma vez que o interesse da União é inquestionável.
O mesmo pode ser dito com relação à chamada Força Nacional de Segurança Pública, instituída pela Lei Federal nº 11.473, de 10 de maio de 2007, formada nos termos do seu artigo 5º, por profissionais civis das forças de segurança internas e pelo contingente de diversas polícias militares de todo o Brasil, diante da determinação federal de intervenção após solicitação dos Estados, ou seja, mantendo-se o interesse da União segundo o nosso entender.
A existência e a competência das justiças militares federal e estaduais
Como é de fácil observação, a intervenção militar não é algo mágico e muito menos simples, repercutindo em vários aspectos do que entendemos por uma sociedade que busca a organização, a humanidade, a democracia e acima de tudo a segurança.
A exceção não pode se tornar uma regra e o interesse civil, em tempo de paz, deve se sobrepor ao interesse militar, seja no tocante a aplicação de normas, como na competência para o julgamento de condutas.
Aqueles que exercem a atividade policial, com vistas à segurança pública interna e no trato direto com o cidadão, devem se submeter ao sistema comum da sociedade.
Porém, existem crimes que somente existem no Código Penal Militar e ainda há, em alguns Estados da União, mais precisamente, no Estado de São Paulo, no Estado de Minas Gerais e no Estado do Rio Grande do Sul, Tribunais de Justiça Militar Estadual.
A continuidade do desenvolvimento do nosso trabalho depende, inicialmente, da distinção entre o que entendemos por crimes militares próprios e o que entendemos crimes militares impróprios.
Entendemos por crimes militares próprios aqueles que somente existem no Código Penal Militar e se relacionam diretamente com a atividade militar. Anota-se que não há qualquer discussão possível quanto a aplicação do Código Penal Militar e até a competência de uma justiça especializada, desde que adstrita a militares.
Por outro lado, entendemos como crimes militares impróprios aqueles que são previstos na legislação penal não militar e que são considerados militares por força de alguma circunstância determinada pela lei e possuem tipificação dupla no Código Penal e no Código Penal Militar.
Com relação a esses crimes em particular, nascem as discussões sobre a competência da justiça comum ou militar, bem como a extensão desta última quando a vítima é um civil.
O que podemos adiantar é que entendemos ser uma garantia constitucional e sistêmica o julgamento pelo Tribunal do Júri os crimes dolosos contra a vida, nos termos do artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea “d”, da Constituição Federal de 1988, ainda que no âmbito da Justiça Federal quando for o caso, mas nunca no âmbito da Justiça Militar seja ela Federal ou Estadual.
Importante ressaltar que não entendemos ser inconstitucional a Justiça Militar, seja ela no âmbito da União ou no âmbito dos Estados, uma vez que possuem previsão constitucional e uma missão específica e relevante.
Analisando o disposto no artigo 9º do Código Penal Militar, mais precisamente antes do advento da Lei Federal nº Lei nº 13.491, de 2017, verifica-se que a ação da Justiça Militar também abarca crimes militares impróprios, em tempo de paz, quando:
“Crimes militares em tempo de paz
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
I - os crimes de que trata este Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial;
II - os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados;
a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;
b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;
c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil; (Redação dada pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996)
d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;
e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar;
f) revogada. (Redação dada pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996)
III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:
a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;
b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;
c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;
d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior.
Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil serão da competência da justiça comum, salvo quando praticados no contexto de ação militar realizada na forma do art. 303 da Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986 - Código Brasileiro de Aeronáutica. (Redação dada pela Lei nº 12.432, de 2011)”.
Como se observa pela análise do texto acima, os casos de aplicação do Código Penal Militar são excepcionais quando se trata de crimes militares impróprios e, mesmo assim, está ligado a ideia de local sujeito ou sobre efeitos de administração militar, ou seja, dentro da atividade militar e não da atividade policial, até porque ambas são distintas.
É óbvio que o militar desenvolvendo uma atividade de garantia da lei e da ordem pública interna quer ser tratado como militar e quer ver a sua conduta analisada dentro desta óptica, até porque mais fácil ele entender as regras da sua atuação, por força da sua formação, bem como compreender e medir as consequências dos seus atos.
Porém, isso não se mostra adequado dentro de um Estado Democrático de Direito, onde as pessoas possuem um signo pessoal de valores ditados por normas e princípios civis e não militares.
As pessoas envolvidas pelas ações militares não vão compreender e aceitar violências e efeitos colaterais que seriam próprios de uma guerra e não de uma ação de polícia.
Inclusive, temendo a análise das ações dos militares sob a óptica civil e não militar o artigo 9º do Código Penal Militar foi alterado pela Lei Federal nº 13.491, de 13 de outubro de 2017 para ampliar as hipóteses de abrangência da competência da Justiça Militar em casos de crimes militares impróprios.
Importante mencionar que as alterações visaram apenas acomodar uma situação fática de intervenção militar na segurança pública interna, com consequências civis e criminais, o que é anômalo e perigoso dentro de um Estado Democrático de Direito.
A mencionada norma federal, de natureza infraconstitucional, uma vez que é uma lei ordinária, promoveu alterações no Decreto-Lei nº 1.001 de 21 de outubro de 1969 (Código Penal Militar), passando o artigo 9º a ter a seguinte redação:
“... Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
... II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados: (Redação dada pela Lei nº 13.491, de 2017)
a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;
b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;
c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil; (Redação dada pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996)
d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;
e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar;
f) revogada. (Redação dada pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996)
III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:
a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;
b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;
c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;
d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquêle fim, ou em obediência a determinação legal superior.
§ 1o Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri. (Redação dada pela Lei nº 13.491, de 2017)
§ 2o Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União, se praticados no contexto: (Incluído pela Lei nº 13.491, de 2017)
I – do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa; (Incluído pela Lei nº 13.491, de 2017)
II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou (Incluído pela Lei nº 13.491, de 2017)
III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal e na forma dos seguintes diplomas legais: (Incluído pela Lei nº 13.491, de 2017)
a) Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986 - Código Brasileiro de Aeronáutica; (Incluída pela Lei nº 13.491, de 2017)
b) Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999; (Incluída pela Lei nº 13.491, de 2017)
c) Decreto-Lei no 1.002, de 21 de outubro de 1969 - Código de Processo Penal Militar; e (Incluída pela Lei nº 13.491, de 2017)
d) Lei no 4.737, de 15 de julho de 1965 - Código Eleitoral. (Incluída pela Lei nº 13.491, de 2017)”
As alterações realizadas pela mencionada norma serão comentadas na sequência, bem como os motivos pelos quais entendemos que a norma é inconstitucional.
A inconstitucionalidade da Lei Federal nº 13.491, de 13 de outubro de 2017
Mostra-se interessante um olhar no passado, antes da Constituição Federal de 1988, quando pouco se discutia a constitucionalidade de determinada norma, servindo a carta constitucional mais como um guia da estruturação do Estado do Brasil, mesmo que tivesse no seu bojo direitos e garantias individuais.
Inclusive, as inconstitucionalidades das normas infraconstitucionais eram discutidas, em regra, do ponto de vista material e não sistêmico, bem como não se falava em um princípio da proporcionalidade.
O que mudou?
Acreditamos que tudo.
A Constituição Federal de 1988 inaugurou um marco no sistema legal do Brasil, passando a tratar, a nível constitucional, matérias que antes eram infraconstitucionais, em face da importância de determinados assuntos e da preocupação de estabelecer uma proteção contra a modificação de determinadas garantias alcançadas após a chamada redemocratização do país.
Temos exemplos fartos de como as relações sociais, bem como os direitos e as garantias pessoais podem ser alterados de forma radical, podendo ser citados episódios ligados à primeira república, com as medidas tomadas pelo presidente Floriano Peixoto (1891-1894), no final do século XIX[15], passando pelo chamado “Estado Novo”, do meio do século XX, sob a presidência de Getúlio Vargas[16], bem como pela chamada “Revolução de 1964”[17].
Portanto, entendemos que uma das principais preocupações demonstradas com a Constituição Federal de 1988 foi estabelecer um Estado Democrático de Direito, de natureza civil, com a preocupação da preservação de direitos e de garantias tanto do ponto de vista individual, como também social e político.
Basta para tanto a mera leitura do preâmbulo da Constituição Federal de 1988:
“... Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Tal preâmbulo já demonstra a intenção sistêmica que irá nortear o Estado do Brasil, qual seja, a preocupação com um Estado Democrático, a preservação de direitos sociais e individuais, e a igualdade, o que volta a ser afirmado no início do artigo 5º da Constituição Federal.
Por igualdade, entenda-se o tratamento isonômico de todos, o que também representa a submissão às mesmas regras sociais e, principalmente, às mesmas normas, salvo casos excepcionais.
Portanto, respeitosamente, dentro de um sistema jurídico e de um sistema constitucional que não é apenas normativo, mas também é principiológico, até porque o §2º da Constituição Federal de 1988 estabelece que os direitos e as garantias expressas na Constituição Federal não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, entendemos que não pode ser criada nenhuma extensão de exceção ao sistema, através de normas infraconstitucionais, para ampliar a competência de Tribunais Especializados, visando tratamento diferenciado de militares em relação a ações envolvendo civis.
Contrários a essa ampliação, especialmente trazida pela Lei Federal nº 13.491, de 13 de outubro de 2017, porque entendemos ocorrer uma inconstitucionalidade sistêmica, uma vez que cria um hiato no sistema jurídico brasileiro, com a intenção inequívoca de permitir que militares atuem como força de segurança interna, exercendo atividades de polícia, mas continuem pensando, agindo e sendo responsabilizados como militares.
Acreditamos que além de inconstitucional, represente sério engano, uma vez que já demonstramos que militares e policiais pensam e agem de formas diferentes, podendo serem aguardadas consequências diversas[18].
Também, conforme já manifestamos acima, entendemos que embora as polícias com a atribuição prevista no §5º, do artigo 144 da Constituição Federal de 1988, sejam chamadas militares, não são forças militares de segurança e sim forças civis de segurança pública interna enquanto não incorporadas ao Exército, ainda que sejam forças auxiliares e reservas do Exército, não se podendo olvidar que o Decreto-Lei nº 667/1969, foi criado sob a égide do § 1º do artigo 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, ou seja, por norma de exceção que não se sustenta em um Estado Democrático de Direito, mormente após a Constituição Federal de 1988, já tendo sofrido uma substanciosa alteração com o Decreto-Lei nº 2.010/1999, sendo que as chamadas polícias militares estão sob o comando dos governadores enquanto não forem convocadas como forças auxiliares do Exército, o que já foi explicado anteriormente.
Inclusive, apena a título de comentário, mas de suma importância para solucionar outro impasse estadual com relação à competência das Justiças Militares Estaduais, haja vista que alguns defendem a ampliação da sua competência por força da Lei Federal nº 13.491, de 13 de outubro de 2017, a mencionada lei, no seu artigo 1º é restrita e expressa no sentido de que a ampliação da competência ocorreria somente em relação a militares das Forças Armadas e apenas em relação à Justiça Militar da União.
Logo, não se aplica às Justiças Militares Estaduais, bem como ainda faz uma diferença entre o que se considera missão militar de garantia da lei e da ordem em relação à missão policial de garantia da lei e da ordem pública estabelecida no §5º, do artigo 144 da Constituição Federal de 1988.
É bem verdade que as estatísticas até a modificação da competência do Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo para o Tribunal do Júri, no tocante aos crimes dolosos contra a vida praticados por policiais militares, apontassem para um volume maior de condenações para a justiça especializada, o fato é que o Tribunal do Júri foi elencado como uma garantia da pessoa e da própria sociedade.
Inclusive, em consonância a isso e ao disposto na alínea “d”, do inciso XXXVIII da Constituição Federal de 1988, o artigo 9º do Código Penal Militar, foi alterado com a supressão da alínea “f”, do inciso II e com o acréscimo do parágrafo único do mencionado artigo, através da Lei Federal nº 9.299/96. Anota-se que mesmo a Lei Federal nº 12.432/2011, a qual tentou criar uma exceção a ações militares, ainda manteve a regra do julgamento pela justiça comum dos crimes dolosos praticados por militares contra civis.
Logo a alteração pretendida pela Lei Federal nº 13.491, de 13 de outubro de 2017, mormente no caput do seu artigo 1º, com a modificação do artigo 9º, especialmente, com o acréscimo do §2º é inconstitucional por violar o sistema jurídico do Brasil, previsto pela Constituição Federal de 1988.
Isso porque, amplia a competência da Justiça Militar da União, mormente com relação a ações militares contra civis em tempo de paz, violando a regra da justiça civil em tempo de paz, bem como cria uma exceção infraconstitucional à garantia do julgamento pelo Tribunal do Júri dos crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis, violando o disposto no artigo 5º, inciso XXXVIII da Constituição Federal de 1988.
Defendemos que a ação militar ou policial, em tempo de paz, envolvendo a morte de civis deverá ser julgada pelo Tribunal do Júri, sendo que no caso da chamada Força de Segurança Nacional e das Polícias Federais a competência será do Tribunal do Júri Federal e não do Estadual como ocorre com as chamadas polícias militares estaduais, uma vez que são unidades federais e não estaduais.
Com relação aos militares das Forças Armadas que atuem, em tempo de paz, na missão de garantia da lei e da ordem, no caso do evento morte de civis, deverão ser julgados pelo Tribunal do Júri Federal e não pela Justiça Militar da União, uma vez que não há exceções à competência dos Tribunais do Júri por ser uma garantia fundamental e constitucional.
Faz-se consignar que atentos à grave exceção que se busca instalar no sistema jurídico do Brasil, o Partido Socialismo e Liberdade (P-SOL), está postulando uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), que recebeu o número 5901/2018, sendo o relator sorteado o Ministro Gilmar Mendes.
Atualmente, encontra-se em tramitação, estando concluso para o relator.
Porém, independentemente do trâmite da ADIN 5901/2018, o controle difuso da inconstitucionalidade deve e poderá ser exercido pelos magistrados, até que haja uma decisão superior final sobre o assunto.
Conclusões
Ao final do nosso estudo, entendemos ser a Lei Federal nº 13.491 de 13 de outubro de 2017 inconstitucional por ferir preceito expresso no artigo 5º, inciso XXXVIII da Constituição Federal de 1988, bem como o próprio sistema jurídico pátrio de competência da justiça civil e tempo de paz.
Também concluímos que a extensão da competência da Justiça Militar da União em decorrência das alterações trazidas pela Lei Federal nº 13.491 de 13 de outubro de 2017, ainda que sejam consideradas eventualmente constitucionais com o julgamento da ADIN 5901 de 2018, não se aplicam às Justiças Militares Estaduais, por ser uma exceção e estar prevista, expressamente, a sua incidência apenas em casos de missões militares das Forças Armadas.
A ação militar ou policial, em tempo de paz, envolvendo a morte de civis deverá ser julgada pelo Tribunal do Júri, sendo que no caso da chamada Força de Segurança Nacional e das Polícias Federais a competência será do Tribunal do Júri Federal e não do Estadual como ocorre com as chamadas polícias militares estaduais, uma vez que são unidades federais e não estaduais.
Com relação aos militares das Forças Armadas que atuem, em tempo de paz, na missão de garantia da lei e da ordem, no caso do evento morte de civis, deverão ser julgados pelo Tribunal do Júri Federal e não pela Justiça Militar da União, uma vez que não há exceções à competência dos Tribunais do Júri por ser uma garantia fundamental e constitucional.
Finalmente, concluímos que as chamadas polícias militares, após o advento do Decreto-Lei nº 2.010/1983, seguido pela Constituição Federal de 1988, são forças civis militarizadas de segurança pública interna, enquanto não sejam mobilizadas e incorporadas pelo Exército do Brasil, haja vista serem forças auxiliares e de reserva.
Bibliografia consultada
ALMEIDA, Pedro Tavares; MARQUES, Tiago Pires (Org.). Lei e ordem, p. 105. Lisboa: Livros horizontes, 2006.
EXÉRCITO, brasileiro. Manual de campanha – batalhões de infantaria, 3ª ed. Brasília: Estado Maior do Exército, 2003.
QUEIROZ, Carlos Alberto Marchi (Coord). Manual operacional do policial civil. São Paulo: Delegacia Geral de Polícia, 2002.
[1] Juiz de Direito Titular I da 25ª Vara Criminal Central da Capital – São Paulo. Pós-doutorado em História do Direito pela Universidade de Lisboa – Clássica; Doutor em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
[2] ALMEIDA, Pedro Tavares; MARQUES, Tiago Pires (Org.). Lei e ordem, p. 105. Lisboa: Livros horizontes, 2006.
[3] ALMEIDA, Pedro Tavares; MARQUES, Tiago Pires (Org.). Lei e ordem, p. 131. Lisboa: Livros horizontes, 2006.
[4] A nossa afirmação pode ser facilmente demonstrada na análise do Manual Operacional da Polícia Civil do Estado de São Paulo, mais precisamente na sua parte “2. ALTERNATIVAS TÁTICAS E SEUS PRINCÍPIOS. É evidente que os tipos penais, pautados pela privação da liberdade individual, passaram a ser praticados com maior frequência nas duas últimas décadas do século vinte. Preocupado com o imoderado recrudescimento dessas atividades, o Estado passou a investir em unidades policiais de resposta imediata, para, assim, emprestar maior profissionalismo e credibilidade no atendimento de situações críticas. Doutrina o instrutor de segurança pública e privada, Ricardo de Toledo Vaz Guimarães, conforme informa Lima Lessa, que as quatro etapas, ou alternativas táticas, que caracterizam um evento crítico, desde o seu início, são: a) o processo de negociação; b) o emprego de agentes não letais; c) o sniper e d) o assalto (assault). Assim, para que se possa ter uma ampla visão desse processo, vejamos, de forma pormenorizada, cada uma dessas etapas”.
[5] Analisando o Manual de Campanha C 7-20, Batalhões de Infantaria, do Exército Brasileiro, mais precisamente o ARTIGO II – UNIDADES DE INFANTARIA, verifica-se “1-4. MISSÕES BÁSICAS a. Na ofensiva (1) Cerrar sobre o inimigo, para destruí-lo ou capturá-lo, utilizando-se, para isto, do fogo, do movimento e do combate aproximado. (2) Pelo fogo procuram neutralizar o adversário permitindo o movimento. Pela combinação do fogo e do movimento, colocam-se nas melhores condições possíveis em relação às defesas inimigas. Finalmente, pelo combate aproximado é concretizado o cumprimento da missão, lançando-se violentamente sobre o adversário, a fim de, pelo assalto, ultimarem a sua destruição ou capturá-lo. b. Na defensiva – Manter o terreno, impedindo, resistindo ou repelindo o ataque inimigo, por meio do fogo e do combate aproximado, e expulsando-o ou destruindo-o pelo contra-ataque”.
[6] A questão envolvendo o que se espera de um policial é algo um tanto complicado, uma vez que ao lado da ação de repressão aos ilícitos e a manutenção da ordem pública, existe o aspecto de auxílio e interação com a população. O policial não atua em uma região de conflito declarado com lados bem definidos, mas dentro de uma região em que, normalmente, moram pessoas de todos os tipos e, muitas vezes, a própria família do policial. Até mesmo quando o policial está em incursão dentro de uma comunidade (favela), naquele local existem pessoas boas e ruins, razão pela qual a sua ação precisa ser de pinça e não generalizada. Isso significa que o policial precisa saber diferenciar as pessoas e as situações, não podendo e não devendo ser agressivo desnecessariamente. Observa-se que o policial é o espelho do Estado e, em última análise, da própria sociedade. Talvez, essa seja a maior mudança de parâmetros entre o período pós ano de 1964, o qual acabou com a redemocratização do Brasil, em relação ao atual.
[7] O policial convive, circula e interage com todas as pessoas que vivem em sociedade, sendo parte dela e não membro de uma casta, o que pode até ter sido incentivado em épocas passadas em que o comando do Estado estava nas mãos de pessoas que seguiam um regime militar e existia uma situação de revolução com ações de terrorismo.
[8] Não nos passa desapercebido o fato de que o 1º Batalhão de Choque da Polícia Militar do Estado de São Paulo possui uma história muito anterior à guerrilha dos anos 70 do século passado, mas em face da gravidade de tais eventos, com a morte de diversos policiais para a obtenção de armamentos ou até mesmo em face de confrontos armados ou como consequência da ação operacional da guerrilha então existente, houve uma especialização na atividade do mencionado batalhão, bem como foi criado o seu correspondente rural e florestal, mais precisamente o Comando de Operações Especiais (COE). Acreditamos que a história da polícia brasileira deverá ter um capítulo à parte com relação aos anos 70 do século XX, existindo muito a ser dito, admirado e criticado. Porém, no momento, ainda existem paixões por parte dos protagonistas vivos e dos seus seguidores, o que impede uma visão sem filtros e mais próxima da realidade.
[9] O assunto é polêmico e é objeto de críticas, uma vez que alguns policiais reclamam de terem sido prejudicados pelo programa instituído pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, com a finalidade da avaliação psicológica e o acompanhamento, uma vez que teriam sido afastados das suas funções e dos seus locais de serviços. Respeitadas as opiniões diversas, o fato é que todas as pessoas que já passaram por uma situação de confronto envolvendo a morte de uma outra pessoa, seja ela de agressores ou de colegas, de alguma forma mudaram. As pessoas não reagem da mesma forma, sendo que algumas ficam repassando os fatos para tentar entender se poderiam ter feito algo de forma diferente. Já outras pessoas se sentem culpadas por terem destruído uma vida, entrando em um campo místico que pode levar a resultados muitos diversos. Há ainda pessoas que rezam pelas pessoas que morreram e até chegam a mandar rezar uma missa, dentro de um processo de compensação interna. Também existem ainda pessoas que podem desenvolver prazer em matar. Porém, uma coisa é certa, a cada novo confronto com morte, a situação de culpa da pessoa, mesmo que de fato não exista, vai piorando, podendo chegar até ao suicídio, ou ainda, o resultado morte acaba sendo algo mais comum e aceito pelo operador com a sua desumanização. O risco da banalização da morte pela própria morte é algo real que precisa ser considerado. Inclusive, no meio militar a ação continuada de combate, com mortes e com o risco da própria morte, pode gerar uma desumanização que pode redundar na dificuldade de se readaptar à vida civil. O exemplo mais claro do que está sendo dito, está presente no número elevado de jovens que retornaram das guerras promovidas pelos Estados Unidos da América e acabaram se envolvendo em incidentes graves com civis e forças de segurança pública interna. No âmbito do Estado de São Paulo, sensíveis aos fatos acima mencionados, criou-se o Programa de Acompanhamento e Apoio ao Policial militar (PAAPM), o qual substituiu o Programa de Acompanhamento a Policiais Militares Envolvidos em Ocorrências de Alto Risco (Proar) – criado em 1996, tendo como ação imediata o afastamento automático do policial militar envolvido em uma ação que resultasse em morte. Com as atuais mudanças de orientação, o policial militar, em qualquer ação de risco ou estresse excessivo, passou a ser encaminhado para uma avaliação psicológica no Centro de Assistência Social (CAS) do programa, que na capital fica no Canindé, na zona norte da capital. Respeitosamente, entendemos que nada é perfeito, mas é melhor ter uma preocupação com o homem, mesmo que precise passar por aperfeiçoamentos, do que simplesmente ignorar os efeitos da morte em face da ação policial sobre o policial.
[10] O Manual de Campanha – Batalhões de Infantaria do Exército Brasileiro, na sua p. C7-20 demonstra bem a diferença de finalidades de uma operação militar para uma ação de polícia, como se observa: “4-3. FINALIDADES. As operações ofensivas são executadas com uma ou mais das seguintes finalidades: a. destruir as forças inimigas; b. conquistar acidentes capitais do terreno; c. obter informações sobre o inimigo; d. privar o inimigo de recursos que lhe sejam necessários; e e. desviar a atenção do inimigo de outras áreas”.
[11] A legítima defesa preventiva representa a ação contra aquilo que no futuro poderá representar um risco mas que necessariamente não existe de forma atual ou iminente. Projeta-se no futuro a expectativa de que algo representará um risco, autorizando-se, com isso, uma medida preventiva contra a expectativa da ameaça. O primeiro exemplo que se possui conhecimento de tal ação, ocorreu no porto da cidade de New York, oportunidade em que navios da marinha inglesa afundaram navios que supostamente iriam levar armas e suprimentos para os insurgentes da colônia do Canadá, logo após o fim da guerra de independência do Estados Unidos da América. Posteriormente, tal justificativa foi utilizada na invasão do Iraque, no ano de 2003, com a alegação da existência de armas químicas e biológicas no arsenal iraquiano para serem usadas contra o ocidente e os seus aliados na região.
[12] A questão da solução do problema da criminalidade pela supressão de criminosos, seja de forma legal, através da pena de morte, como de forma informal através de execuções criminosas, condutas que já se verificaram em diversos países ao longo da história, embora provoque a eliminação do problema pontual trazido por um determinado criminoso, não representa um solução efetiva da questão envolvendo a segurança pública interna. No passado, em uma das conversas que tivemos a oportunidade de ter como o então Desembargador Dirceu de Mello, nosso orientador e então presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, mais precisamente, a respeito da ação do chamado “esquadrão da morte” no Estado de São Paulo, pudemos entender que o processo da violência é cíclico e com tendência a se intensificar. Quando se busca a solução de problemas complexos, apenas com o uso da força, o que recebemos é uma força contrária que não necessariamente na mesma intensidade. Ao executarmos criminosos, embora seja solucionado o problema do criminoso, não está resolvido o problema da revolta causada nas pessoas da sua família e da sua comunidade, o que pode gerar uma revolta maior e causar um risco social mais elevado. Além disso, como o próprio Desembargador Dirceu de Mello nos disse, a respeito da chamada Lei de Crimes Hediondos, a qual não continha qualquer medida extrema como a morte, “o indivíduo que não possua qualquer esperança se torna algo ainda mais perigoso para a sociedade”.
[13] Ainda durante a nossa infância, pudemos frequentar muitos circos e uma das coisas que sempre nos impressionou era a forma como os domadores controlavam as feras muito maiores que eles, apenas com o barulho de um chicote e com as pontas das pernas de uma cadeira de madeira. A magia estava na forma como os animais eram controlados sem que nada do aparato utilizado tocasse na pele deles. Passados os anos, bem como persistindo a curiosidade, pudemos descobrir que a magia não estava na lesão ou não dor, mas no temor que aqueles símbolos causavam. Inclusive, caso o animal percebesse que o chicote e a cadeira não poderiam causar uma dor maior do que eles imaginam, não existiria a intimidação, bem como, eventualmente, o domador poderia ser atacado e ferido. O exemplo apresentado serve mostrar que o uso de miliares na ação de garantia da lei e da ordem, em especial, no caso de uma intervenção com os militares passando efetivamente a realizar o comando e a ação de segurança pública interna não é positivo. Isso porque, sempre há a imaginação, embora equivocada, de que os militares são mais honestos, treinados, equipados e preparados para tudo. O efeito cinematográfico alimenta a imaginação das pessoas, mormente as películas envolvendo forças especiais. Porém, o mesmo militar que seja um especialista no combate na selva, na caatinga, na montanha, com explosivos e com armas especiais, pode ser um fiasco na ação de segurança pública interna em uma comunidade. Isso ocorre porque são atividades distintas, com treinamentos diversos. O problema acaba sendo maior quando se percebe que o militares na são mais eficientes do que os policiais, o que intensifica a sensação de insegurança. Anota-se que embora as Forças Armadas tenham iniciado programas de treinamento específico para as missões de garantia da lei e da ordem, ainda existirá a diferença de pensamento e de doutrina entre militares e policiais. Também, o militar submetido ao contato direto com pessoas ligadas ao tráfico de drogas, as quais movimentam valores expressivos de dinheiro, poderão ser corrompidos, até porque muitos dos militares são jovens conscritos vindos das próprias comunidades.
[14] Algo que precisa ser comentado, embora de forma superficial, uma vez que não comporta uma discussão mais aprofundada no presente trabalho, é o fato de que tivemos um Congresso Constituinte e não uma Assembleia Nacional Constituinte em 1988, ou seja, os representantes eleitos para o Congresso Nacional foram os mesmos que tiveram a missão de redigir a Carta Constitucional de 1988, motivo pelo qual fizeram uma carta com ideais parlamentaristas em um sistema presidencialista, bem como misturaram normas com princípios, além de matérias tradicionalmente constitucionais com ordinárias, acabando por resultar em um sistema político e jurídico confuso e engessado
[15] O Marechal Floriano Peixoto, então segundo presidente da recém proclamada República do Brasil, o qual enfrentou diversas crises políticas internas, atuou com rigor no seu governo, chegando a substituir o comando da maior parte dos estados federados por pessoas da sua confiança, bem como visando conseguir uma melhor relação com o Supremo Tribunal Federal, nomeou o médico Cândido Barata Ribeiro através do Decreto de 23 de outubro de 1893, o qual tomou posse em 25 de novembro de 1893, embora o seu nome não tenha sido referendado pelo então Congresso do Brasil, no ano de 1894, uma vez que não detinha o chamado “notável saber jurídico”. Importante mencionar que foi um período especialmente conturbado por revoltas, destacando-se a chamada Revolução Federalista e os episódios de mortes e deportações de opositores. Acreditamos que o Marechal Floriano Peixoto, o qual não poderia ser presidente uma vez que era o vice-presidente de um país cujo o presidente anterior não tinha ficado dois anos no comando, conforme o sistema da época, é um bom exemplo do que defendemos pela explicação da visão do militar para o civil.
[16] Embora o presidente da república Getúlio Vargas não fosse um militar e sim um civil com uma formação jurídica, é inegável a sua proximidade e aderência a forma de pensar dos militares da época, mormente após a chamada revolução contra a política do “Café com Leite” de 1930, passando o país por um período de governo provisório de 1930-1934, momento em que ocorreu a dissolução do Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas Estaduais e Municipais, bem como a substituição dos governadores dos Estados por interventores nomeados por Getúlio Vargas. Anota-se que a Constituição de 1891 tinha sido anulada e outra somente foi promulgada em 1934, após a chamada “Revolução Constitucionalista”, passando por um período de democracia, embora Getúlio Vargas tenha sido reeleito pelo voto indireto, voltando a um período não democrático que foi de 1937-1945 (Estado Novo). No mencionado período, houve supressão de garantias e direitos individuais, bem como foi previsto, na Constituição Federal de 1937, hipóteses de pena de morte para crimes comuns em tempo de paz.
[17] A chamada “Revolução de 1964”, ainda recente e marcada por paixões que retiram a possibilidade de uma análise mais racional e real do que efetivamente significou, marcou um período de supressão ou pelo menos de severa limitação de direitos e de garantias individuais, marcado por governos militares, limitação política e de violência interna.
[18] Apenas a título de exemplo, no dia 07 de abril de 2019, militares do Exército atiraram contra cinco pessoas que ocupavam um veículo, bem como contra um transeunte que tentou ajudar aquelas pessoas, tendo efetuado cerca de 80 disparos de armas de fogo, resultando na morte de duas pessoas e no ferimento de outras. Importante mencionar que a primeira nota do Exército teria sido no sentido de que os militares responderam ao fogo de criminosos e um deles teria restado morto no local. Porém, após a ação da imprensa, uma segunda nota informou o erro e disse que os militares teriam confundido a família com criminosos que ocupavam veículo semelhante. Como se observa, a forma de pensar e de agir são distintas, sendo certo que embora existam erros graves por parte das polícias, existe uma cautela institucional maior com relação ao uso da força.