667 - A instrumentalização pragmática do habeas corpus

 

Júlio César D’Oliveira [1] [2] - Assistente judiciário do TJSP

 

Resumo: A movimentação da máquina judiciária, especialmente no Estado de São Paulo, é colossal.  De modo geral, o estrépito causado pela judicialização dos mais improváveis, diversos e numerosos atos sociais, dos quais as partes não conseguem solucionar de forma particular, provocam na administração judiciária o ingurgitamento indesejado de sua estrutura. É cediço que o sistema de leis nacional prevê o necessário para que os pleitos tramitem pelas vias adequadas, sendo estas bem adaptadas para cada caso específico. Entretanto, estreitando-se ao campo do Direito Criminal, é notável a crescente utilização do habeas corpus, de forma muito abrangente, o que pode provocar certo descompasso da segura tramitação da ação penal ordinária. Com tal premissa, este artigo pretende observar, sob a ótica do método jurídico-pragmático, um novo horizonte técnico de leitura da realidade levada aos Tribunais. Para tanto, importante percorrer os caminhos iniciais do remédio heroico, buscando compreender seu significado originário e notar as transformações durante os tempos. Além disso, através de um raciocínio filosófico, buscaremos capturar a finalidade e o valor do writ nos dias atuais, colocando luz à possível nociva generalização de seu uso.

 

Palavras-chave: Direito. Filosofia do Direito. Habeas Corpus. Pragmatismo. Raciocínio Jurídico. Finalidade e Valor.

 

Introdução

 

Inicialmente é honesto informar ao leitor deste artigo que não trataremos da estrutura do habeas corpus em moldes acadêmicos, mas sim, buscaremos demonstrar a importância da compreensão do nível de cognição epistemológica de sua aplicação como ferramenta social de cunho constitucional.

 

É cediço que deve-se lançar mão desta modalidade de manifestação em situações nas quais o direito de locomoção está comprometido injustamente, isto é, quando a liberdade de ir e vir do indivíduo, pessoa física, é cerceada de modo indevido[3]. Esta é a virtude genética do habeas corpus, cuja prática pode ocorrer tanto de modo liberatório, ou seja, quando sua função visar derrogar a coação ilegal em evento presente, quanto de modo preventivo, no qual a intenção seja de prevenir ou evitar a coação ilegal iminente, desde que verificado o fator de ameaça indevida.

 

Disso podemos perceber claramente o sentido teleológico, quer dizer, que tenha relação com sua causa final, representado pelo pedido de imediata ruptura das agruras que impeçam a locomoção da pessoa física, desde que seja constatado que o motivo seja injusto, bem como o sentido axiológico, isto é, acerca do valor do remédio heroico que, suscitado diligentemente, tem o poder de fazer as vezes de proteção da liberdade daquele que o requer, desde que esteja em circunstância indicativa do indesejado constrangimento ilegal, podendo esta ser observada flagrantemente, sem a necessidade de se esmiuçar provas.

 

Entretanto, há uma tendência de, pela via estreita do writ[4], se reclamar questões que desbordam suas contingências de utilização ordinária. Dito isto, se por um lado seria indesejável o tratamento de questões que não se amoldam a este procedimento, por outro deve-se reter atenção às questões que apontem crises das quais se possa inferir imediatamente o constrangimento ilegal que afronte a liberdade física do paciente, fazendo cessar prejuízos irreparáveis, sendo estes atuais ou futuros.

 

Nesse aspecto é muito caro ao operador do Direito possuir a acuidade necessária para perceber o que é um conceito abstrato e ainda não se tornou real. Ou seja, a substância do conceito ainda não se materializou, até então não mostrou sua face ao mundo, se é que assim o fará.

 

Segundo os valiosos ensinamentos de Kant, que indicava ser a liberdade o único direito inato da humanidade[5], vejamos:

 

Toda legislação (prescreva ela acções internas ou externas, e estas quer sejam a priori mediante a mera razão quer sejam mediante o arbítrio alheio) compreende dois elementos: primeiro, uma lei que representa objectivamente como necessária a acção que deve ocorrer, quer dizer, que converte a ação em dever; segundo, um móbil que liga subjectivamente com a representação da lei o fundamento de determinação do arbítrio para realização dessa acção. Assim, o segundo elemento consiste em que a lei faz do dever um móbil. Por meio do primeiro elemento, a acção é representada como dever, o que é um conhecimento meramente teórico da possível determinação do arbítrio, quer dizer, das regras práticas; por meio do segundo, a obrigação de agir desse modo liga-se no sujeito com um fundamento de determinação do arbítrio em geral.[6] (sic).

 

Com tal perspectiva é possível utilizar a análise jurídico-pragmática como método para auxiliar nesta investigação e buscar a compreensão reflexionada de qual seria o melhor sistema de prestação jurisdicional para cada caso em concreto. Para tanto, alerte-se, os dogmas[7] devem ser suavizados, senão rompidos, dando espaço para a efetivação justa do ato judicial reagente que deve buscar a estabilização da crise.

 

Será exatamente este o objeto de estudo deste artigo. Para tanto, analisaremos os fatos com o recorte atual acerca do modo como os Tribunais vêm lidando com a instrumentalização do writ. Tal delineamento focará nas postulações impetradas, que, mesmo não sendo conhecidas pela inviabilidade da cognição em decorrência da matéria, acabam por proporcionar certo êxito mandamental para salvaguardar alguma situação que, embora muitas vezes não possua cerne de cunho constitucional, necessita de amparo imediato evitando-se eventuais prejuízos.

 

Breve contexto histórico de atuação do writ

 

Basicamente, algumas obras da doutrina do Direito, da História do Direito e da Filosofia do Direito informam que o habeas corpus[8] se originou em Inglaterra, sendo sua primeira previsão verificada na Magna Carta do Rei João-Sem-Terra, datada de 19 de junho de 1215, cuja criação restou do acirramento das pressões impostas pelos “barões do ferro”. Entretanto, outras obras apontam que esta salvaguarda teria surgido em 1679, em Espanha, no reinado de Carlos II[9].

 

Desde há tempos, portanto, a cultura humana tem a necessidade de representar e tutelar a liberdade física individual, propiciando premente restabelecimento da locomoção do paciente, desde que caracterizado eventual injustiça no ato. E isso, note-se, tem o espectro de um poder efetivo, a partir do momento em que qualquer um do povo puder suscitar consequências imediatas para desarranjar a arbitrariedade demonstrada, de tal modo que, mesmo perfunctoriamente possa ser verificada, prescindindo, ainda, de postulação para tanto. Aqui está a força deste instrumento.

 

No Brasil, a figura do habeas corpus foi inserida no Código Criminal do Império, em 1932. Desde lá buscou-se ampliar seus limites. Tanto o texto constitucional, quanto o processual, prescrevem que esta ação mandamental tem campo de atuação, não só quando o direito ora tutelado já está prejudicado, mas também quando estiver em ameaça, ou seja, quando a pessoa estiver na iminência de sofrer a lesão do seu direito de locomoção. Porém, questões que desbordem tal premissa não devem ser tratadas por este caminho, tais como proteções ao direito líquido e certo, sobre o qual pode-se dispor do mandado de segurança e assim sucessivamente, sob pena de se descaracterizar a nobreza deste instrumento, que, como já mencionado no início deste trabalho, deve ser reservado à tutela do único direito inato da humanidade, a liberdade.

 

Ainda no âmbito nacional, o habeas corpus teve protagonismo durante praticamente toda nossa história legislativa, desde o Império até a República.

 

Destaque-se, entretanto, que em 1968, durante o período marcado pelo Governo Militar, estabeleceu-se o Ato Institucional nº 5, que dispôs em seu art. 10: “Fica suspensa a garantia do habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social, e a economia popular”.

 

Mas esta caliginosa parte da nossa história chegou ao fim em 13 de outubro de 1978, no Governo de Ernesto Geisel, quando foi promulgada a Emenda Constitucional nº 11, cujo art. 3º revogava todos os atos institucionais e complementares que fossem contrários à Constituição Federal, nos seguintes termos: “(...) ressalvados os efeitos dos atos praticados com base neles, os quais estão excluídos de apreciação judicial”, restaurando o habeas corpus, em que pese somente ter entrado em vigor no dia 01 de janeiro de 1979. Portanto, não se permitiu, por mais de uma década, que os pacientes vissem a luz do remédio heroico.

 

Vale ressalvar que a segurança proporcionada pelo habeas corpus não necessariamente deve ter como figura coatora a autoridade pública. Pode ser que o caso indique que o coator seja pessoa particular e da mesma forma haverá efetividade na sua atuação, embora este tipo de situação seja pouco frequente.

 

Aclaramentos sobre a compreensão do Pragmatismo-Jurídico

 

A fim de balizarmos o pensamento e indicarmos de modo mais preciso o vetor para conversão à presente matéria, essencial conceituar o núcleo deste trabalho, proporcionando melhor entendimento sobre o instituto da Filosofia denominado Pragmatismo[10], mas convergindo-o ao campo jurídico.

 

É vital fundamentar inicialmente que a condição de se trabalhar com as dimensões jurídicas e filosóficas promove o enriquecimento da atuação prática, pois torna a teoria, realidade, e o metafísico, concreto.

 

Pois bem, conceituar o Pragmatismo, especificamente no campo jurídico, demanda certo repertório filosófico sobre o tema, pois a conexão entre o Direito e a Filosofia provocam análises sociais cotidianas das quais podem derivar novos modos de compreensão de vida. A Filosofia do Direito, portanto, desperta, germina, e estimula reflexões, enquanto a Ciência Jurídica se encarrega da prática.

 

Decerto, o Pragmatismo consiste num método[11] decorrente da semiótica, doutrina esta que estuda todos os tipos possíveis de signos[12], alicerçada na teoria dos métodos de investigação utilizados por uma inteligência científica, que por sua vez deve ter como base a ética e que tem como finalidade determinar quais são as categorias mais vastas, gerais e universais da experiência.[13]

 

Para melhor compreensão sobre o termo Pragmatismo, destaca-se:

 

O significado pragmático, segundo Peirce, é aquele que de algum modo tem reflexo na conduta prática de vida. Aprofundando-se a máxima do pragmatismo tal qual enunciada por Peirce, justifica-se essa definição pelo entendimento de que a conduta é a dimensão exterior dos conceitos na medida em que esses se referem a objetos mundanos, a saber, objetos que fazem parte do mobiliário fenomênico que constitui a experiência humana. Assim, na interação dos universos teórico e experiencial é que se consuma toda significação positiva possível – em tal interação se desenvolvem as crenças humanas como hábitos de ação. Sob esse enfoque, é forçoso pôr em relação duas dimensões do pensamento peirciano: a Semiótica, na medida em que reflete sobre a relação entre signos, objetos e interpretantes, e o Pragmatismo, como princípio que reza que toda significação positiva deve afetar a conduta.[14]

 

O Pragmatismo, por ser um método, utiliza a ferramentas de análise consistentes nos três tipos de raciocínio, quais sejam: a abdução, a dedução e a indução[15], para que se possam selecionar elementos que tenham consequências na conduta prática e viabilizem a melhor compreensão dos fatos como fenômenos.[16]

 

Com vistas a isso, segundo o próprio Peirce:

 

O pragmatismo é uma teoria da análise lógica ou definição verdadeira; e seus méritos são maiores na sua aplicação às mais altas concepções metafísicas. Ao mesmo tempo, esses méritos só podem ser apreciados como resultado de longo treinamento.[17]

 

Desta forma, conclui-se que todos os raciocínios voltam-se para a ideia de que se alguém exerce certos tipos de vontade, sofrerá em retorno certas percepções compulsórias, que serão implicações da experiência prática.  Isso justifica a crença em que constitui o Pragmatismo.[18]

 

Neste contexto, ganha consistência a tese pragmática peirciana acerca do reconhecimento de que a ação desvela o aspecto interior, daquilo que não temos acesso. Em outras palavras, “o mundo interior somente parece ser cognoscível através da maneira pela qual se torna existente em alguma pluralidade de atos”.[19]

 

Ressalta-se que o campo experiencial propicia a análise dos fenômenos, ou seja, dos elementos da realidade que estão à disposição perceptiva de todos, em qualquer lugar, a todo momento.

 

Ibri, com essa exegese, explica que:

 

Não há porque, segundo Peirce, duvidar da veracidade dos sentidos, afirmando que a própria física do futuro descobrirá que eles são mais reais do que o atual estado do conhecimento permite verificar. Dentre as conferências proferidas pelo autor em Harvard (1903) sobre o pragmatismo, destaca-se Pragmatism and Abduction, onde ele apresenta sua teoria da percepção judicativa associada à abdução. Nela Peirce propõe o que ele denomina três proposições cotarias, com as quais pretende afiar a máxima do pragmatismo. A primeira é "nihil est in intellectus quod non prius fuerit in sensu"[20], entendendo por “intelectus” o significado de qualquer representação em qualquer tipo de cognição, virtual ou simbólica" e, por in sensu como sendo “num juízo perceptivo, o ponto de partida ou primeira premissa de todo pensamento crítico controlado”. Sua segunda proposição é que “os juízos perceptivos contém elementos gerais, de tal modo que proposições universais deles são dedutíveis, conforme a lógica das relações mostra que proposições particulares, usualmente, para não dizer invariavelmente, permitem que delas sejam inferidas proposições universais.” A terceira proposição, de sua vez, enuncia que “a inferência abdutiva transforma-se gradativamente no juízo perceptivo sem qualquer linha nítida de demarcação entre eles; ou, em outras palavras, nossas primeiras premissas, os juízos perceptivos, devem ser considerados como um caso extremo das inferências abdutivas, das quais diferem por estarem absolutamente além da crítica.[21] (sic).

 

Portanto, o pragmatismo, por conta de seu caráter interativo com o raciocínio, revela-se como método de compreensão do processamento das experiências. Desta feita, pode-se dizer que o juízo perceptivo, que também é constituído por elementos intrínsecos às formas de raciocínio[22], estende ao pragmatismo vias que proporcionam maior compreensão em relação ao contato com a realidade.

 

Deste modo, o processo lógico fruto desta relação será beneficiado pela proveniência de padrões capturados pela percepção, processados pelas formas de raciocínio e concluídos pelo método pragmático.

 

Mas agora, destacando exclusivamente o denominado pragmatismo-jurídico, há outros grandes nomes que merecem destaque por terem proporcionado grande propulsão sobre esta matéria, especialmente a Oliver Wendell Holmes Jr, a quem se atribui o seguinte aforismo: “(...) a vida do Direito não é a lógica; ela é a experiência.”[23].

 

Com esta perspectiva, a atuação judicial tem o papel predominante em se ater às necessidades sociais atuais, objetivando uma orientação concreta sobre os fenômenos que reclamam ante à simples metodologia a silogismo baseado em abstrações dogmáticas.

 

Cremos, pois, que a compreensão e consequente domínio deste método, tomado como uma Fonte Hermenêutica do Direito, de cunho epistemológico, pode proporcionar notável desenvolvimento na aplicação das regras jurídicas aos casos concretos, com vistas à realidade dos fatos.

 

O descrédito das impetrações puramente sofísticas[24]

 

Aquele que analisa uma estrela distante, luminosa e que mergulha na imensidão do espaço, pode estudá-la sob o ponto de vista contemplativo, da admiração. Mas aquele que analisa um problema de vida, que envolve a liberdade de outrem, deve se ater à realidade dos acontecimentos.

 

A impetração do writ, assim como de qualquer outra peça processual, de modo puramente sofista, em que pese possa ser elaborada com boa retórica, não merece satisfação exitosa quando os fatos reais ficarem disfarçados pela fantasia da escrita convincente. Quando certas questões se apresentarem nestes moldes, deve-se buscar desvelar a realidade dos acontecimentos, muitas vezes escondida atrás do véu estendido pelo mediador proponente, ora impetrante.

 

Sabemos que a manifestação escrita de algo que ocorreu é meramente uma representação de impressões. E mesmo assim, nem há certeza daquilo que realmente ocorreu, pelo ponto de vista de quem analisa os escritos.

 

O uso retórico do writ pode representar um plano meramente emocional e, em casos assim, o leitor deve redobrar sua acuidade sensível acerca da realidade dos fatos. Nem de longe pretendemos dizer que o bom uso da palavra deve ser abandonado. Mas o cuidado na sua utilização deve ser trabalhado em paralelo em relação à mais próxima representação da verdade, evitando-se as licenças poéticas desnecessárias à seriedade dos temas abordados, pois a dignidade do habeas corpus, como um instituto jurídico-democrático, deve ser elevada ao patamar de quintessência das salvaguardas sociais.

 

Durante a análise dos casos representados através da via do habeas corpus, há que se buscar algo mais profundo que a verossimilhança trazida. As provas pré-constituídas devem ter força tal que façam arder os olhos do julgador. A aderência dos fatos com a realidade deve reclamar sua existência.

 

O elemento principal de análise dos habeas corpus deve ser trazido de plano, descartando-se abstrações genéricas e evitando-se golpes retóricos tais que impeçam a visualização clara de eventual constrangimento ilegal. A dialética erística, ou seja, a habilidade em refutar e sustentar teses antagônicas, no caso, devem ser evitadas em prol do princípio do dever da boa prestação jurisdicional (da eficiência), tanto por parte de quem provoca o sistema judiciário, quanto do próprio julgador.  

 

Como resultado da instrumentalização ética e responsável do habeas corpus pelo impetrante, a autoridade judicial, será poupada de abordagens desnecessárias, e o destinatário último da análise, ou seja, o paciente, receberá o que lhe for de direito de modo mais eficaz, caso faça jus. Afinal, o que deve produzir mais valor à análise são as evidências inferidas e não as opiniões desferidas.

 

A utilização do writ como ferramenta genérica

 

É fulcral que a discussão da matéria abordada no writ possa, em algumas situações, desbordar as denominadas provas pré-constituídas acostadas na impetração, prescindindo do devido acompanhamento da tramitação processual regular da ação penal, campo este mais apropriado para análise em profundidade das provas, por exemplo.

 

Entretanto, o contrário disso é o que corriqueiramente sucede. Inúmeras matérias são suscitadas pelos impetrantes e conhecidas pelos Tribunais, descaracterizando a linha de ouro que deve reger-se pela ontologia do habeas corpus.

 

Desta feita, possuindo o habeas corpus uma propriedade de cognição sumária diante do que é apresentado como sendo um desvirtuamento da correta tramitação processual e, portanto, que eventualmente seja gênese de um constrangimento ilegal, deve-se garantir que o apontado reclamo seja mesmo uma ofensa ao direito afeito à liberdade de locomoção do paciente para, consequentemente, suprir eventual prejuízo.

 

Com exceção disso, não devem ser conhecidas através do writ questões que possam ser bem solucionadas pelos meios recursais adequados, a fim de se evitar o prejuízo que a malfadada abertura extremada já causa ao atual sistema processual, o que pode ser inferido pelo inchaço da máquina judiciária, dada a facilidade ímpar de instrumentalização do writ. Ocorre, pois, que o conhecimento do mandamus inapropriadamente viabiliza medidas mais dinâmicas sem a necessidade de enfrentamento da mesma matéria pelas vias de manifestações adequadas e prescritas legalmente.

 

Atualmente, numa abordagem mais abrangente, o procedimento adotado pelos Tribunais, em especial os Superiores, é de não se conhecer da ordem, dada a utilização do writ como substituto recursal, mas conceder ex officio o pedido, excepcionalmente, quando a ilegalidade apontada for flagrante, mesmo que a matéria aventada seja diversa de sua alçada.

 

Mesmo assim, defensores da linha mais tradicional do writ não admitem a mera apreciação da impetração em situações que apresentem desnível da procedimentalidade específica, mantendo a postura reiteradamente decidida pelo Supremo Tribunal Federal em certas ocasiões, ou seja: “(...) o habeas corpus e a sua utilização promíscua deve ser combatida, sob pena de banalização da garantia constitucional”[25].

 

O certo é que, caso seja mantida a postura de se conhecer matéria diversa do habeas corpus através de sua própria instrumentalização, o descrédito deste tão essencial expediente democrático pode se agravar mais e mais diante do universo de manifestações neste sentido que são despejadas às portas do judiciário diariamente.

 

A equação lógica ideal para a instrumentalização do writ

 

O processo judicial é uma espécie de motor dependente de algumas ignições para que o conjunto de peças e sistemas se torne plenamente estável e funcione como previsto, garantindo-se o denominado devido processo legal. O campo penal, por sua vez, é a seara em que a liberdade do indivíduo representa a infungível monetæ negotiatione [26] em relação à reprovável conduta social não admitida ou não desejada pelo Estado.

 

Desta forma, cada fase merece o cuidado necessário para o funcionamento eficaz deste motor. Assim, é preciso verificar se todas as condições e elementos estão presentes com o intuito de formar-se um juízo de valor apropriado, ou seja, mais próximo à realidade possível.

 

No caso do habeas corpus, possuindo natureza jurídica de ação autônoma de impugnação, cuja qualidade é mandamental, com status constitucional[27], sua atuação se dá por vias paralelas à ação penal, ou mesmo antes desta se iniciar, isto é, ainda na fase pré-processual.

 

Destarte, apenas para fixar, o habeas corpus é representado por uma ação autônoma, assim, independente da ação penal ou do inquérito policial em curso; possui natureza mandamental, ou seja, verificado o apontado constrangimento ilegal, é a via adequada para a determinação de sua cessação imediata; e tem status constitucional, sobre o qual pesa a garantia do direito fundamental à liberdade individual[28].

 

Em que pese o writ ter a característica de um procedimento sumário e, portanto, ser sua cognição limitada ao recorte de parte da tramitação processual ou de certa fase pré-processual na qual se verifique a ocorrência de ato que configure constrangimento ilegal, já ocorrido ou iminente, que se pretende corrigir ou salvaguardar, não é próprio nem adequado a esta via a dilação ou a ampla discussão probatória.

 

Pois bem, aqui sugerimos aos operadores do Direito uma forma de percorrer numa dimensão técnico-mental as fases para a elaboração e a compreensão, visando obter o melhor resultado do problema apresentado judicialmente. Para tanto, a concepção de um ‘rito de ofício’ torna-se necessária de modo a formar um hábito consistente para as análises dos casos.

 

Nota-se que o silogismo utilizado no raciocínio jurídico, cujas fases são bem definidas e compostas pela tese,  antítese e síntese são elementos que perfazem qualquer processo judicial. Não é diferente no caso de impetração de um habeas corpus.

 

Assim, o magistrado, autoridade estatal investida de jurisdição, cuja responsabilidade se justifica por ser este destinatário da análise dos pedidos postulados, tem como base, além das imprescindíveis capacidades técnica e intelectiva, também a necessária imparcialidade para a boa condução dos procedimentos visando a resolução da lide de forma justa. Com tais pressupostos, seria muito apropriado a utilização do recurso denominado epokhé [29], desde há muito utilizado pelos céticos gregos para suspender o juízo.

 

Por óbvio que se trata apenas de um contato inicial com o caso trazido às portas do Judiciário. Esse exercício mental forçosamente decorrerá após o estado de latência provocado por eventual abdução[30]. Esse é o passo inicial antes da formulação da equação lógica visando eliminação de incógnitas.

 

Seguindo-se a esse iter sugerimos atenção às fases em que possam predominar as outras duas formas de raciocínio consistentes na dedução e na indução.

 

Pois bem, a fase dedutiva é determinada pelo movimento mental de conformação das consequências necessárias oferecidas pelas hipóteses e a fase indutiva verifica a concordância entre os pontos observados na experiência e do julgamento adequado da hipótese, viabilizando sua aceitação, além de alertar quanto a necessidade de eventual correção ou mesmo a rejeição completa do que foi inicialmente percebido.[31]

 

Referência da jusfilosofia no Brasil, Miguel Reale concordava com tais elementos metodológicos de compreensão e reforçava este pensamento quando dizia que o método indutivo se caracteriza por ser um processo de raciocínio que se desenvolve a partir de fatos particulares até atingir uma conclusão de ordem geral, mediante a qual se possa explicar o que há de constante ou comum nos fatos observados em outros da mesma natureza.[32]

 

Ainda nesta proposta de estrutura técnico-mental, o processo dedutivo se caracteriza por ser uma forma de raciocínio que, independentemente de provas experimentais, se desenvolve em decorrência de algo já conhecido, observando as inferências das proposições, ou seja, as consequências essenciais do pensamento.[33]

 

Destarte, a concatenação dos processos dedutivo e indutivo auxiliam na formação dos elementos de convicção durante o percurso mental do raciocínio. Mas este procedimento proposto por Reale pode ser ampliado através da arquitetura filosófica peirceana, que se prestará a preparar-nos para uma leitura pragmática dos fatos apresentados em juízo.

 

Pois bem, o ‘rito de ofício’, ou seja, o iter rationem ora proposto, consistente nas seguintes etapas mentais: abdução; epokhê; dedução; e indução. E pode ser empregado pelos operadores do direito em seu mister. Diga-se que inconscientemente já assim o fazemos, mas sem a consciência da necessidade da suspensão do juízo. Contudo, é importante ter conhecimento sobre as propriedades efetivas de cada fase para atribuir maior nível de qualidade e excelência ao exercício elaborativo mental no estudo dos casos judiciais.

 

Considerações finais

 

A breve exposição deste artigo pretendeu alertar em relação à distância existente entre os membros sociais e suas capacidades de solucionar os próprios conflitos ou mesmo de evitar que estes ocorram, causando a movimentação extremada da máquina judiciária. Talvez a compreensão sobre o afastamento de questões básicas, como o autoconhecimento, a empatia e a ética, apresente um indício do que deve ser feito para a recuperação deste quadro social tão crítico. Ressalve-se que não é normal uma judicialidade tão densa como a qual convivemos.

 

Alerte-se, ainda, que no caso específico do habeas corpus e sua crescente utilização de forma desmedida, muito por conta da facilitação de sua instrumentalização, sem aderência com a realidade e muitas vezes apresentado com debilidade argumentativa, tem como consequência certo esvaziamento de seu elemento axiológico, causando descrédito desta importante ferramenta social, além de contribuir para engrossar as filas processuais.  

 

Por óbvio que toda e qualquer provocação levada às portas do Judiciário deve ser analisada a contento. Contudo, a estrutura da máquina judicativa, devido ao volume incessante de casos, obrigou-se a funcionar de modo repetitivo e automático rendendo-se à exigência social consistente na velocidade dos julgamentos.

 

Deste cenário se infere que o excesso de ações, nem todas consistentes, provoca o denominado fenômeno da judicialização extremada, somado à exigência social que reclama por julgamentos rápidos, faz resultar, muitas vezes, na ineficácia de todo o sistema pensado como realizador de justiça.

 

Uma séria e firme reforma processual é necessária, pois a utilização de forma imoderada da instrumentalização do habeas corpus provoca a divisão da atenção dos julgadores entre os casos que efetivamente não têm qualquer propósito em serem analisados por esta via, e os casos que realmente são o mote deste remédio constitucional e que de fato representam uma minoria diante da quantidade de ações neste sentido.

 

Com tais considerações, aliadas à proposta do ‘rito de ofício’, sendo no fundo um raciocínio jurídico-instrumental, entendemos que restará à disposição do julgador elementos com maior clareza durante a análise das impetrações, visando a mais satisfatória produção decisória possível.

 

Referências

 

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SANTAELLA, Lucia. A Percepção, uma teoria semiótica. Editora Experimento, São Paulo, 1993.



[1] O presente texto, em parte, foi baseado num dos capítulos da minha monografia de Especialização em Direito Penal intitulada “Ensaio propedêutico para a aplicação da norma com ênfase na observação do método pragmático no âmbito do Direito Penal”, submetida à Escola Paulista da Magistratura de São Paulo, em 2018.

[2] Centro de Estudos de Pragmatismo, PUC/SP. juliodo@tjsp.jus.br.

[3] Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: Art. 5º, LXVIII – “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”; Código de Processo Penal: Art. 647: “Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar”.

[4] Writ, que na língua inglesa significa ordem, comando. Tal nomenclatura é utilizada comumente como sinônimo do habeas corpus, assim como também remédio heroico e mandamus.

[4] LOPES JR (2012, p. 1326).

[5] Cf. KANT (2017, p. 56).

[6] KANT (2017, pp. 26/27).

[7] A dogmática, com sentido de ser uma opinião centrista, segundo Kant, representa “O dogmatismo é, pois, o procedimento dogmático da razão sem uma crítica prévia da sua própria capacidade”. Vide KANT, Crítica da Razão Pura – B XXXV.

[8] Termo em Latim que literalmente significa “tome o corpo” e que tem como essência a expressão: “tome a pessoa presa e a apresente ao juiz para o julgamento do caso”.

[9] NORONHA (1974, p. 384).

[10] Trataremos basicamente do conceito de Pragmatismo proposto por C.S. Peirce (1839-1914), filosofo estadunidense que elaborou sofisticada estrutura teórica sobre o tema.

[11] IBRI, destaca em Kósmos Noetós (2015, p. 146): “O Pragmatismo não é um sistema filosófico, mas, tão somente, um método de análise filosófica de sistemas teóricos.”

[12] Cf. D’OLIVEIRA (2018, p. 42): “A semiótica examina que um signo é algo que representa uma coisa para uma mente. É uma mediação. Um primeiro que põe um segundo, seu objeto, numa relação com um terceiro, seu interpretante. O signo não afeta o objeto, mas é afetado por ele, de modo que o objeto deve ser capaz de transmitir o pensamento, ou seja, deve ser da natureza do pensamento ou de um signo”.

[13] Cf. SANTAELLA (1993, p. 34).

[14] IBRI (2014, p. 191).

[15] Cf. D’OLIVEIRA (2019, p. 52). As três formas de raciocínio são essenciais para o processamento do produto captado pelo aparelho sensorial, filtrando-o de modo que este, se necessário, possa ser empregado no ato seguinte ao complexo processo interior da mente, ou apenas estacionado e sequer notado pela razão. De qualquer forma, o fruto desta percepção estará à disposição caso seja relevante sua utilização. 

[16] Cf. D’OLIVEIRA (2018, p. 34).

[17] CP 6,490.

[18] Cf. CP 5,9.

[19] IBRI (2015, p. 144).

[20] Do Latim: “nada está no intelecto que não tenha primeiro passado pelos sentidos”. Tradução livre.

[21] IBRI (2006, p. 12).

[22] Vide D’OLIVEIRA (2019).

[23] HOLMES JR (2000).

[24] A Sofística, que não é uma escola filosófica, mas uma orientação genérica que os sofistas acataram como ferramenta profissional, pode acrescentar grande carga emocional aos casos levados aos Tribunais. Aristóteles já alertava que a sofística é uma sapiência aparente, mas não real (Cf. ABBAGNANO, 2015, p. 1086).

[25] Vide Habeas Corpus nº 107.863. STF, Rel. Min. Luiz Fux, j. 17.4.2012.

[26] Do Latim: moeda de troca.

[27] LOPES JR (2012, p. 1326).

[28]  Art. 5º, LXVIII, da Constituição Federal.

[29] Ato mental que representa a suspensão do juízo. Consiste em não aceitar nem refutar, em não afirmar nem negar. O contrário desta atitude é o dogmatismo, em que se dá assentimento a alguma coisa obscura (Cf. ABBAGNANO, 2015, p. 1086).

[30] Vide D’OLIVEIRA (2019). É também nomeada como retrodução ou inferência hipotética, responsável pelo ato de adoção provisória de uma suposição verificável por experimentação, num primeiro estágio do raciocínio investigativo, este que deve ser compreendido como uma ferramenta da mente que rastreia as evidências sujeitas à captação sensorial, embora não se descuide em saber que ainda esteja, em dado momento de sua atuação, caminhando pela vagueza do horizonte experiencial.

[31] Cf. CP 6,472.

[32] Cf. REALE (1999, p. 83).

[33] Ibid (p. 83).


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