668 - Violência doméstica e prisão preventiva: um enigma descortinado no Pacote Anticrime

Érica Marcelina Cruz [1] - Juíza de Direito no Estado de São Paulo

 

 

Resumo: Os delitos ocorridos no âmbito doméstico, quando noticiados, exigem resposta Estatal célere e efetiva, ao menos a fim de evitar mal maior à vítima, eis que, muitas vezes, está ao lado do agressor. Neste aspecto, o objetivo do presente é demonstrar que a medida cautelar consistente na imediata decretação da prisão preventiva do autor do crime, ainda que primário, a depender dos elementos do caso concreto, pode se traduzir na única solução jurídica imediata para salvaguardar o bem mais caro do ser humano: a vida. É por isto que a análise da necessidade prisional do suspeito da prática de crime de ameaça contra cônjuge, descendente ou ascendente no âmbito doméstico não pode se cingir apenas ao quantum da pena cominada, em abstrato, para o delito. Nesta toada, é inegável, ainda, concluir que a lei 13.964/2019 endureceu o sistema de justiça criminal ao estabelecer, v.g., a possibilidade de aprisionamento imediato no Tribunal do Júri, após sobrevinda de condenação à pena superior a de 15 anos (artigo 492, inciso I, alínea “e” do Código de Processo Penal). Não raras vezes, a pena in concreto a ser fixada em condenação do Tribunal do Júri pela prática pelo acusado do delito de feminicídio chega a este patamar. Logo, a função do juiz no sistema de justiça criminal e o aparato da polícia judiciária em contraponto com a prisão cautelar na modalidade preventiva ante a vinda do ‘pacote anticrime’ são temáticas intimamente afetas ao descortinamento de delitos cometidos no âmbito doméstico. 

 

Palavras-chave: Tribunal do Júri. Lei 11.340/06. Lei 13.964/19. Sistema de Justiça Criminal. Prisão.

 

Abstract: The crimes that occurred in the domestic sphere, when reported, demand a swift and effective State response, at least in order to prevent greater harm to the victim, since he is often on the side of the aggressor. In this regard, the objective of the present is to demonstrate that the precautionary measure consisting in the immediate decree of preventive detention of the perpetrator of the crime, even if primary, depending on the elements of the specific case, can be translated into the only immediate legal solution to safeguard the most cost of the human being: life. That is why the analysis of the suspect's prison need to commit a threat of crime against a spouse, descendant or ascendant in the domestic sphere cannot be limited to the quantum of the sentence imposed, in the abstract, for the crime. In this light, it is undeniable, still, to conclude that the law 13.964/2019 hardened the criminal justice system by establishing, for example, the possibility of immediate imprisonment in the Jury Court, after the conviction of a sentence of more than 15 years (article 492, I, “e” of the Criminal Procedure Code). Not infrequently, the concrete penalty to be fixed in condemnation of the Jury Court for the practice by the accused of the crime of femicide reaches this level. Therefore, the role of the judge in the criminal justice system and the apparatus of the judicial police in contrast to the preventive custody in the preventive modality before the arrival of the 'anti-crime package' are themes closely related to the disclosure of crimes committed at home.

 

Keywords: Jury court. Law 11.340/06. Law 13.964 /19. Criminal Justice System. Prison.

 

Introdução

 

Quando a sensação de impunidade é disseminada pela cena fático-jurídica e acomete os integrantes da sociedade, a busca por mecanismos de efetividade afloram para o julgador como fator primordial para continuidade da função de distribuir justiça.

 

Neste caminhar, alterações legislativas, especialização de profissionais atores do sistema de justiça (em especial: juízes e policiais), celeridade e efetividade de decisões se constituem em elementos indispensáveis para o restabelecimento da ordem e credibilidade estatal e, por assim o ser, continuidade da vida civilizada em sociedade.

 

É por isto que o aprimoramento no pensar o direito, o respeito às premissas basilares (direitos fundamentais: cláusulas pétreas – vigas mestras) e a compreensão do agente público no sentido de que está, diuturnamente, ‘a serviço da sociedade’ são nortes perenes.

 

A divulgação do ‘pacote anticrime’ e o olhar sob o enfoque do encarceramento se tornam diretrizes de necessária análise ante a estruturação do pátrio sistema de justiça criminal operante no Brasil, especialmente no que pertinente aos crimes cometidos no âmbito da violência doméstica e aos reservados à competência do Tribunal do Júri.

 

1. Intepretação e principiologia

 

É bom que se diga que a lei 11.340/2006 tem um conteúdo histórico e que pode ser compactado na ideia da mulher como titular da dignidade da pessoa humana equalizada pela concretude do princípio da igualdade.

 

O artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, consagrou a dignidade da pessoa humana como um valor fundamental da República Federativa do Brasil. Dignidade, do latim dignitas, que significa merecimento, respeito, nobreza. Dignidade é qualidade. Algo relativo à moral, respeito ou valor. Logo, a proposição “dignidade da pessoa humana” representa o valor, a qualidade intrínseca do homem enquanto ser. “A etimologia da palavra provém do latim dignitas, significando tudo aquilo que merece respeito, consideração, estima. Na antiguidade, o conceito de dignidade da pessoa humana estava ligado ao mérito, que poderia ser aferido pelo dinheiro, título de nobreza, capacidade intelectual, etc. Os gregos acreditavam que o que diferenciava os homens dos animais era a capacidade de empreender um pensamento lógico, utilizando uma linguagem própria, que era designada pela palavra locus, que representava a linguagem, a razão, advindo, assim, a necessidade de respeito aos homens por essa capacidade e distinção. Com o advento da ideologia cristã, em que o homem passa a ser concebido à imagem e semelhança de Deus, a dignidade passou a ser mérito de todos os seres humanos, independentemente de suas qualidades; como seres concebidos à igualdade e semelhança de Deus, a integridade dos homens faz parte da essência divina, merecendo, portanto, ser respeitada. O homem é dotado de um valor próprio, não podendo ser transformado em objeto. A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos (SIQUEIRA, 2009, p. 252).

 

A interpretação de norma protetiva, e porque não dizer que a decretação da prisão preventiva, não raras vezes, dada as peculiaridades do caso em concreto, pode se traduzir na única medida aplicável a fim de salvaguardar a integridade física e psíquica da vítima, bem como e de forma consequencial também resgatar a credibilidade da justiça face a quem foi, injustamente, maculada pelo agressor, por longo lapso temporal, deve ser a mais ampla possível. A interpretação teleológica é elevada neste contexto.

 

Os argumentos teleológicos-objetivos são aqueles em que quem argumenta se refere não a fins de pessoas realmente existentes no passado ou no presente, mas a fins “racionais” ou “prescritos objetivamente no contexto do ordenamento jurídico vigente”. Com isso surge a questão de que fim se deve contemplar como racional ou como prescrito objetivamente no ordenamento jurídico vigente. A resposta da teoria do discurso consiste em afirmar que são aqueles que estabeleceriam quem deve tomar decisões considerando-se o ordenamento jurídico vigente com base em uma argumentação racional. A comunidade de quem deve tomar decisões levando em conta o ordenamento jurídico vigente, baseando-se na argumentação racional, é o sujeito hipotético dos fins propostos nos argumentos teleológicos-objetivos. As afirmações finalistas dos intérpretes são hipóteses sobre os fins estabelecidos por este sujeito hipotético. Sua correção deve fundamentar-se por meio da argumentação racional. Os fins de que se trata na interpretação teleológica não são por isso fins que se determinem empiricamente, mas fins caracterizados normativamente. Por fim caracterizado normativamente deve entender-se aqui um estado de coisas prescrito ou um fato prescrito (ALEXY, 2013, p. 238/239).

 

Não podemos nos esquecer de que, nos crimes de âmbito doméstico, a prisão cautelar do autor dos fatos pode ser a única medida a assegurar a sobrevivência da vítima ou, ao menos, a dissuadi-lo, neste momento inicial, de progredir na escala criminosa, como, por exemplo, da prática do crime de ameaça para lesão corporal de natureza leve; deste para lesão grave e até feminicídio. A prisão cautelar pode ser a única medida capaz de ‘evitar que as coisas fiquem piores’.

 

Os princípios são necessários para (espera-se) impedir a transcendência de sair do controle. A sobrevivência, pelo contrário, é essencialmente conservadora. Seu horizonte é desenhado com tintas antigas. Manter-se vivo, hoje, significa não perder o que quer que ontem assegure a vida – não muito mais que isso. O elemento central da sobrevivência é as coisas não ficarem piores que antes (BAUMAN, 2011, p. 63)

 

Nesta toada, enfatize-se que a doutrina se inclina para assentar que ‘não seria aceitável a figura do feminicídio privilegiado não hediondo’ pois apenas reconhecendo-se a hediondez do crime em comento estar-se-ia prestigiando a ‘imprescindível justiça’.

 

A qualificadora do feminicídio foi expressamente incluída no rol dos crimes hediondos. Tem prevalecido entendimento de que o homicídio privilegiado qualificado não é crime hediondo (vide tópico homicídio privilegiado). Indaga-se: Seria aceitável a figura do feminicídio privilegiado não hediondo? Parece-me que, apesar de possível, não seria aceitável violando os fins sociais a que a Lei se destina. Nesse aspecto, aguardaremos as decisões a serem proferidas pelos magistrados quando do enfrentamento das teses que surgirão a cada caso concreto e a orientação jurisprudencial acerca da celeuma jurídica apontada, assim como, das inúmeras que surgirão, cabendo ao intérprete a árdua tarefa de aplicar a lei, sem esquecer a imprescindível justiça (LOURENÇO, 2019, p. 33).

 

Com os olhos voltados para a Justiça, é que a vítima merece proteção no processo penal, até porque já sofreu a ação criminosa. A medida de prisão cautelar, não se nega, é extrema, é a ultima ratio, contudo, inegável é a elevação o papel da vítima no processo penal e, a fortiori, nos crimes cometidos na clandestinidade, como muitas vezes são os de violência doméstica. Negar à vítima a proteção a sua integridade física quando a prisão do agressor é a única medida hábil a fazê-la seria o mesmo que ‘culpar a ofendida’ ou puni-la, novamente, por uma conduta criminosa que sofrera, ante a sensação de vulnerabilidade intensificada pela ameaça permanente com o autor do crime em liberdade, ainda quando do calor dos acontecimentos ou logo após a ocorrência delitiva.

 

Conforme os sempre atuais ensinamentos de Roberto Lyra em “Polícia e Justiça para o Amor”:

 

 Quando celebra o casamento, o juiz não decreta o amor, nem a fidelidade recíproca é prometida sob pena de morte. Assim como se conquista, é preciso conservar o amor. Cada qual alimenta-o como sabe, como pode, como quer. Se for descuidado ou inepto, não deve culpar a vítima desse procedimento. (...) O amor é, por natureza, fecundo e creador. Não figura nas cifras da mortalidade; não tira, mas põe gente no mundo (LYRA, 2017, p. 118).

 

Mais do que isto, uma vez ocorrido o crime, a sensação de impunidade e vulnerabilidade da vítima ou de seus familiares quando se trata de homicídio tende a se intensificar quando da ineficácia do Estado vem à tona, quer pelo não descobrimento da autoria, quer pela demora na solução do caso. Explico. Imagine-se uma mulher, que, retornando do local de trabalho, é estuprada e morta pelo agressor, mas que o crime permanece registrado como de autoria desconhecida ou, quando apontado o suposto autor, a resposta Estatal é tardia. Salvo melhor juízo, investimento estatal na polícia judiciária (investigativa), com aparelhamento técnico e número de profissionais compatível com o número de crimes registrados constituir-se-ia em fatores determinantes para a celeridade na investigação; o que possibilitaria, dada a proximidade da data do fato (evidentemente sem se descurar os demais requisitos legais – em especial em atenção ao disposto nos artigos 312 e 313, ambos do CPP), em eventual decreto da prisão preventiva pelo Estado-Juiz. A partir daí, de forma correlata, investimento em serventuários e Magistrados capacitados para atuação em processos-crimes que demandam especialização do profissional (Varas e Anexos de Violência Doméstica e Varas do Júri), bem como sistema informatizado, com funcionamento, a contento, nos órgãos do sistema de justiça criminal, resultariam em prestação jurisdicional célere e efetiva; o que, de forma consequencial, traria paz pública, sensação de segurança jurídica e credibilidade no sistema de justiça, a ponto de prevenir novas condutas criminosas.

 

2. Efetividade e esclarecimento de autoria

 

Deve-se assentar que a celeridade na decretação da prisão preventiva pelo Estado-Juiz pode contribuir para a prestação jurisdicional eficaz. Efetividade estatal, nas mais diferentes esferas que compõem o sistema penal brasileiro, é um incansável objetivo a ser perseguido. Não se ignore que ainda resta muito a fazer.

 

A título elucidativo, reportagem da Revista Exame revelou os baixos índices de esclarecimentos de crimes no Brasil. No mesmo momento, também relatou como a Polícia Paulista se destacou após investimento em tecnologia se comparada a outros Estados e concluiu que ‘o sucesso paulista só não é maior pela falta de estrutura’.

 

Sobre a temática, vale a pena conferir a reportagem intitulada “7 Passos para vencer o crime” publicada pela Revista Exame em 07/03/2018:

 

2º Passo – Inteligência, Inteligência, Inteligência. O problema: apenas 20% dos assassinatos são resolvidos no país. A solução: criar um instituto nacional para consolidar dados de evidências criminais, uma ouvidoria federal dos crimes e um banco de DNA. (...) As polícias brasileiras têm poucos dados à disposição sobre os cidadãos. A consequência: baixa capacidade de investigação e solução de crimes. Índices de homicídios resolvidos (em % do total): 96% Alemanha, 95% Japão, 81% Inglaterra, 80% Canadá, 64% Estados Unidos e 20% Brasil. O que precisa ser feito para resolver o problema? Investir em tecnologia, para coletar dados mais fidedignos sobre crimes e, de quebra, errar menos nas investigações, é um passo essencial. A preocupação de catalogar corretamente os crimes, por tipo, local e horário em que ocorrem, já ajudou polícias de várias partes do mundo a coletar vitórias contra a bandidagem. Talvez o exemplo mais conhecido seja o de Nova York, que desde os anos 90 mantém um banco de dados informatizado de crimes, o CompStat. No período, a cidade viu os homicídios caírem ao menor patamar da história – hoje, a taxa é de três casos por 100000 habitantes. O sistema, copiado pela polícia paulista em 2000, levou a uma situação inusitada: em duas décadas, a violência caiu em São Paulo; na maior parte do país, subiu. O índice de solução de crimes no estado, embora longe de visto em nações civilizadas, é o dobro da média nacional: 40%. O sucesso paulista só não é maior pela falta de estrutura federal para catalogar os crimes cometidos em outros estados (7 Passos para vencer o crime. Revista Exame, ano 52, nº 4, edição 1156, p. 77/78, 07 de mar 2018).

 

Veja-se que o Conselho Nacional de Justiça tem se voltado em normativas para otimização das Varas de Violência Doméstica e Varas do Júri e com acerto. Duas justificativas singelas dão o tom da necessidade de um olhar mais atento para tais temáticas. Esclareço. A família é a base da sociedade e os crimes ocorridos no âmbito da violência doméstica abalam, com maior intensidade, as estruturas vigas da sociedade ordeira. E nem é preciso dizer, mas, às vezes, o óbvio precisa ser até registrado, a prática do crime de homicídio afronta o direito mais caro do ser humano: a vida e, por assim sê-lo, dizima a humanidade. A título de comprovação, temos: 1) Recomendação CNJ n. 9/2007 e a Resolução CNJ n. 128/2011, 2) Recomendação nº 55 de 08 de outubro de 2019 do Conselho Nacional de Justiça que recomenda “aos Tribunais de Justiça e aos Tribunais Regionais Federais a adoção de procedimentos voltados a otimizar o julgamento das ações relacionadas a crimes dolosos contra a vida pelo Tribunal do Júri”.

 

Neste passo, é possível afirmar que investimento e valorização da Polícia Investigativa e do Poder Judiciário, a fim de propiciar estrutura tecnológica e quadro de serventuários em número compatível com a demanda posta, com capacitação, resultariam em um sistema de justiça criminal brasileiro eficaz e próximo a de países democráticos com grande investimento tecnológico, como vimos. Isto porque, após a prática da conduta criminosa, apenas a prestação estatal célere e justa minimiza os impactos da conduta delitiva no seio social e resgata a paz pública.   

 

Não há que se ter receio em decretar a prisão cautelar na modalidade preventiva, justamente porque já se disse que é um instrumento cautelar legítimo à disposição do Estado-Juiz, a fim de que se possam alcançar os objetivos processuais, bem como afiançar a Justiça.

 

Neste sentido, cumpre conferir:

 

La prisión preventiva es un instrumento cautelar legítimo del cual disponen, a pedido de parte en um sistema acusatorio, quienes tienen el poder jurisdiccional a fin de poder alcanzar los objetivos procesales y afianzar la justicia (DÍAZ, 2007, p. 319).

  

3. A prisão preventiva à luz do caso concreto

 

A prisão preventiva, como qualquer medida cautelar, visa garantir um resultado útil e prático: seja do processo principal (na antiga visão clássica e tradicional), seja do provimento final, seja da integridade física da vítima, seja da credibilidade estatal, etc.

 

A visão correta a ser assentada é no sentido de que: excluindo-se a prisão preventiva, como ficaria o provimento final?

 

Neste aspecto, imagine-se o réu condenado por lesão corporal de natureza gravíssima contra sua ex-cônjuge, roubo, cárcere privado, estupro, resistência, ainda que primário e que tenha respondido ao processo em liberdade, que, por assim o ser, também interpõe recurso de apelação em liberdade. Uma vez advindo v. acórdão confirmatório da sentença penal condenatória, será que a prisão não seria a única medida apta a assegurar o resultado útil e prático do processo, ou seja, o cumprimento da pena? Até porque, não se pode olvidar que, eventuais recursos especial e extraordinário não têm o condão de rediscutir matéria probatória, mas apenas, em síntese e, respectivamente, eventual afronta à legislação infraconstitucional ou à própria Lei Maior (Constituição Federal).

 

Não obstante, é certo que, na ADC 43 e na ADC 44, o Colendo Supremo Tribunal Federal proferiu r. decisão, neste sentido:

 

 O Tribunal, por maioria, nos termos e limites dos votos proferidos, julgou procedente a ação para assentar a constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011, vencidos o Ministro Edson Fachin, que julgava improcedente a ação, e os Ministros Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia, que a julgavam parcialmente procedente para dar interpretação conforme. Presidência do Ministro Dias Toffoli. Plenário, 07.11.2019” e, desta feita, impediu a ordem prisional emanada pelos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais, quando advindo acórdão confirmatório da condenação já prolatada em primeira instância. Mesmo excepcionando-se os crimes graves é certo que, com todo acatamento e respeito, rechaçar a prisão em tal situação jurídico-processual, a depender do caso em concreto, pode se constituir em ineficácia da prestação da tutela jurisdicional e fomento da sensação de intranquilidade social e impunidade (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 43. Requerente: Partido Ecológico Nacional – PEN. Rel. Ministro Marco Aurélio. Brasília, DF, 05 de outubro de 2016.Disponível em: http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28ADC%24%2ESCLA%2E+E+43%2ENUME%2E%29+OU+%28ADC%2EACMS%2E+ADJ2+43%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/zubmaqe. Acesso em: 28 de abril 2020).

 

Na verdade, a necessidade da prisão cautelar é afeta ao exame do caso em concreto. Trata-se do que se denomina de ajustabilidade da lei (em especial dos preceitos contidos no art. 312 do CPP) aos fatos. Com isto, se preserva a ordem pública e, automaticamente, se propicia segurança jurídica e se distribui o valor Justiça. Sobre a questão posta, temos:

 

2. A ajustabilidade aos fatos, que é o ideal da plena conformidade (das Idela der vollen Angemessenheit) ou plasticidade dos preceitos. 3. A aplicação necessária, que consiste no cumprimento da regra desde que se dêem os fatos que são previstos nela: é a segurança jurídica ou a ordem extrínseca, a que nos referimos noutro lugar, e a que chama François Gény a “necessidade de realização”. 4. A exatidão ou ordem intrínseca, que resulta do grau de perfeição interna do direito objetivo, a segurança dos resultados, isto é – a precisão científica no conseguir os fins sociais. 5. A economia do esforço, com todos os desiderata que lhe são implícitos: facilidade, rapidez, clareza, prontidão no provimento, barateza etc. A simplicidade é a economia dos meios, a rapidez, a economia do tempo; a prontidão, a economia do ato útil etc. A generalidade ou uniformidade de aplicação não constitui desideratum autônomo; é elemento necessário à facilidade e a outros ideais de economia de esforço. E ainda mais simplifica a matéria social e muito atende à crescente igualdade dos homens (segurança intrínseca). 10. Técnica e ciência.  A técnica não deve prevalecer contra a ciência. A segurança intrínseca merece maior respeito do que tudo mais. Se a regra tem todos os outros requisitos e lhe falta o de certeza nos resultados, nada vale. Pois, se é nenhuma a atuação dela, nenhuma significação pode ter como fator de harmonia e de felicidade humana. Na ordem prática, torna-se possível corrigir em grandes traços, isto é, no conjunto ou em parte dele, porque assim ficarão emendados os desacertos do particular. Portanto, a correção de qualquer princípio geral a que se subordinam certas medidas legislativas ou administrativas, no sentido de maior justiça ou segurança, implica a correspondente correção do sistema vigente e economiza o esforço das correções em cada uma das medidas. Mas, se conhecemos princípio tão geral que abranja todo o conjunto, no que ele tem de idêntico, a correção será diretamente feita, com extraordinária economia de esforço. A inserção de certas verdades sociológicas no corpo das constituições (quando são, realmente, verdades científicas) associa à segurança inerente ao valor hierárquico da carta constitucional inestimáveis regras de direito, que representam processos assaz gerais de justiça (MIRANDA, 2005, p. 214/215).

 

O ato judicial que decreta a prisão preventiva é uma decisão e sempre deve ser fundamentada de forma exaustiva, não apenas para dar cumprimento ao que dispõe o artigo 93, inciso IX da CF, mas sim porque julgar, em sua definição lato sensu, vai além de ‘classificar e selecionar’ e o Magistrado, quando profere qualquer decisão, o faz na sociedade em que vive e, por assim o ser, a integra. O juiz deve ter a capacidade de ‘atuar com mentalidade ampla’. Logo, se a prisão preventiva é a única medida cabível para resguardar a vítima e a sociedade como um todo, que sobrevenha e que assim o seja em qualquer tempo e grau de jurisdição! Neste aspecto, não se pode falar em violação do princípio da presunção de inocência. Até porque não existe direito fundamental absoluto e nada se analisa de forma isolada ou absolutamente teórica.

 

Neste sentido, sobre elaboração da decisão, ‘mentalidade ampla’ e conhecimento da comunidade pelo juiz, insta conferir:

 

Por conseguinte, julgar implica mais que classificar e selecionar. Por sua natureza, pressupõe um elemento de avaliação, seja numa exposição de flores, numa luta de boxe ou uma competição de patinação, seja num tribunal. Embora os elementos a serem pesados estejam objetivamente definidos, o peso dado a cada um individualmente e o equilíbrio global a ser logrado quando todos forem reunidos podem variar de árbitro para árbitro, o que torna necessária a introdução de controles contra o excesso de subjetividade. Um elemento crucial de controle é criado ao se instar o juiz a ter o que Jennifer Nedelsky chama ‘mentalidade ampla”, que é uma visão ativa que possibilita ao magistrado ultrapassar as idiossincrasias individuais, de sorte a abranger o ponto de vista dos outros integrantes da comunidade a ser persuadida. Para tanto, faz-se necessário escolher juízes entre os que têm experiência e demonstram capacidade para atuar com essa mentalidade ampla. Um segundo fator disciplinador que já mencionei é que, num tribunal de vários membros, vários juízes diferentes efetuam as avaliações, de forma que as preferências ou preconceitos pessoais individuais tendem a se neutralizar. Finalmente, no caso de uma determinação judicial, existe o conhecimento de que as sentenças são comunicadas publicamente e sua fundamentação e coerência interna serão objeto de análise e crítica regulares por parte de membros da comunidade legal em geral, bem como do público. É importante reconhecer que a comunidade jurídica não consiste apenas em membros da profissão judicial. É uma comunidade ‘nocional’, formado por todos os que sentem estar envergando togas ao lidar com um problema. Quando elaboro um voto, semiconscientemente tenho em mente a abrangência total dessa comunidade. Penso em todas as pessoas que poderiam lê-la e ser por ela influenciadas. Busco a forma de argumentação que, segundo espero, convencê-las-á de que estou no caminho certo ou, no mínimo, que estou oferecendo uma maneira plausível e defensável de olhar a questão. Isso não significa dizer que minha posição está correta e os que discordam estão errados. Existe na decisão judicial uma modéstia inerente que me veda a convicção de ter necessariamente razão, ou, antes, de que existe apenas uma resposta certa para cada problema jurídico, e que por acaso sou a pessoa que a descobriu. Não tem nada a ver com ser pessoalmente humilde; se você não for capaz de audácia quando instado a defender uma posição na qual realmente acredita, não deveria estar na Corte. Minha modéstia é institucional, e não pessoal. Como ministro, não creio que nossa função seja efetivamente estarmos certos. De fato, como podemos todos ter razão quando diferimos tanto entre nós? Em minha opinião, nosso dever é, em cada caso concreto, dedicar nossos melhores esforços a estarmos certos. Damos o máximo, sabendo que nossas decisões constarão nas listas e interagirão com outras infinitas decisões, muitas ainda a serem escritas, no certame infinito de ideias jurídicas conflitantes e convergentes (SACHS, 2016 p. 137/138.).

 

É por isto que ‘dar o melhor em uma decisão’ e analisar corretamente o caso concreto, com suas nuances, à luz do diploma legal é primordial. A falta de percepção de uma circunstância ainda que tangencial do caso concreto pode gerar uma decisão deletéria. Por isto, a motivação se faz necessária com exame em aspecto amplo.

 

4. Prisão preventiva no âmbito do devido processo legal – Lei 13.964/19

 

O princípio da igualdade começa a ganhar concretude com a isonomia de proteção perante a lei. É conhecida, ainda, a máxima ‘tratar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam’. A vítima é titular de direitos fundamentais, assim como o indiciado ou, a depender da fase do procedimento, o réu. Sob este enfoque, se não foi a vítima quem deu causa à situação jurídico-processual, mas sim o autor do crime, o seu encarceramento, ainda que provisório, quando houver elementos motivadores no sentido de que garante a integridade e dignidade daquela, passa a ser medida cautelar impositiva.

 

A verdadeira Declaração de Direitos. Estamos comemorando a Declaração de Direitos, que para nós inclui as emendas feitas depois da Guerra Civil. Para começar, peço a você que, em sua imaginação, leia essa parte da Constituição. Certas partes da Declaração de direitos são bastante concretas, como a Terceira Emenda, que proíbe o aquartelamento de tropas em tempo de paz. Outras se situam num nível médio de abstração, como a Primeira Emenda, que garante a liberdade de expressão, imprensa e religião. Mas certos dispositivos fundamentais estão formulados numa terminologia maximamente abstrata de moralidade política. A Décima Quarta Emenda, por exemplo, impõe a “igualdade” de proteção das leis, e assevera também que nem a vida, nem a liberdade, nem a propriedade de uma pessoa devem ser tomadas sem que se siga do “devido” processo legal. Em certos contextos, pode parecer que essa linguagem trata somente do procedimento – não restringe o tipo de leis que o Estado pode aprovar e impor, mas só estipula como ele deve aprovar e impor as leis que quiser. Entretanto, a história do direito rejeitou esta interpretação estreita; e, quando entendemos que os dispositivos constitucionais não são somente procedimentais, mas também substantivos, ficamos pasmos com a sua amplitude. Isso porque, nesse caso, a Declaração de Direitos não obriga o Estado a nada menos que tratar com a mesma consideração e o mesmo respeito todos os indivíduos sujeitos ao seu domínio, e não infringir as liberdades mais básicas dos cidadãos, que, segundo um grande jurista, são as liberdades essências para a própria idéia de “liberdade ordenada”. (...) Em segundo lugar, como a liberdade e a igualdade sobrepõem-se em grande medida, cada um dos grandes artigos abstratos da declaração de direitos é abrangente desse mesmo modo. Os direitos constitucionais particulares que decorrem da melhor interpretação do dispositivo de igualdade de proteção, por exemplo, provavelmente decorrem também da melhor interpretação da garantia do devido processo (DWORKIN, 2006, p. 115/117).

 

Portanto, o Estado não pode ‘aprovar e impor as leis que quiser’. O ‘devido’ processo legal vai além do respeito e observância aos procedimentos. É a devida proteção do Estado aos bens titularizados pelo indivíduo pelo simples fato de ser humano. Com a eficácia desta proteção não se pode transigir. É por este fundamento maior - ‘devido processo legal’ – que o Estado-juiz deve decretar a prisão cautelar quando vislumbrar, pelos elementos do caso concreto (prova indiciária), de que há risco à ordem pública ou à vítima, principalmente, quando se deparar com crime cometido no âmbito familiar e doméstico.

 

O juiz deve preservar a coerência do sistema jurídico. Se normas podem gerar antinomia, à luz do caso concreto esta desaparece ou, no mínimo, tende a se esvaziar. Explico. O suspeito tem assegurada a liberdade e é presumido inocente. Da mesma forma, ou seja, para o dizer o mínimo, na mesma intensidade (ou até maior), a vítima que, sofreu a ação delitiva, merece eficaz proteção estatal em dupla medida: 1) quer para que não venha a suportar, novamente, a ação com probabilidade de recidiva, contudo, em crime mais grave por parte do suspeito do cometimento do crime anterior; 2) para que a prova seja preservada no processo penal (isto é, para que a vítima que foi anteriormente ameaçada possa comparecer, em juízo, livre de amarras, a fim de prestar declarações). Portanto, a aparente antinomia da necessidade de se preservar a presunção de inocência e/ou liberdade do suspeito/réu com a preservação da vítima é inexistente quando a prisão cautelar preventiva se mostra como a única medida, em determinado momento da persecução penal, já que qualquer outra medida cautelar se revela insuficiente ou ineficaz para o fim a que se destina.

 

Sobre a coerência e o problema das antinomias, cumpre trazer à baila o seguinte enxerto:

 

“La coherencia y el problema de las antinomias. La coherencia puede definirse como aquella cualidad del sistema em cuya virtude cada situatión de hecho recibe un único tratamiento normativo dentro del sistema en cuestión. (...) Al igual que la plenitude, la coherencia es un postulado del Derecho ilustrado que concibió la existência de un legislador racional omnisciente, capaz de prever y de ofrecer solución jurídica a todos los casos y capaz también de ofrecer una y sólo una solucíon. Pero asimismo, al igual que la plenitude, la coherencia se muestra como um ideal imposible de alcanzar, y no sólo en el plano de la producción jurídica: resulta perfectamente verosímil que um mismo sistema albergue normas contradictorias para la regulación de un mismo caso, como lo es también que se produzcan contradicciones entre las resoluciones judiciales. Outra cosa es que normativamente y en el plano de la aplicación del Derecho las contradicciones hayan de solucionarse, como han de colmarse las lagunas; el juez viene obligado a fallar y viene obligado lógicamente a fallar una sola cosa a propósito del conflito a él sometido. La cuestión de las antinomias remite entonces a um segundo problema: si existen, y con qué alcance, normas de segundo grado que le orienten al juez a la hora de elegir una de las soluciones em principio posibles”.  (A coerência e o problema das antinomias. A coerência pode ser definida como aquela qualidade do sistema, em cuja virtude cada situação de direito recebe um único tratamento normativo, dentro do sistema em questão. Igualmente à plenitude, a coerência é um postulado do direito, que concebe a existência de um legislador racional consciente, capaz de prever e de oferecer solução jurídica a todos os casos e capaz também de oferecer uma e só uma solução. Contudo, assim mesmo, da mesma forma que a plenitude, a coerência se mostra como um ideal impossível de ser alcançado, e não somente no plano da produção jurídica: resulta perfeitamente verossímil que um mesmo sistema albergue normas contraditórias para regulação de um mesmo caso, como ocorre também que se produzam contradições em resoluções judiciais. Outra coisa é que normativamente e no plano de aplicação do direito as contradições tendem a se solucionarem, com também hão de serem preenchidas as lacunas. O juiz se vê obrigado a decidir e é obrigado logicamente a decidir uma só coisa a propósito do conflito que lhe é submetido. A questão das antinomias é remetida então a um segundo problema: se realmente existem, e com qual alcance, assim como as normas de segundo grau que orientam o juiz na hora de eleger uma das soluções em princípio possíveis. - tradução livre) (GRAU, Eros Roberto. O STF: A prisão e a Constituição. Jornal O Estado de São Paulo, 22 de nov. 2019, A2).

 

Pela coerência, harmonia e concretude do sistema de justiça penal perpassam a atuação correta do juiz criminal e seu papel à luz da Constituição Federal.

 

Nesta toada, discorreu o ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Roberto Grau:

 

Ao me referir aos juízes, desembargadores e ministros dos nossos tribunais seguidamente me repito, lembrando um texto de Sartre a propósito da conduta do garçom que executa uma série de gestos solícitos para atender o cliente. Os garçons cumprem seu papel no café ou restaurante onde trabalham sendo gentis até mesmo com clientes que detestem. Assim é o juiz. Cumpre o papel que a Constituição lhe atribui. Não é perpetuamente juiz. Mas enquanto juiz deve representar o papel de magistrado, nos termos da Constituição e da legalidade. Não o que é (e pensa) ao cumprir outros papéis, quais os de artesão ou jardineiro, por exemplo. Poderão então prevalecer os seus valores. Enquanto juízes, contudo, hão de se submeter à Constituição e às leis (GRAU, Eros Roberto. O STF, A prisão e a Constituição. Editorial Jornal O Estado de São Paulo, 22 de nov. 2019, A2, Espaço Aberto).

 

O papel do juiz é se submeter à Constituição e à lei. Ora, é exatamente disto que se cuida. Quando o julgador decreta a prisão cautelar preventiva do investigado/indiciado/acusado, especialmente para assegurar a ordem pública e proteger a vítima nada mais faz do que fazer valer a Constituição e dar concretude aos ditames infraconstitucionais. Não há nada de abusivo nesta decisão e nem mesmo violação de direitos fundamentais do indiciado ou réu. Simplesmente é atuação inerente à judicatura.

 

Neste aspecto, é possível dizer, acerca da novel legislação conhecida por ‘Pacote Anticrime’, o espírito de se endurecer o sistema de justiça criminal em se tratando da persecução penal, no que diz respeito aos crimes praticados no âmbito da violência doméstica e familiar. Isto porque a Lei 13.964/2019 ao incluir o artigo 28-A no Código de Processo Penal, em seu §2º [2] vedou a aplicação do acordo de não persecução penal nos crimes praticados no âmbito da violência doméstica.

 

Desta feita, em se tratando de crime abrangido pela Lei Maria da Penha, preenchidos os requisitos para oferecimento da denúncia, a persecução penal deve ocorrer. É, portanto, vedada qualquer composição entre as partes.

 

Este endurecimento no que diz respeito ao combate à violência contra mulher é que enfraquece a tese segundo a qual a prisão preventiva seria descabida se considerado o quantum da pena prevista abstratamente para alguns delitos (ameaça, lesão corporal de natureza leve, v.g.) e a primariedade do réu. A necessidade de proteção da vítima e a garantia da ordem pública se sobrelevam, no âmbito da violência doméstica, a requisitos como primariedade do agressor.

 

Não se pode negar que a norma que permite a prisão preventiva para garantia da ordem pública [3] pode ser classificada como ‘norma voltada para o bem público’. Desta feita, quando o Magistrado entende, em decisão fundamentada, que o decreto da prisão preventiva é necessário para garantia da ordem pública nada mais está fazendo do que exercendo ‘legalidade republicana’ que é ‘qualidade no exercício do poder’ e, por via de consequência, está distribuindo justiça, eis que a ‘justiça aponta para as virtudes da legalidade e conta com normas voltadas para o bem público’.

 

Neste sentido, disserta Celso Lafer:

 

Este é o alcance do controle pelo Judiciário da constitucionalidade das leis e, nesta esfera, a tutela dos Direitos Humanos positivados nos textos constitucionais essencialmente em defesa dos governados. A guarda da constituição expressa a supremacia do governo das leis e foi adquirindo eficácia com a generalização do judicial review. O governo das leis assegura a justiça? A Justiça é o tema dos temas da Filosofia do Direito, pois a aspiração da justiça permeia a vida do Direito. A noção de justiça, no entanto, comporta mais de uma dimensão, inerentes ao lema liberdade, igualdade, fraternidade. São tuteláveis numa república, desde que atendidos os méritos do devido princípio legal do governo das leis. No seu contexto, a justiça aponta para as virtudes da legalidade (a conformidade da conduta com a norma jurídica) e pressupõe que as normas estejam voltadas para o bem público, lastreador da convivência coletiva. É o que faz da legalidade republicana uma qualidade no exercício do poder (LAFER, Celso. Constituição e a supremacia do governo das leis. Jornal O Estado de São Paulo, 12 de novembro de 2019).

 

Acerca do entendimento das normas jurídicas como comandos prescreve Norberto Bobbio:

 

Citemos também nós, duas passagens de escola: a de Cícero que diz “legem esse aeternum quiddam, quod universum mundum regeret, imperandi prohibendique sapientia... aut cogentis aut vetantis... ad iubendum et ad deterrendum idonea”. (A lei é algo de eterno, que rege todas as nações, com sabedoria para ordenar e proibir... capaz de prescrever e dissuadir) (De Legibus, II c., par. 8); e a de Modestino que diz: “legis virtus haec est imperare, vetare, permittere, punire” (A essência da lei é esta: ordenar, vetar, permitir, punir). (D.l. 7, De Legibus 1,3) (BOBBIO, 2008, p. 105/106).

 

E qual outra proibição e/ou vedação maior poderia existir em qualquer ordenamento do mundo do que a tipificação do crime de homicídio [4]? É por isto que, salvo melhor juízo, impedir a decretação da prisão preventiva em desfavor do réu que, embora tenha respondido ao processo-crime em liberdade, acaba de ser condenado pelo Conselho de Sentença e recebe do Juiz Presidente pena elevada em virtude das inúmeras qualificadoras reconhecidas em alusão ao princípio da presunção de inocência (ou seja, porque a sentença é passível de recurso de apelação) seria o mesmo que ignorar a Constituição, a legalidade, a legislação infracional e ‘a Justiça’. Explico. O artigo 5º inciso XXXVIII da Constituição Federal (diga-se: cláusula pétrea) traz que “é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;”. Portanto, a soberania dos veredictos tem o mesmo status constitucional que a presunção de inocência. Associado a esta conjuntura, cumpre recordar o disposto no artigo 593 [5], do Código de Processo Penal. Tal dispositivo revela, em síntese, que os jurados são soberanos para apreciar o mérito (autoria e materialidade), tanto que, uma vez interposto recurso de apelação vinculada a uma da alínea do artigo 593, inciso III do CPP, no caso de pretensão de reforma de condenação para absolvição, em caso de provimento do recurso de apelação, o Tribunal apenas poderá remeter o réu a novo júri. Ora, imagine-se a vítima do crime de tentativa de homicídio e os demais integrantes da sociedade ordeira que acompanham o julgamento em plenário visualizarem o réu, que acaba de ser condenado pelo conselho de sentença pela prática do crime de homicídio qualificado, sair pela porta da frente do fórum, sob o argumento de que a prisão preventiva não pode ser decretada se ele respondeu ao processo em liberdade, eis que tem direito ao recurso e com fundamento no princípio da presunção de inocência? No mínimo, isto seria a sedimentação de antinomia, injustiça e sensação de impunidade e descrédito da sociedade no sistema de justiça criminal como um todo. Não podemos nos esquecer do que há muito já se falou em esgarçamento do princípio da presunção de inocência; de que o Direito não se interpreta em tiras; e de que o Direito existe para própria subsistência da sociedade.

 

Neste sentido, andou bem a Lei nº 13.964 de 24 de dezembro de 2019 – Pacote Anticrime, com a nova redação do artigo 492 do Código de Processo Penal, in verbis:

 

Art. 492. “Em seguida, o presidente proferirá sentença que:  I – no caso de condenação: a) fixará a pena-base; b) considerará as circunstâncias agravantes ou atenuantes alegadas nos debates; c) imporá os aumentos ou diminuições da pena, em atenção às causas admitidas pelo júri;  d) observará as demais disposições do art. 387 deste Código; e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos;   (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019) f) estabelecerá os efeitos genéricos e específicos da condenação; II – no caso de absolvição:  a) mandará colocar em liberdade o acusado se por outro motivo não estiver preso;   b) revogará as medidas restritivas provisoriamente decretadas;           c) imporá, se for o caso, a medida de segurança cabível. § 1º Se houver desclassificação da infração para outra, de competência do juiz singular, ao presidente do Tribunal do Júri caberá proferir sentença em seguida, aplicando-se, quando o delito resultante da nova tipificação for considerado pela lei como infração penal de menor potencial ofensivo, o disposto nos arts. 69 e seguintes da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995. § 2º  Em caso de desclassificação, o crime conexo que não seja doloso contra a vida será julgado pelo juiz presidente do Tribunal do Júri, aplicando-se, no que couber, o disposto no § 1o deste artigo. § 3º O presidente poderá, excepcionalmente, deixar de autorizar a execução provisória das penas de que trata a alínea e do inciso I do caput deste artigo, se houver questão substancial cuja resolução pelo tribunal ao qual competir o julgamento possa plausivelmente levar à revisão da condenação. § 4º A apelação interposta contra decisão condenatória do Tribunal do Júri a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão não terá efeito suspensivo.   (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) § 5º Excepcionalmente, poderá o tribunal atribuir efeito suspensivo à apelação de que trata o § 4º deste artigo, quando verificado cumulativamente que o recurso:     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) I - não tem propósito meramente protelatório; e     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) II - levanta questão substancial e que pode resultar em absolvição, anulação da sentença, novo julgamento ou redução da pena para patamar inferior a 15 (quinze) anos de reclusão. § 6º O pedido de concessão de efeito suspensivo poderá ser feito incidentemente na apelação ou por meio de petição em separado dirigida diretamente ao relator, instruída com cópias da sentença condenatória, das razões da apelação e de prova da tempestividade, das contrarrazões e das demais peças necessárias à compreensão da controvérsia”. (BRASIL. Decreto Lei 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 out. 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/del3689compilado.htm. Acesso em 28 abr. 2020).

 

Como ser percebe, a regra é a de que, no Tribunal do Júri, ao réu que foi cominada pena igual ou superior a 15 anos de reclusão, passará a cumprir a sanção, imediatamente. Desta feita, mesmo o réu que respondeu ao processo-crime em liberdade, uma vez condenado pelo Conselho de Sentença e fixada a pena pelo Juiz Presidente igual ou acima de 15 anos de reclusão terá sua prisão decretada em plenário. Tal medida além de trazer eficácia à sentença penal condenatória (cujo mérito: autoria e materialidade do crime foram reconhecidas pela sociedade) resulta em credibilidade no sistema de justiça criminal. Veja-se que o critério é objetivo: pena igual ou superior a 15 anos de reclusão. A regra, nesta hipótese, passa a ser a prisão cautelar. Ora, a justificativa está em harmonia com os dois principais requisitos do art. 312 [6] do CPP (garantia da ordem pública – eis que o indivíduo que acabou de ser condenado por homicídio por seus pares (conselho de sentença) passa a ser reconhecido, publicamente, pela sociedade, como aquele que causou desassossego à ordem pública, pois violou o bem mais caro do indivíduo: a vida; e ainda a necessidade de se assegurar a aplicação de lei penal. Ora, de baixa probabilidade é a hipótese daquele que foi condenado por crime de homicídio (pena elevada), que permaneça no distrito da culpa, ‘de braços abertos’, aguardando apenas o trânsito em julgado, para que o policial o algeme e o leve ao sistema penitenciário a fim de cumprir 15 anos ou mais de reclusão. Evidente que o risco de fuga é iminente, latente, provável ou, se é possível dizer, quase certo, dado o quantum da pena cominada. Portanto, a execução provisória é medida imediata: a regra. Tanto que, na sequência, o § 4º do art. 492 do CPP revela que a apelação interposta contra decisão condenatória do Tribunal do Júri a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão não terá efeito suspensivo. A regra é a execução provisória (prisão imediata do condenado pelo Júri de acordo com a pena indicada: 15 anos ou mais de reclusão) e, portanto, eventual apelação apenas terá o efeito devolutivo, cabendo, ao Tribunal (Desembargador Relator do recurso de apelação), excepcionalmente, atribuir efeito suspensivo.

 

Ora, se o homicídio, no dizer de Nelson Hungria, é ‘o crime por excelência’, ‘é atentado contra a fonte mesma da ordem e segurança geral’ e se ‘o problema da criminalidade é, antes de tudo, e acima de tudo, o problema de prevenção e repressão do homicídio’, uma vez condenado o réu, pelo Conselho de Sentença, ainda que tenha respondido ao processo em liberdade, de rigor seria a decretação, naquele momento processual, mesmo que pendente a possibilidade de interposição de recurso de apelação (dita ‘apelação vinculada’), da prisão preventiva. Caso contrário, ou seja, sua saída livremente do plenário do júri seria como que o fomento ao atentado à ordem e segurança geral.

 

O homicídio é o tipo central dos crimes contra a vida e é o ponto culminante na orografia dos crimes. É o crime por excelência. É o padrão da delinquência violenta ou sanguinária, que representa como que uma reversão atávica às eras primevas, em que a luta pela vida, presumivelmente, se operava com o uso normal dos meios brutais e animalescos. É a mais chocante violação do seno moral médio da humanidade civilizada. Como diz Impallomeni, todos os direitos partem do direito de viver, pelo que, numa, ordem lógica, o primeiro dos bens é o bem da vida. O homicídio tem a primazia dentre os crimes mais graves, pois é o atentado contra a fonte mesma da ordem e segurança geral, sabendo-se que todos os bens públicos e privados, todas as instituições se fundam sobre o respeito à existência dos indivíduos que compõem o agregado social. O crimen homicidii constitui um tema preponderante da ciência jurídico-penal. Pode dizer-se que a parte geral do direito penal sistematizado não foi mais do que a generalização dos critérios e princípios fixados pelo direito romano e pelo direito intermédio acerca do homicídio. Por outro lado, o mais vasto capítulo da criminologia é consagrado ao estudo dos criminosos violentos, de que o homicida é o expoente máximo. O problema da criminalidade é, antes de tudo, e acima de tudo, o problema da prevenção e repressão ao homicídio (HUNGRIA, 1958, p. 25/27).

 

Desta feita, a visualização pelo juiz, no caso concreto, de forma motivada, de ser a prisão preventiva necessária e eficaz contribui para a continuidade da paz pública e da própria sociedade.

 

Aliás, no que tange à motivação, o Pacote Anticrime dispensou essencial atenção. Isto porque, o artigo 315 do CPP agora, textualmente, impede a referência apenas ao texto da lei e obriga, com maior intensidade, o juiz a indicar, na decisão, cada detalhe do caso sub judice que o levou a concluir pela imperiosidade da decretação da prisão preventiva. Além disto, por ser a prisão preventiva espécie do gênero prisão cautelar, evidentemente, os fundamentos fático-jurídicos devem ser novos (atuais, recentes, contemporâneos). Neste aspecto, ousamos dizer que um pedido de prisão preventiva que foi formulado, v.g., há 30 dias e ainda não foi apreciado pelo juiz seja por qualquer razão (expediente não enviado à fila conclusão, erro sistêmico na distribuição, excesso de carga laboral, etc.), para que seja deferido, deve contar com prudente constatação ainda da necessidade-adequação da cautelar em foco e persistência de fatos suscitados na peça no bojo da qual o pedido prisional foi requerido. Além disto, equivale à ausência de motivação a representação pela prisão preventiva subsidiada em fato ocorrido há mais de ano, sem, portanto, conter a existência de fatos novos ou contemporâneos a contemplá-la. Neste sentido, vale trazer à baila a atual redação do artigo 315 do CPP:

 

Art. 315. A decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre motivada e fundamentada.  § 1º Na motivação da decretação da prisão preventiva ou de qualquer outra cautelar, o juiz deverá indicar concretamente a existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada. § 2º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I - limitar-se à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;  II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V - limitar-se a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento (BRASIL. Decreto Lei 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 out. 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/del3689compilado.htm. Acesso em 28 abr. 2020).

 

Em mais uma oportunidade, ou seja, no artigo 316 do CPP, o legislador vem a falar da motivação e, prossegue, para determinar a revisão da decisão judicial que decretou, outrora, a prisão preventiva, a cada 90 dias. Vejamos:

 

Art. 316 do CPP - O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019) Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.   (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (BRASIL. Decreto Lei 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 out. 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/del3689compilado.htm. Acesso em 28 abr. 2020).

 

Em alusão ao citado dispositivo legal, foi editado, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, o Comunicado CG nº 78/2020 (Processo nº 2020/7201), do seguinte teor:

 

A Corregedoria Geral da Justiça RECOMENDA aos Senhores Diretores dos Ofícios Judiciais com competência CRIMINAL o rigoroso cumprimento do disposto no artigo  316,  parágrafo  único,  do  Código  de  Processo  Penal,  com  a  redação  da  Lei  n.   13.964, de 24  de  dezembro  de  2019  (decretada  a  prisão  preventiva,  deverá  o  emissor  da  decisão  revisar  a  necessidade  de   sua  manutenção  a  cada  90  dias,  mediante  decisão  fundamentada,  sob  pena  de  tornar  a  prisão  ilegal).  Para tanto,  no  85º  dia da decretação da prisão, caberão aos Diretores dos respectivos Ofícios Judiciais, incontinenti, encaminhar os autos à conclusão do Meritíssimo Juiz de Direito”. (SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. Comunicado 78, de 2020. Diário da Justiça Eletrônico, 17 de jan 2020, Caderno Administrativo São Paulo, Ano XIII - Edição 2966 12. Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/Corregedoria/Comunicados/Comunicado?codigoComunicado=18592&pagina=1. Acesso em 28 de abr. 2020).

 

Desta feita, nada impede que o Magistrado reanalise a prisão preventiva em prazo inferior a 90 dias, aliás deve fazê-lo sempre; revistando os processos de réus presos. Contudo, para evitar que a prisão se torne ilegal por falta de decisão motivada no prazo fixado em lei é que a decisão deve sobrevir antes de findo o lapso temporal fixado pela novel legislação.

 

Cumpre registar que equivale à falta de motivação, de acordo com uma interpretação sistemática (artigos 312, 315 e 316, todos do CPP) a decisão que apenas faz referência a ‘manutenção da decisão anterior por seus próprios fundamentos’. A motivação exige que o julgador faça alusão aos fatos e ao andamento processual que se dera ao feito após a última decisão por meio da qual se analisou o binômio liberdade versus prisão.

 

5. Considerações finais

 

O juiz de primeiro grau, a quem cabe a análise das prisões provisórias, quando mais próximo das partes e da comunidade em que está inserido, avalia, com propriedade, as condições favoráveis à aplicação das medidas cautelares.

 

O escopo de “acautelar” diz respeito à neutralização de determinados riscos prejudiciais ao procedimento penal.

 

Neste contexto, o descumprimento da medida protetiva dará ensejo à instauração de inquérito policial para apuração da infração definida no artigo 24-A, da Lei Maria da Penha e, consequentemente, possibilitará a decretação da prisão preventiva.

 

A decretação da prisão preventiva, dadas as peculiaridades do caso em concreto, pode se traduzir na única medida aplicável a fim de salvaguardar a integridade física e psíquica da vítima, bem como resgatar a credibilidade da Justiça.

 

Nos crimes de âmbito doméstico, a prisão cautelar do autor dos fatos pode ser a única medida a dissuadi-lo de progredir na escala criminosa, ou seja, única medida capaz de ‘evitar que as coisas fiquem piores’.

 

A prisão cautelar é a ultima ratio, contudo, inegável é a elevação o papel da vítima no processo penal. Negar à vítima proteção quando a prisão do agressor é a única medida hábil a tanto seria o mesmo que puni-la, novamente.

 

A celeridade na decretação da prisão preventiva pelo Estado-Juiz pode contribuir para a prestação jurisdicional eficaz, bem como investimentos e valorização da Polícia Investigativa e do Poder Judiciário, por meio de estrutura tecnológica e quadro de serventuários em número compatível com a demanda posta, resultarão em um sistema de justiça criminal brasileiro próximo a de países democráticos com avançado desenvolvimento tecnológico. Até porque a prestação estatal célere e justa minimiza os impactos da conduta delitiva e resgata a paz pública.  

 

Rechaçar a prisão em determinadas situações jurídico-processuais pode se constituir em fomento da sensação de intranquilidade social e impunidade. Por isto é que o juiz sempre deve realizar a ajustabilidade da lei aos fatos.

 

O papel do juiz é se submeter à Constituição e à lei. Quando o julgador decreta a prisão cautelar preventiva, especialmente para assegurar a ordem pública e proteger a vítima, nada mais faz do que fazer valer a Constituição. Logo, não há nada de abusivo nesta decisão, pois, simplesmente, se trata de atuação inerente à judicatura.

 

A decisão que decreta ou mantém a prisão preventiva deve conter motivação exaustiva e, portanto, abordar todas as nuances do caso em concreto com alusão aos requisitos legais, em especial em atenção ao que dispõe o artigo 312 do Código de Processo Penal.

 

O artigo 492 do Código de Processo Penal ao determinar a execução provisória da sentença penal condenatória no procedimento do Tribunal do Júri no bojo da qual houve cominação de pena igual ou superior a 15 anos de reclusão é constitucional, em especial porque dá concretude ao disposto no artigo 5º inciso XXXVIII alínea “c” da Constituição Federal (a soberania dos veredictos), diga-se de passagem: cláusula pétrea.

 

Não nos esqueçamos de que o Direito não se interpreta em tiras e de que ele existe para própria subsistência da sociedade, em busca da concretização do ideal ‘Justiça’.

 

Referências

 

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SIQUEIRA, Paulo Hamilton Júnior. A dignidade da pessoa humana no contexto da pós-modernidade: O direito no século XXI é tolerância, bom senso e cidadania, in Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana. 2ª edição atualizada. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2009.



[1] Doutora em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino-Bauru - ITE, Delegada de Polícia do Estado de São Paulo, Procuradora do Estado de São Paulo, atualmente é Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

[2] Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada. § 1º Para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto. § 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses: I - se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei; II - se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; III - ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e IV - nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor. (g.n.)

[3] Artigo 312 do Código de Processo Penal – “A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria”. (g.n.) 

[4] Homicídio simples. Artigo 121 do Código Penal Brasileiro: Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos. Caso de diminuição de pena. § 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. Homicídio qualificado § 2° Se o homicídio é cometido:        I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;        II - por motivo fútil; III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum; IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido; V - para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime: Pena - reclusão, de doze a trinta anos. Feminicídio VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino: VII – contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição: Pena - reclusão, de doze a trinta anos. § 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I - violência doméstica e familiar; II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

[5] Artigo 593 do Código de Processo Penal: “Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias:  I - das sentenças definitivas de condenação ou absolvição proferidas por juiz singular;  II - das decisões definitivas, ou com força de definitivas, proferidas por juiz singular nos casos não previstos no Capítulo anterior;  III - das decisões do Tribunal do Júri, quando: a) ocorrer nulidade posterior à pronúncia; b) for a sentença do juiz-presidente contrária à lei expressa ou à decisão dos jurados; c) houver erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena ou da medida de segurança; d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos. § 1º Se a sentença do juiz-presidente for contrária à lei expressa ou divergir das respostas dos jurados aos quesitos, o tribunal ad quem fará a devida retificação. § 2º Interposta a apelação com fundamento no III, c, deste artigo, o tribunal ad quem, se lhe der provimento, retificará a aplicação da pena ou da medida de segurança. § 3º  Se a apelação se fundar no III, d, deste artigo, e o tribunal ad quem se convencer de que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos, dar-lhe-á provimento para sujeitar o réu a novo julgamento; não se admite, porém, pelo mesmo motivo, segunda apelação. § 4º Quando cabível a apelação, não poderá ser usado o recurso em sentido estrito, ainda que somente de parte da decisão se recorra.

[6] Art. 312 do CPP - A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.  (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019) § 1º A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4º). (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019) § 2º A decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada.  (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019). (g.n.)


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