669 – Improbidade administrativa e sua reforma
Principais alterações da Lei nº 14.230/21 e seus impactos nos processos em curso e findos. Novatio legis in mellius em Direito Administrativo Sancionador: retroatividade ou irretroatividade da lei nova
VICENTE DE ABREU AMADEI [1] – Desembargador
Sumário: 1. Introdução: as alterações da Lei nº 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa - LIA) pela Lei nº 14.230/21. 2. Breve histórico legislativo. 3. A sistematização das inovações. 4. O elemento subjetivo da improbidade administrativa. 5. A tipificação dos atos de improbidade administrativa, especialmente as figuras do art. 11 da LIA. 6. O Direito Administrativo Sancionador. Aproximação histórico-conceitual e cautelas para extração de seu conteúdo principiológico. 7. A fonte de inspiração do Direito Administrativo Sancionador: Direito Penal ou Direito público estatal? 8. A teoria elementar do Direito Administrativo Sancionador. Esboço de sistematização no Direito Brasileiro. 9. Sobre a (ir)retroatividade da lei nova mais favorável em Direito Administrativo Sancionador. Esboços para soluções de questões de direito intertemporal material. 10. As razões da irretroatividade das normas mais favoráveis da Lei nº 14.230/21. 11. O combate à corrupção sistêmica. 12. Novatio legis in mellius, retroatividade-tipificação, retroatividade-sanção e retroatividade-prescrição. 13. Processo em trâmite e (ir)retroatividade da Lei nº 14.230/21. 14. Processos findos, coisa julgada e (ir)retroatividade da Lei nº 14.230/21. 15. Conclusão.
1. Introdução: as alterações da Lei nº 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa - LIA) pela Lei nº 14.230/21
A Lei nº 14.230/21 não só modificou a Lei n° 8.429/92 (LIA), mas a reformou profundamente (apenas os artigos 15 e 19 permanecem inalterados), inovando e alterando, em pontos estratégicos, o regime jurídico da improbidade administrativa, especialmente pelas novas referências dos elementos essenciais para a configuração do ato ímprobo suscetível de sanção.
E isso tem, de fato, agitado a comunidade política, social e jurídica, com alguns aplausos e muitas críticas, na avaliação geral de verificação de avanço ou retrocesso na área da moralidade administrativa. E ainda se apontam inúmeras incertezas e dúvidas quanto à sua adequada interpretação e aplicação, especialmente em relação aos fatos ocorridos ao tempo da lei antiga, aos processos em trâmite antes da lei nova, e até mesmo às sentenças transitadas em julgado, especialmente os pendentes de cumprimento (total ou parcial), para saber se escapam, ou não, dos efeitos da lei nova, que são em grande parte mais benéficos aos infratores.
Basta observar, para se verificar o grande interesse em tais mudanças, que essa lei é de 25 de outubro de 2021 – nasceu há pouco tempo – e, conforme levantamento do CADIP (Centro de Apoio dos Desembargadores do Direito Público do TJSP)[2] até 26 de novembro de 2021, apenas em artigos de juristas, professores e doutrinadores comentando as inovações, em geral ou pontualmente, constavam pelo menos 63 trabalhos publicados na internet. E isso sem contar os vários cursos, seminários, encontros, reuniões e grupos de estudo pulverizados pelo Brasil, bem como as várias vídeo-aulas que já circulam em mídia eletrônica. Ademais, é suficiente passar os olhos nesses trabalhos publicados para perceber que há orientações para todo gosto, pois se apresentam vários caminhos de interpretação, muitos deles contrapostos, a indicar o quão polêmico é o tema, que, naturalmente, deve refletir em Juízo um cenário jurídico turvo até o decantar jurisprudencial.
Aliás, a discussão já ganhou foro no Supremo Tribunal Federal, em dois feitos relevantes:
(i) um em que consta já admitida repercussão geral (Tema nº 1199/STF, ARE843.989), para definir, questões sobre a “eventual (ir)retroatividade das disposições da Lei nº 14.230/2021, em especial em relação (I) A necessidade da presença do elemento subjetivo - dolo - para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive no artigo 10 da LIA; e (II) A aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente”, destacando-se a não suspensão dos feitos nas instâncias ordinárias, suspendendo-se apenas os processamentos dos Recursos Especiais em que for suscitada a aplicação retroativa da Lei nº 14.230/21 (decisão de 03/03/2022 do relator Min. Alexandre de Morais);
(ii) outro, em que o Ministro Alexandre de Moraes, em 17/02/2022, concedeu liminar (ADIs 7042/DF e 7043/DF),
(ii.i) fixando, provisoriamente, interpretação conforme a Constituição Federal ao art. 17, caput e §§ 6º-A, 10-C e 14, da LIA (com a redação da Lei nº 14.230/2021), para reconhecer “legitimidade ativa concorrente entre o Ministério Público e as pessoas jurídicas interessadas para a propositura da ação por ato de improbidade administrativa”, com o argumento de que “a supressão da legitimidade ativa das pessoas jurídicas interessadas para a propositura da ação de improbidade administrativa pode representar grave limitação ao amplo acesso à jurisdição (CF, art. 5º, XXXV), com ferimento ao princípio da eficiência (CF, art. 37, caput) e, no limite, obstáculo ao exercício da competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios para ‘zelar pela guarda da Constituição’ e ‘conservar o patrimônio público’ (CF, art. 23, I), bem como, um significativo retrocesso quanto ao imperativo constitucional de combate à improbidade administrativa”, destacando que o prescrito no art. 129, § 1º, da Constituição Federal “parece indicar um comando impeditivo à previsão de exclusividade por parte do Ministério Público nas ações civis por ato de improbidade administrativa”, e não se deve conferir o “monopólio absoluto do combate à corrupção ao Ministério Público”;
(ii.ii) suspendendo os efeitos do art. 17, § 20, da LIA (com a redação da Lei nº 14.230/21), ao impor à advocacia pública na esfera estadual a atribuição de promover a defesa do agente público que tenha incorrido em improbidade administrativa com base em parecer emitido pelo órgão público, ante possível inconstitucionalidade formal subjetiva, com afronta ao pacto federativo e à autonomia dos Estados;
(ii.iii) suspendendo os efeitos do art. 3º da Lei nº 14.230/21 - que prescreve a suspensão das ações de improbidade em curso ajuizadas pela Fazenda Pública (inclusive em grau de recurso), com prazo de um ano para o Ministério Público manifestar interesse no prosseguimento, com extinção do feito sem resolução de mérito em caso de desinteresse ou inércia -, por congruência lógica à interpretação de conformação acima referida (ii.i), uma vez que as normas desse artigo decorrem da competência exclusiva do Ministério Público para promover as ações de improbidade administrativa.
2. Breve histórico legislativo
A referida Lei nº 14.230/21 teve origem com o Projeto de Lei nº 10887/2018 do Deputado Roberto de Lucena (PODE-SP) apresentado em 17/10/2018. Arquivado e depois desarquivado, em 28/08/2019, foi designado relator o Dep. Carlos Zarattini (PT-SP). Nomeada uma Comissão de Juristas, presidida pelo Min. Mauro Campbell, STJ, e realizadas 14 audiências públicas, foi apresentado o relatório (Dep. Carlos Zarattini), em que consta a referência de que, para o anteprojeto, eram três as premissas básicas apontadas pelo Min. Mauro Campbell: “1. incorporar ao projeto a jurisprudência consolidada dos Tribunais Superiores na interpretação da LIA; 2. compatibilizar a lei com leis posteriores (novo CPC, Lei Anticorrupção e Lei de Introdução às normas de Direito Brasileiro - LINDB); e 3. sugerir novidades, novos institutos, novas premissas, que corrijam os pontos mais sensíveis da LIA.”
Após as audiências públicas e colhido material complementar, o relator destaca a constatação do “aumento do número de ações de improbidade” (dados do CNJ) e a avaliação política de “premente necessidade de adequação do texto legal, de forma a afastar presunções acerca de elementos essenciais para a configuração do ato de improbidade, como, por exemplo, a ocorrência de dano, a presença de dolo na conduta do agente e a extensão de seus efeitos a terceiros”.
Daí, então, no tal relatório do Projeto de Lei, as principais alterações propostas foram assim sintetizadas: “1. improbidade administrativa exclusivamente por atos dolosos; 2. previsão expressa acerca da aplicação da lei aos agentes políticos; 3. escalonamento das sanções; 4. previsão de legitimidade privativa do Ministério Público para a propositura da ação de improbidade; 5. previsão de celebração de acordo de não persecução cível; 6. regras mais claras acerca da prescrição em matéria de improbidade.”
3. A sistematização das inovações
Do histórico legislativo resumido já se antevê as principais alterações que Lei nº 14.230/21 introduziu na LIA.
Contudo, sobretudo para delimitar as questões em torno da aplicação de novas regras no tempo, parece oportuno um esforço de sistematizá-las, distinguindo as inovações normativas de direito material em relação às de direito processual, pois enquanto essas (inovações processuais) têm aplicação irretroativa e imediata, inclusive aos processos em curso, respeitando os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma antiga (art. 14 do CPC), sem muitas discussões de direito intertemporal, aquelas (inovações materiais) têm gerado acirrados debates, especialmente em relação à (ir)retroatividade das normas novas mais benéficas que as antigas.
Apontam-se, então, a partir da estrutura da própria Lei nº 8.429/92, como normas processuais referentes à ação de improbidade administrativa aquelas insertas em seu Capítulo V (Do Procedimento Administrativo e do Processo Judicial – arts. 14 a 18) e, daí, as reformas correlatas a esse capítulo podem ser classificadas como processuais, seguindo a sorte da solução de direito intertemporal adjetiva (art. 14 do CPC). Aqui, então, merecem destaque as seguintes inovações processuais:
(i) novas regras sobre indisponibilidade de bens (art. 16), que são mais precisas e detalhadas, anotada maior atenção à densidade probatória dos pressupostos de seu deferimento (§§ 3º, 4º, 7º), à delimitação de valores que a justificam (§§ 5º e 6º, que, aliás, não mais podem computar os de eventual aplicação de multa civil, diversamente do enunciado na tese fixada no Tema 1.055/STJ), à sua expansão subjetiva a terceiros (§ 7º), às consequências práticas da medida (§ 12 – por reflexo do prescrito no art. 20 da LINDB) e à expressa vedação de sua incidência sobre determinados valores e sobre os bens de família (§§ 13 e 14);
(ii) especificações processuais da ação de improbidade administrativa (art. 17), de natureza exclusivamente repressiva (art. 17-D), com normas próprias de competência e prevenção (art. 17, §§ 4º e 5º), de requisitos da petição inicial (§ 6º) e de procedimento, observada a possibilidade de tutelas provisórias (§ 6º-A), a melhor técnica de redação para as hipóteses de rejeição da petição inicial (§ 6º-B), a possível interrupção do prazo para contestar em havendo possibilidade de solução consensual (§ 10-A), a fixação precisa da tipificação do ato de improbidade administrativa imputável na decisão de saneamento do feito (§10-C), a necessidade de maior cuidado com a instrução (§§ 10-F, II, 18 e 19, I e II) e com a sentença, quer nos fundamentos (art. 17-C, I, II e III), quer na eleição e na individualização da sanção (art. 17-C, IV a VII), quer na capitulação (art. 17-C, I);
(iii) peculiaridades do sistema recursal, tal como a supressão do reexame obrigatório de sentença de improcedência ou de extinção sem resolução de mérito (art. 17, IV), a dispensa de preparo (art. 23-B) e o cabimento de agravo em decisão sobre indisponibilidade de bens (art. 16, § 9º), rejeição de preliminares suscitadas na contestação (art. 17, § 9º-A), conversão de ação de improbidade em ação civil pública (art. 17, § 17), enfim, admissível o agravo das decisões interlocutórias em geral (art. 17, § 21);
(iv) restrição do objeto da ação de improbidade administrativa ante sua natureza repressiva e caráter sancionatório, destinada, pois à aplicação das sanções de feição pessoal cominadas na LIA (art. 17-D), admitindo-se, em caso de sua procedência, a condenação ao ressarcimento dos danos e à perda ou à reversão dos bens e valores ilicitamente adquiridos, conforme o caso, em favor da pessoa jurídica prejudicada pelo ilícito (art. 18);
(v) possibilidade da conversão de ação de improbidade em ação civil pública, a qualquer momento (art. 17, § 16), quando não se vislumbrar a possibilidade de aplicar as sanções de caráter pessoal previstas na LIA, mas houver interesse residual (v.g. ressarcimento de danos) ou diverso que o justifique, pertinente ao controle de legalidade de políticas públicas, à proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, que são vedados à ação de improbidade (art. 17-D) e próprios da ação civil pública (art. 17-D, parágrafo único e Lei nº 7.347/85);
(vi) acordo de não persecução cível (art. 17-B), no curso da investigação do ilícito e da ação de improbidade, em fase cognitiva ou executiva (§ 4º), mediante, ao menos, o integral ressarcimento do dano e a reversão à pessoa jurídica lesada da vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de agentes privados (art. 17-B, I e II), bem como a satisfação dos requisitos legais (§§ 1º a 7º);
(vii) disciplina específica dos encargos econômicos do processo, afastando a obrigatoriedade de adiantamento de despesas processuais (v.g. custas, emolumentos e honorários periciais) – (art. 23-B), a serem pagas ao final, em caso de procedência da ação (art. 23-B, § 1º), prevista, enfim, a condenação dos honorários sucumbenciais, em caso de improcedência, se comprovada má-fé (art. 23-B, §2º).
As outras normas da lei (alheias ao Cap. V da LIA) podem ser classificadas como não processuais (stricto sensu), ou de direito material (lato sensu): (i) a maior parte (arts. 1º a 13, 20 a 22 e 23-A), qualificada no ramo do Direito Administrativo, especialmente na categoria conhecida por Direito Administrativo Sancionador; (ii) uma e outra, em ramos diversos, como o do Direito Penal (art. 19, aliás, inalterado) ou do Direito Eleitoral imbricado no Direito Administrativo Sancionador (art. 23-C); e, por fim, (iii) um artigo de lei a merecer considerações próprias, por sua relevância e controvérsia acerca da natureza jurídica de suas normas (se de direito processual ou de direito material), que dizem respeito à prescrição (art. 23), ora mais favorável que a antiga redação: o prazo prescricional de oito anos, contados da consumação do ilícito, admitindo-se, inclusive, a forma intercorrente de sua ocorrência (art. 23, § 8º).
Dentre as inovações legais de direito material administrativo sancionador, na esfera da improbidade administrativa, apontam-se apenas algumas, consideradas de aguda relevância e de eventual impacto intertemporal (retroativo).
A primeira, diz respeito ao elemento subjetivo da improbidade administrativa, que se desdobra em dois troncos de inovações:
(i) o da supressão de ato de improbidade praticado mediante culpa;
(ii) o da especificação de que o dolo que se exige, para a configuração da existência do ato ímprobo, é o dolo específico (ou seja, a “vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente” – art. 1º, § 2º, da LIA, em sua nova redação).
Observe-se, ademais, que a necessidade de dolo específico é, então, para que se configure o ato de improbidade administrativa em todas as condutas tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11 da LIA. Em outras palavras, sem o dolo específico o ato ímprobo nem sequer existe (está fora do plano da existência da improbidade administrativa). E isso importa não apenas para a qualificação do ato ilícito como ímprobo no âmbito intrínseco da LIA, mas também têm consequências reflexivas em outros ramos do direito, como nas esferas civil e eleitoral.
Assim, por exemplo, no campo da responsabilidade patrimonial, sem existência de ato ímprobo doloso tipificado na LIA não se pode cogitar em imprescritibilidade (Tema 897/STF), e, agora, ainda fica a pergunta: sem dolo específico, se houver revisão retroativa da lei mais favorável, inexistindo ato ímprobo pela nova lei (embora antes existente pela lei antiga), ainda persistirá a imprescritibilidade da responsabilidade civil correlata? E para os processos em curso? Não se nega a possibilidade de conversão da ação de improbidade em ação civil pública para a responsabilidade civil indenizatória; contudo, se não existe o ato ímprobo, a indenização não é imprescritível.
Ou, então, no campo eleitoral, considerando a denominada Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar nº 135/2010), que estabeleceu, em atenção ao comando constitucional (art. 14, § 9º, CF), a inelegibilidade (i) para os agentes públicos que tiveram contas rejeitas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, ou (ii) para os condenados por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, com suspensão dos direitos políticos. Não se poderá indagar o mesmo, em se admitindo a aplicação retroativa da lei mais favorável? Persistirá a inelegibilidade, caso não se tenha expressado o dolo específico?
E o mesmo raciocínio, aliás, vale para as hipóteses de não mais haver, pela lei nova, tipificação de ato de improbidade na LIA, embora anteriormente (ao tempo da ocorrência dos fatos que justificaram a persecução) houvesse.
Ademais, nesse segundo ponto de inovações substanciais legais (a rigor, um amplo bloco de novidades), a Lei 14.230/21 foi rica, bastando lembrar as novas redações que deu aos artigos 9º, 10 e 11 da LIA, em tipos fechados e, em regra, bem mais favoráveis aos investigados, réus e condenados por improbidade administrativa, em evidente novatio legis in mellius.
De fato, para além de constar em modo explícito, para todas as figuras de improbidade, como elemento subjetivo integrante dos tipos, a necessidade de “prática de ato doloso” (art. 9º), “ação ou omissão dolosa” (arts. 10 e 11), afastada, pois, a improbidade culposa que era possível para os atos ímprobos causadores de dano patrimonial ou lesão ao erário (art. 10), o artigo 11 da LIA (em que se concentrava a maior parte das condenações), sofreu significativas alterações, fixando-se o molde de tipificação fechada (em rol taxativo de atos ímprobos), em contraposição à tipificação aberta (em rol exemplificativo) que vigorava até então.
Aliás, em acréscimo, não falta no art. 11 da LIA, em sua nova redação, a inclusão de diversos parágrafos com nítido propósito de restringir o campo de incidência das figuras de condutas ímprobas:
(i) por referência ao dolo específico (“fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade” - § 1º - extensivo, aliás, “a quaisquer atos de improbidade administrativa tipificados nesta Lei” - §2º), na conduta funcional do agente público e para a necessidade de sua comprovação;
(ii) por imposição de “demonstração objetiva da prática de ilegalidade no exercício da função pública, com indicação das normas constitucionais, legais ou infralegais violadas” (§ 3º);
(iii) por exigência de “lesividade relevante”, independentemente “da ocorrência de danos ao erário e de enriquecimento ilícito dos agentes” (§ 4º), a indicar que estão expurgados da improbidade administrativa os atos ímprobos de lesividade irrelevantes (como, em Direito Penal, ocorre com os crimes de bagatela: a insignificância exclui a tipicidade material - STF, HC 84.412-SP, Rel. Min. Celso de Mello), inconfundíveis com os de “menor ofensa”, aos quais se prevê apenas a mitigação das sanções (art. 12, § 5º).
Essa inovação legal, sem dúvida, é de grande impacto não só para as futuras ações de improbidade administrativa, mas também, ao menos potencialmente, pela discussão jurídica que se tem apresentado em torno da eventual retroatividade dos efeitos ímprobo-abolicionistas da lei nova (por equiparação ao que ocorre com a abolitio criminis no Direito Penal), em relação ao universo dos fatos pretéritos ocorridos sob a vigência da lei antiga, às ações de improbidade em curso e até mesmo àquelas já findas e com condenação cobertas pela coisa julgada.
Não se olvide, ainda, as inovações relativas às sanções (art. 12 da LIA), que, no que forem mais benéfícas, podem, ao menos em tese, ensejar a mesma sorte de questionamento por eventual impacto retroativo da lei reformadora. Assim – ressalvadas as alterações que agravaram o sancionamento (v.g. por aumento do tempo máximo das sanções de suspensão de direitos políticos e da proibição de contratar com o poder público: art. 12, I, II e III) e aquelas que já estavam sedimentadas na jurisprudência ou que decorrem de lógica jurídica (v.g. a de contagem retroativa do prazo da sanção de suspensão dos direitos políticos, computando-se o intervalo de tempo entre a decisão colegiada e o trânsito em julgado da sentença condenatória: art. 12, § 10) – , pode-se afirmar como novatio legis in mellius no campo sancionador da improbidade:
(i) a redução do teto da multa civil, para todas as hipóteses de improbidade (art. 12, I, II e III);
(ii) a exclusão da cominação das sanções de perda da função pública e de suspensão de direitos políticos nas hipóteses de improbidade do art. 11 (art. 12, III);
(iii) a avaliação da responsabilização da pessoa jurídica considerando os efeitos econômicos e sociais das sanções no foco de preservar suas atividades (art. 12, § 3º);
(iv) a redução da multa civil em improbidade classificada como de menor ofensa (art. 12, § 5º);
(v) a limitação da sanção de proibição de contratar com o poder público ao ente público lesado, extensível a outro(s) apenas por exceção justificada (art. 12, § 4º).
Nisso tudo, então, é oportuno agregar e ressaltar a inclusão do § 4º do art. 1º na LIA, pela Lei nº 14.230/21, determinando que se aplicam “ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador”, para bem compreender se, dentre eles, encontra-se, ou não, o da retroatividade da lei nova mais favorável.
Para tanto, justifica-se aprofundar o exame de algumas dessas inovações substanciais da Lei nº 14.230/21, no foco do Direito Administrativo Sancionador.
4. O elemento subjetivo da improbidade administrativa
Nos primeiros tempos de vigência da LIA, a discussão era quanto à eventual possibilidade de se configurar algum tipo de improbidade administrativa sem culpa, bastando para tanto a prova da ilicitude/imoralidade (em modo similar à responsabilidade objetiva), tendo em conta que o artigo 10 fazia expressa referência à conduta dolosa ou culposa, ao passo que os artigos 9º e 11 nada prescreviam no ponto do elemento subjetivo[3].
Prevaleceu o entendimento de que, nessa esfera, era indispensável o elemento subjetivo para todas as figuras de improbidade administrativa, observando-se que aquelas dos arts. 9º e 11 exigem dolo, à moda da técnica legiferante do direito penal em que o silêncio afasta a conduta culposa, mas não dispensa a dolosa, associando-lhes, então, as ideais de desonestidade, má-fé e deslealdade com a Administração Pública (v.g. REsp. 604.151/RS, Rel. Min. José Delgado, Primeira Turma, julgado em 25/04/2006), com atenção, ainda, a natureza sancionatória da improbidade administrativa (STJ, REsp. 734.984/SP, Rel. Min. José Delgado, PrimeiraTurma, julgado em 18/12/2007). Contudo, a Segunda Turma do STJ chegou a posicionar-se no sentido de que bastava, nas figuras do art. 11 da LIA, a mera ilicitude ou imoralidade administrativa (v.g. (REsp. 737.279/PR, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, j. 13/05/2008; REsp. nº 488.882/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Segunda Turma, j. 17/04/2008), mas aquela outra corrente da necessidade do dolo foi ganhando corpo, nada obstante instaurada a divergência entre as Turmas do STJ.
Ante essa divergência, então, levada à questão à 1ª Seção do STJ, compostas pelos ministros das duas Turmas, o entendimento fixado foi no sentido de que bastava o dolo genérico (e não o específico), segundo princípio da mera voluntariedade, ou seja, o da suficiência do animus ou a simples voluntariedade de praticar determinada conduta, especialmente nas figuras de improbidade administrativa do art. 11 da LIA (REsp. nº 875.163/RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, 1ª Seção, j. 23/06/2010; a Segunda Turma mudou seu entendimento, no Recurso Especial 765.212/AC, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 02/03/2010, fixando a necessidade de “identificar-se na conduta do agente público, pelo menos, o dolo genérico, sob pena de a improbidade se transformar em hipótese de responsabilidade objetiva dos administradores” – cf. REsp. 1.319.541/MT, Relator Min. Herman Benjamin, DJe de 18/09/2013).
Abriu-se, então, com o tempo, nova discussão: se realmente bastava, ou não, o dolo genérico – simples voluntariedade - ou se era necessário o dolo específico, na improbidade administrativa por violação de princípios da Administração Pública (art. 11 da LIA). Entenda-se, se bastava a conduta livre e consciente de praticar o ato ofensivo aos princípios da Administração Pública, ou se era preciso a intenção específica de afronta aos princípios ou, ao menos, o risco assumido conscientemente de afrontá-los.
Assim, por exemplo, o entendimento do Ministro Mauro Campbell Marques, sustentando que no campo do Direito Administrativo Sancionador “aplica-se o princípio da culpabilidade, segundo o qual a punição de qualquer pessoa depende da sua atuação com dolo ou culpa, admitindo-se apenas excepcionalmente a responsabilização objetiva no âmbito não sancionatório do Direito Civil”, distinguindo-se, assim, “ a voluntariedade da vontade” e apontando “a necessidade de se perquirir pelo elemento subjetivo (intenção e vontade) para que se possa falar em punição por ato de improbidade administrativa”, enfatizando a necessidade de investigar o “especial fim de agir” (cf. voto-vista do Min. Mauro Campbell no REsp. 765.212/AC), e nesse foco acompanhado pelo Ministro Og Fernandes; mas, diversamente, outros Ministros apontaram a suficiência do dolo genérico, ou seja, da simples voluntariedade, tal como Francisco Falcão, Herman Benjamin e Assusete Magalhães (v.g. AgInt no AREsp. 1005332/MG, Rel. Min. FRANCISCO FALCÃO, Segunda Turma, j. 20/04/2021).
Presente a divergência, a orientação no sentido da necessidade de configuração do dolo específico, parece ter prevalecido na 1ª Seção do STJ (MS 21586/DF, 1ª Seção, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 22/05/2019; MS 21553/DF, 1ª Seção, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 22/05/2019).
O fato é que, agora, com a Lei 14.230/21 findou a discussão, não só com a supressão do ato de improbidade praticado mediante culpa (antes possível para as figuras do art. 10); bem como com a definição de que o dolo necessário para todas as figuras de improbidade é o específico (ou seja, a “vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente” – art. 1º, § 2º, da LIA, em sua nova redação).
Admissível, pois o dolo direto ou indireto (eventual), mas sempre específico, ou seja, com finalidade específica de “alcançar o resultado” ilícito tipificado em cada uma das hipóteses de improbidade administrativa (arts. 9ª, 10 e 11, da LIA); entenda-se, por exemplo, no quadro do art. 11 da LIA, o de alcançar lesividade relevante (noção mais ampla que a de dano ao erário, ou de fim ilícito patrimonial, que está inserta no atual §4º do art. 11 da LIA) determinada, segundo os elementos do tipo ilícito que for imputado como ato ímprobo (o intuito específico de praticar a conduta tipificada), não mais bastando a referência e verificação genérica de imoralidade, desonestidade, má-fé administrativa da conduta. A má-fé, então, é necessária, mas agora não é suficiente.
A configuração do dolo, pela vontade consciente e intenção do agente deve estar orientada a fim específico, ao direcionamento da conduta ilícita a resultado inerente ao tipo ímprobo imputado. E isso, sem dúvida, vai exigir maior atenção na qualificação jurídica da conduta (quer pelo autor da petição inicial, quer pelo juiz ao decidir), bem como na instrução processual (nas provas destinadas à formação da culpabilidade por dolo específico – art. 1º, § 3º, da LIA: “O mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa”), com maior cautela na verificação do contexto, do entorno da conduta em que se pode colher, objetivamente, a intenção do agente (prova indireta).
E, ressalte-se que, sem o dolo específico, elemento integrante do tipo, ato ímprobo nem sequer existe. E, sem existência jurídica, como já se apontou anteriormente, eventualmente admitida a retroatividade pela novatio legis in mellius, os impactos dessa retroatividade são de vastíssima amplitude, não só ao regime sancionatório da improbidade administrativa (efeito intrínseco à LIA), mas também aos regimes de outros campos do direito onde seus efeitos estão reflexivamente projetados (efeitos extrínsecos à LIA).
Exame de resultado almejado de conduta de agente púbico, por outro lado, também se faz considerando a prognose dos atos de gestão administrativa, e, por isso, inspirado na LINDB (art. 20), também importa verificar as consequências práticas da decisão administrativa classificada como ímproba, mas sem cair em armadilha maquiavélica na qual fins justificariam os meios, em pauta de conduta pragmático-consequencialista, conscientemente descolada da ética (que envolve meios e fins)[4].
Observe-se, ademais, a necessidade de mergulhar fundo no exame da decisão ou opinião administrativa; e, no passo excludente de responsabilidade dessas decisões ou opiniões, a LIA foi além da própria LINDB, uma vez que o § 1º de seu art. 28 foi vetado[5], mas agora o § 8º de seu art. 1º, de comando equivalente, não foi[6]. Talvez aí seja possível constatar incongruência no exercício do poder de veto; mas, ante a vigência dessa norma (art. 1º, § 8º), não se pode deixar de enfatizar a atual necessidade de maior cautela no exame de decisão ou opinião administrativa imputável como ímproba, quiçá, até mesmo, conforme o caso, vislumbrar algum campo propício para eventual abolição infracional ou revisão retroativa, se admitida.
5. A tipificação dos atos de improbidade administrativa, especialmente nas figuras do art. 11 da LIA
Há, de fato, na estrutura normativa da transgressão ímproba alguma proximidade – não identidade necessária – com a estrutura normativa penal.
Daí se diz, por exemplo, para o conjunto das transgressões disciplinares, conforme a doutrina de José Armando da Costa, que o ilícito administrativo, com certa similitude com o ilícito penal, é composto de “duas bases”, uma “hipotética” (“descrição legal da conduta punível”) e uma “factual” (conduta do transgressor prevista em lei). A primeira (“base hipotética”) “se desdobra em duas: base hipotética expressa e base hipotética em branco”, aquela “descrita, pelo legislador” (em regra, para “transgressões puníveis com sanções mais graves”), esta, não descrita na regra legal, sob a margem de discricionariedade (em regra, para “faltas disciplinares de natureza leve”). A segunda (“base factual”) “é, em alguns casos típica, e, noutros casos, atípica” e “para ser caracterizada como ilícito” basta “a voluntariedade do infrator”[7].
Esse norte, forjado no campo disciplinar administrativo, tem potencial de projeção, como regra geral, para o Direito Administrativo Sancionador (DAS), mas pode variar, como exceção, em suas espécies, como ocorre no sistema da improbidade administrativa, que caminhou, em todas suas configurações, não só com a imposição do dolo específico (afastada a mera voluntariedade), mas também para a tipologia fechada de base hipotética expressa, em rol exaustivo, tal como se verifica com a nova redação do art. 11 da LIA, que se afastou de uma tipologia aberta, em que preponderava a base hipoteca em branco e o rol exemplificativo.
Para melhor e bem compreender tal reforma do art. 11 da LIA, é preciso ter atenção a dois pontos nucleares: (i) o da literalidade da norma, em interpretação gramatical, especialmente do caput; (ii) o da revogação de seus incisos I e II.
Confira-se, primeiro, o teor do art. 11, caput, da LIA, na antiga e nova redação que lhe deu a Lei nº 14.230/21:
Lei nº 8.429/1992 |
Lei nº 14.230/2021 |
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: |
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas: |
Observe-se, agora, o texto dos incisos I e II do art. 11 da LIA, que foram revogados e que apontavam tipos de atos ímprobos: “I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência”; “II - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício”.
Perceba-se, pois, nessa alteração do caput e na revogação dos incisos I e II, o caminho no sentido de:
(i) alterar o tipificado como rol aberto (exemplificativo) em rol fechado (exaustivo ou taxativo): “qualquer” (redação anterior) => “a” (redação nova); “e notadamente” (redação anterior) => “caracterizada por uma das seguintes condutas” (redação nova);
(ii) minimizar, senão excluir, as bases hipotéticas em branco de configuração do ato ímprobo (v.g. revogação dos incisos I e II), para além de não mais se poder cogitar em improbidade “qualquer ação ou omissão” de violação aos princípios da administração pública com a marca da imoralidade (má-fé, desonestidade).
No mais, para a redação dos tipos de atos ímprobos previstos no art. 11 da LIA em sua nova redação, verifica-se, igualmente, uma forte tendência de redução de seu campo de incidência, ora por elementos objetivos, ora – e com abundância – pelos elementos subjetivos do tipo, reforçando nas várias figuras o dolo específico que já se havia apontado em norma geral (art. 1º, §§ 2º e 3º):
(i) assim, na figura de seu inciso III (“revelar fato ou circunstância de que se tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo”), acresceu-se finalidade (resultado ilícito) singular: “propiciando beneficiamento por informação privilegiada ou colocando em risco a segurança da sociedade e do Estado”[8];
(ii) na figura do inciso IV (“negar publicidade aos atos oficiais”), restringiu-se seu campo de incidência pela inclusão de exceção: “exceto em razão de sua imprescindibilidade para a segurança da sociedade e do Estado ou de outras hipóteses instituídas em lei”[9];
(iii) na figura do inciso V (“frustrar a licitude de concurso público”), de um lado alargou-se sua abrangência para outras modalidades concorrenciais (as “de chamamento ou de procedimento licitatório”, além do “concurso público”), mas, de outro, reduziu-se à conduta tipificada apenas àquela que frustrar o certame por ofensa “à imparcialidade”, assim afrontando o “caráter concorrencial”, e, ainda, com o dolo específico explícito (“com vistas à obtenção de benefício próprio, direto ou indireto, ou de terceiros”);
(iv) na figura do inciso VI (“deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo”), a redução veio pela inclusão de elemento objetivo fático-circunstancial (“desde que disponha das condições para isso”) e pelo elemento subjetivo do dolo específico (“com vistas a ocultar irregularidades”);
(v) revogaram-se, também, as figuras do inciso IX e X: a primeira pertinente ao campo da acessibilidade (“deixar de cumprir a exigência de requisitos de acessibilidade previstos na legislação”) e a segunda, ao da transferência de recursos na área de saúde (“transferir recurso a entidade privada, em razão da prestação de serviços na área de saúde sem a prévia celebração de contrato, convênio ou instrumento congênere”).
É verdade que a Lei 14.230/21, no referido art. 11, introduz duas figuras de atos ímprobos (incisos XI e XII), em aparente quadro de lei mais prejudicial que a antiga (que não as previa em figuras próprias), mas isso, em verdade, é apenas na aparência, não em substância de comandos.
De fato, a figura pertinente à reprovação do nepotismo inserta no inciso XI[10], não é mais que adequação à Súmula Vinculante 13/STF[11], que, nesse limite, já contava com enquadramento no tipo aberto do art. 11 da LIA em sua antiga redação. Contudo, a Lei 14.230/21 introduziu, para essa figura, no § 5º do mesmo art. 11, a ressalva da “mera nomeação ou indicação política por parte dos detentores de mandados eletivos”, que, mais uma vez, tem a função de restrição de campo de incidência de configuração do ilícito e que induz incertezas (como aponta Marçal Justen Filho[12]).
De outro lado, a figura referente à improbidade por publicidade ofensiva ao § 1º do art. 37 da Constituição Federal, que, na redação anterior do art. 11 da Lei, também encontrava enquadramento, nada obstante a ausência de figura típica específica, também sofreu restrição de campo de incidência para configuração do ato ímprobo, quer pela circunstância objetiva de que se tenha praticado “no âmbito da administração pública e com recursos do erário” (logo, por exemplo, se for com recursos alheios ao do erário, improbidade não haverá) e com “inequívoco enaltecimento” (adjetivação de engrandecimento que pode comportar leitura restritiva, no sentido de ir além da personalização de que cuida o § 1º do art. 37 da CF), quer pela necessidade de dolo específico (colhida nos §§ 1º e 2º do mesmo art. 11, na redação da Lei 14.230/21).
Assim, substancialmente, até mesmo essas novas figuras de atos ímprobos do art. 11 da LIA (incisos XI e XII), a rigor, caracterizam novatio legis in mellius.
Diante, então, de tamanhas flexibilizações redutivas dos campos de incidência das figuras por atos de improbidade prescritos no art. 11 da LIA, ora em rol fechado – manifestamente favoráveis aos acusados e condenados com enquadramento nesse artigo de lei segundo o teor da antiga redação – e, em caso de eventual retroatividade ampla por novatio legis in mellius, fica difícil imaginar alguma situação e condenação pretérita que, em tese, não escape à reanálise retroativa. Nesse caso, enfim, parece que será inevitável revolver a maior parte (volume que não é pequeno!) não só de processos em curso, mas de condenações por improbidades já pronunciadas, em forte abalo à estabilização e à segurança jurídica do sistema.
6. O Direito Administrativo Sancionador. Aproximação histórico-conceitual e cautelas para extração de seu conteúdo principiológico
Outro ponto em que se encontra a matéria com feição de larga abrangência é o da categoria do Direito Administrativo Sancionador (DAS), que o § 4º do art. 1º da LIA, por inclusão da Lei 14.230/21, ora expressa nos seguintes termos: “Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador”.
Acrescente-se, ademais, em paralelo à essa menção, o teor do art. 17-B da LIA, igualmente incluído pela Lei 14.230/21, prescrevendo que “a ação por improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal previstas nesta Lei, e não constitui ação civil, vedado seu ajuizamento para o controle de legalidade de políticas públicas e para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos”.
Ficam, então, em aberto – e isso é de aguda relevância para se compreender se haverá, ou não, retroatividade da lei nova mais favorável – algumas questões: o que se deve compreender por Direito Administrativo Sancionador (DAS)? Como é a mecânica de sua construção doutrinária e jurisprudencial? Qual sua teoria elementar? Qual a principiologia que o informa no âmbito da improbidade administrativa a partir das matrizes constitucionais?
Destaque-se, de saída, que o Direito Administrativo Sancionador é uma categoria jurídica doutrinária, importada de países europeus (onde é considerada há um bom tempo).
Parece suficiente, para a delimitação do Direito Administrativo Sancionador na atualidade, compreender os movimentos na Alemanha, que foram do “Direito Penal de Polícia” ao “Direito Penal Administrativo”, e, depois, especialmente na Espanha, ao denominado “Direito Administrativo Sancionador”.
Heinz Mattes apresenta, com profundidade, o devir histórico da matéria na Alemanha[13] e, em apertadíssima síntese, pode-se afirmar que a partir do final do século XIX, surgiram novos pontos de vista em relação à teoria do direito penal de polícia, especialmente com Max E. Mayer (pois, com ele “se encerra a época do direito penal de polícia, que havia começado com a teoria, apoiada na ideia do direito natural individualista, formulada ao modo clássico por Feurbach” [14]), com Reinhard Von Frank (ao apontar a necessidade de separar “os delitos graves dos leves, com tratamento diferenciado de ambos, tanto no aspecto jurídico material como no jurídico processual”[15]) e, sobretudo, com James Goldschmidt, quando, então, já iniciada “a transformação do Estado de polícia do liberalismo tardio no moderno Estado administrativo”[16].
De fato, daqueles novos pontos de vista e com os trabalhos precursores de “Stahl, Lorenzo Von Stein e Otto Mayer, que desenvolveram a teoria da Administração e do direito administrativo”[17], foi possível James Goldschmidt fixar a “teoria do direito penal administrativo”[18], engendrado pela Administração como poder penal administrativo distinto do poder penal constitucional (direito penal de Justiça): aquele, para os delitos administrativos, como fenômeno de Direito Administrativo; este, para os delitos do Direito Penal[19].
Embora a teoria do “Direito Penal Administrativo” (Goldschmidt) tenha se fixado e difundido na primeira metade do século XIX, com diversos debates, críticas e lapidações[20], ela passou por algum adormecimento no período da II Guerra Mundial e, depois, na “evolução do pós-guerra”, voltou fortemente à cena, o que ficou conhecido como “renascimento do direito penal administrativo”, especialmente com os estudos de Eberhard Schmidt sobre o direito penal econômico[21], até culminar em 1952 (e, adiante, em 1968) com a lei alemã conhecida como de direito penal de ordem, ou de infrações e penas de ordem, à moda de E. Schmidt. E, ainda, como aponta Heiz Mattes, em direito comparado, quadro similar também é o da situação jurídica da matéria em alguns outros países europeus (Áustria, Suíça, Franca e Itália)[22].
Agora, então, com Alejandro Nieto García, senão o maior um dos maiores juristas que estudaram essa matéria na Espanha, o caminho ao Direito Administrativo Sancionador.
Convertida a ideia de Polícia em “uma modalidade dentre as múltiplas atividades administrativas, rompendo-se a velha identidade entre Polícia e Administração”, a partir da Alemanha, buscou-se “um novo lugar para residir as contravenções de polícia”, mas, na Espanha, “a concepção policial se manteve durante mais tempo”, também passou por “uma fase de Direito Penal Administrativo (até breve e simplesmente doutrinal)” e ingressou, “quase por salto, a um Direito Administrativo Sancionador de caracteres originais e em nada tributário do Direito estrangeiro”[23].
E, assim, surgiu na Espanha o “Direito Administrativo Sancionador, criado, batizado e desenvolvido pela Jurisprudência contencioso-administrativa – logo complementada pela penal”, mas, “como seu nome indica e a diferença do velho Direito Penal Administrativo”, ele (DAS) “é em primeiro plano Direito Administrativo, no qual o "Sancionador" impõe uma mera modalização adicional ou adjetiva”. Em outras palavras, “o plus que adiciona o ‘sancionador’ significa que este Direito está invadido, colorido, pelo Direito Penal sem deixar de ser Administrativo”, e, assim, ele (DAS) “pode funcionar perfeitamente de maneira autônoma e rigosamente independente do Penal”[24].
No Brasil, vem agora, na lei, a menção aos “os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador”, mas não há em nosso ordenamento jurídico alguma lei ou alguma norma legal (constitucional ou infraconstitucional) – diversamente do que se pode encontrar em outros países, como na Espanha[25] – que expresse o seu conteúdo normativo ou principiológico. É necessário, então, um esforço doutrinário e jurisprudencial, para compreender o Direito Administrativo Sancionador em nosso país apenas por inferência das matrizes constitucionais comuns ao seu campo de incidência plural no contexto do direito administrativo.
Daí, então, a grande divergência acerca de seu conteúdo e seus contornos (ou limites) normativos ou principiológicos. Em todo caso, parece certo, que aqui se abarca, como gênero, as diversas espécies do direito sancionador inerentes ao direito administrativo, sem confusão com outras espécies do direito sancionador (categoria de maior amplitude, que abarca o direito penal, o direito eleitoral sancionador, o direito político-administrativo sancionador e, também, o direito administrativo sancionador).
Cogitar, então, em princípios constitucionais do direito administrativo sancionador não importa equivalência alguma aos princípios do direito penal (sancionador), do qual se distinguem, por natureza diversa, os princípios do direito administrativo (sancionador). Pode sim, haver alguma aproximação; não, contudo, identidade. Afinal, os princípios deste (DAS) são próprios do universo do direito administrativo, atento, pois, ao que é comum, a partir da matriz constitucional, ao direito sancionador que incide na pluralidade disciplinar/ilícita/censória/punitiva que envolve a Administração Pública (que vale, por exemplo, ao direito disciplinar dos servidores públicos e delegados de serviços públicos, ao direito sancionador das infrações de trânsito, do exercício do poder de polícia, dos contratos administrativos e concessões públicas, etc., bem como ao sistema de improbidade administrativa).
Assim, por exemplo, já se afirmou no STJ que os “princípios da proporcionalidade, dignidade da pessoa humana e culpabilidade, aplicáveis ao Regime Jurídico Disciplinar de Servidor Público e mesmo a qualquer relação jurídica de Direito Sancionador” impõe a evidência de que “não há juízo de discricionariedade no ato administrativo que impõe sanção a Servidor Público em razão do cometimento de infração disciplinar, de sorte que o controle jurisdicional é amplo, não se limitando, portanto, somente aos aspectos formais” (MS 21586/DF, 1ª Seção, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 22/05/2019).
Não se nega, até pela leitura da exposição de motivos da Lei nº 14.230/21, que, essa lei “altera, de maneira direta, a lógica e o sistema de sanções por atos de improbidade”, e, portanto, “algum paralelo foi feito com o processo penal”. Todavia, daí e do prescrito no art. 1º, § 4º, e até mesmo do art. 17-D, ambos da LIA, afirmar que deve haver uma automática transposição dos princípios específicos do direito penal ao direito administrativo sancionador, vai uma longa distância.
Há, então, um núcleo principiológico e uma teoria elementar, comum ao Direito Administrativo Sancionador, que não se pode desprezar, mas, repita-se, por ausência de legislação específica há, em verdade, muita divergência na matéria. E se deve buscar solução com muita prudência, sem açodamento.
Afinal, é preciso ter atenção aos campos distintos do Direito Penal e do Direito Administrativo, na esfera da tipificação dos ilícitos e sancionamentos adequados e proporcionais. Essa, aliás, foi a razão histórica pela qual o Direito Administrativo Sancionador apartou-se do Direito Penal.
E, como adverte Alejandro Nieto, “os tribunais (e os autores) tem que ser conscientes de que, se for muito esticada, a corda rompe, e o princípio fundamental de Direito Administrativo Sancionador, como de todo exercício de Direito, é a prudência”[26]. Aliás, também vale para o Brasil a cautela que esse jurista já apontou para a Espanha: se é certo que o Direito Administrativo Sancionador pode ter seus “cimentos na Constituição”, também é verdade que “sobre a natureza constitucional dos princípios fundamentais do Direito Administrativo Sancionador pesa algo mais que a sombra de uma dúvida, porque até agora não se encontra – nem se encontrará a menos que se modifique a Constituição – um texto que o apoia mais ou menos diretamente”. Daí, nada obstante o bom propósito de se querer “cimentar solidamente este ramo do Direito”, é preciso muita cautela e prudência, pois “as consequências de uma falsificação inicial deste calibre nunca podem ser boas. A constitucionalização da matriz tem provocado uma intensa rigidez do regime que se está pagando muito cara”[27].
7. A fonte de inspiração do Direito Administrativo Sancionador: Direito Penal ou Direito público estatal?
Ao se perceber, na Lei nº 14.230/21 tantas inovações decorrentes de inspiração, até mesmo transposição, do que é próprio do regime de Direito Penal ao regime da improbidade administrativa (v.g. o modo fechado de tipificação), fica a impressão de que é no Direito Penal, a partir das garantias individuais que lhe são próprias e expressas na Constituição Federal, que se deve compreender, por inspiração, ou importação, o rol dos princípios de Direito Administrativo Sancionador de que cuida o § 4º do art. 1º da LIA.
Contudo, essa não parece ser a melhor solução, pelo que se colhe da evolução história e da axiologia do Direito Administrativo Sancionador.
É de Alejandro Nieto a lição de que “o poder sancionador da Administração é tão antigo como ela mesma” e foi “a partir do constitucionalismo” e do “desprestigio ideológico da Polícia, que arrastou consigo inevitavelmente o do poder sancionador da Administração”, que “se reconheceu o monopólio estatal da repressão” em favor “dos Juízes e Tribunais”. Derivou, pois, esse monopólio de um “ius puniendi superior do Estado”, único e ao qual está integrado o poder sancionador da Administração. Assim, ante o movimento histórico de construção do Direito Administrativo Sancionador em modo segregado ao Direito Penal, “o lógico” seria aquele (DAS) nutrir-se “da substância do poder matriz” (ius puniendi do Estado, ou seja, do Direito público estatal) e não do Direito Penal como se tem verificado. E, nessa distorção, vislumbra-se “uma substituição ilegítima, que importa denunciar e se necessário corrigir”[28].
Não se olvide que o “Direito Penal é um direito garantista, preocupado com o respeito ao direito dos acusados”; e o “Direito público estatal, sem menosprezo das garantias individuais, põe em primeiro plano a proteção e o fomento dos interesses gerais e coletivos”. Portanto, é preciso, “transladar o Direito Administrativo Sancionador do campo do Direito Penal (...) ao do Direito público estatal”. Afinal, “não foi por acaso que o velho nome Direito Penal Administrativo foi substituído por Direito Administrativo Sancionador”[29].
Ressalte-se que a centralidade da fonte inspiradora do Direito Administrativo Sancionador no Direito público estatal, e não no Direito Penal, em nada menosprezam as garantias individuais, as quais naquela esfera (DAS) “não tem que proceder forçosamente do Direito Penal, mas sim da autonomia própria do Direito Administrativo Sancionador”[30].
E, ainda que não se caminhe por essa fonte de inspiração, a ênfase no alicerce do Direito Administrativo Sancionador a partir de princípios constitucionais, por si, não autoriza a equiparação principiológica constitucional entre Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador. Afinal, mesmo considerando que neste campo (DAS) o “primeiro pilar” seja a Constituição e “o segundo”, tenha se assentado no Direito Penal, a evidência da construção histórica, ontológica e axiológica é a de que “O Direito Administrativo Sancionador encontra sua identidade quando consegue determinar com precisão o que o separa do Direito Penal, e assim demonstra que não é um mero filho dele, ao modo de um Direito Penal de bagatela ou de segunda categoria”[31] .
8. A teoria elementar do Direito Administrativo Sancionador. Esboço de sistematização no Direito Brasileiro
Partindo do Direito Administrativo atrelado à categoria superior do ius puniendi do Estado (Direito público estatal), e aí imbricado o fluxo de inspiração do Direto Administrativo Sancionador, avança-se no esforço de sua construção sistemática brasileira. E nessa aproximação teórica elementar, talvez seja de bom proveito começar com algumas máximas ou regras gerais de interpretação:
(i) a “norma administrativa deve ser interpretada e aplicada da forma que melhor garanta a realização do fim público a que se dirige” (artigo 5º Lei estadual nº 10.177/98), i. e, impõe-se a “interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação” (artigo 2º, parágrafo único, XIII, da Lei nº 9.748/99), observada, ainda, na hipótese de “interpretação ou orientação nova” a necessidade de se “prever regime de transição” (art. 23 da LINDB);
(ii) disposições que cominam penas reclamam “exegese rigorosa, estrita”[32], não comportam interpretação extensiva nem ampliação analógica, e daí “vedado o uso de interpretação extensiva no âmbito do direito sancionador” (STJ, AgInt nos EREsp. 1761937/SP, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, julgado em 19/10/2021, DJe 22/10/2021, com referência à falta de tipicidade em improbidade administrativa para pena de cassação de aposentadoria[33]);
(iii) na avaliação da ocorrência, ou não, de infração administrativa de agente público em geral (no âmbito, pois, do DAS), é preciso ter atenção às “consequências práticas” (art. 20 da LINDB), às “circunstâncias práticas” (art. 22, § 1º, da LINDB), bem como aos “obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo” (art. 22 da LINDB), que estão da decisão ou conduta subjacente à infração em exame;
(iv) as clássicas máximas de Direito Penal in dubio pro reo ou in dúbio mitius interpretadum est sempre podem ser invocadas em Direito Sancionador, bem como as que se reportam à interpretação benigna em situação de dúvida ou de punição (in dubiis benigniora praeferenda sunt e in poenalibus causis benignius interpretandum est), pois decorrem da presunção de inocência inerente a todo sistema de imputação pessoal de ilícitos;
(v) em sede de aplicação do Direito Administrativo (incluso o Sancionador), as autoridades públicas (inclusa as judiciais) “devem atuar para aumentar a segurança jurídica”, preferindo, pois, a exegese que confira estabilidade à que deságue em instabilidade e insegurança jurídica (art. 30 da LINDB).
Quanto à eleição da sanção, “o critério da gravidade das condutas castigadas” - que serve para a distinção geral entre infrações penais e administrativas, apoiando o princípio da intervenção mínima de Direito Penal[34] -, também informa o Direito Administrativo Sancionador, em si, quer pela gradação legal das infrações (v.g. infrações graves e leves; de lesividade relevante ou insignificante; de lesividade maior ou menor), quer no julgamento do mérito do processo sancionador, pois, por exemplo, como é a lição de Diógenes Gasparini no campo disciplinar em geral, a “autoridade competente, em razão da gravidade do fato determinante da punição, escolhe, dentre as penas, a que melhor atenda ao interesse público e que melhor puna a infração praticada”[35].
E, isso é assim, com igual respeito às normas da LINDB, ao prescrever que é preciso, na “aplicação de sanções”, considerar “a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente” (art. 22, § 2º), bem como levar em conta, como regra geral, nas sanções aplicadas, a “dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato” (art. 22, § 3º).
Na esfera da improbidade administrativa, essa matéria tem colorido especial e expresso no art. 12 da LIA, observando que as sanções “podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato” (caput) e que a sanção de perda função pública (art. 9º e 10), “atinge apenas o vínculo de mesma qualidade e natureza que o agente público ou político detinha com o poder público na época do cometimento da infração” (§1ª), estendendo-a apenas “em caráter excepcional” (art. 9º), “aos demais vínculos, consideradas as circunstâncias do caso e a gravidade da infração” (§ 1º). E, no campo da duplicidade de sancionamento pelo mesmo fato, vedado o bis in idem à pessoa jurídica enquadrada na LIA e na Lei nº 12.846/2013 (art. 3º, § 2º, e 12, § 7º, ambos da LIA). Tudo, ainda, não se olvidando a necessidade de precisa individualização da sanção, na forma detalhada do art. 17-C, IV a VII, da LIA, em sua redação conferida pela Lei nº 14.230/21.
Outrossim, em ordem à uma teoria elementar, comum ao Direito Administrativo Sancionador, não se pode deixar de destacar um núcleo principiológico, mas, repita-se, por ausência de legislação específica há, a rigor, muita divergência na matéria.
Parece, todavia, viável apontar ao Direito Administrativo Sancionador, em primeira aproximação, os seguintes princípios[36]:
(i) princípio de legalidade: em sede administrativa sancionadora, informa que apenas lei formal autoriza tipificar infrações e cominar sanções[37];
(ii) princípio de reserva legal ou de anterioridade: com raiz no “princípio da legalidade dos delitos e das penas” em geral - que, “para a honra dos povos hispanocêntricos, teve origem histórica na outorga feita por Dom Afonso IX, Rei de Leóns e da Galícia, às Cortes leonesas, no ano de 1.188”[38]-, aponta que as infrações e sanções devem estar previstas e previamente estatuídas em lei[39];
(iii) princípio de tipicidade: indica que infrações e sanções devem estar descritas em norma jurídica, de modo suficientemente claro e preciso, mas, no foco da tipicidade das infrações funcionais, basta, em regra, o tipo genérico, pois não se exige definição ou tipo específico da falta disciplinar, enquanto, no foco da improbidade administrativa, por exceção, prevalece a tipificação descritiva e fechada, em rol exaustivo, desde o início de vigência da Lei 14.230/21;
(iv) princípio de non bis in idem: comunica que, no âmbito interno de cada ramo do direito e de cada regime sancionatório, é vedada a duplicidade de sanções de igual natureza por um mesmo fato infracional, e, em havendo tal duplicidade em regimes sancionatórios em um mesmo ramo, o apenamento prévio deve ser compensado na aplicação da nova sanção (art. 22, § 3º, da LIA)[40], não se descurando, por fim, em sede de “sanções aplicadas a pessoas jurídicas”, da vedação à duplicidade de sancionamento para o mesmo fato infracional qualificado simultaneamente na Lei de Improbidade Administrativa (LIA) e na Lei Anticorrupção (LAC - Lei 12.846/13), em que se impõe, expressamente, a observância ao “princípio constitucional do non bis in idem” (art. 12, § 7º e art. 3º, § 2º, ambos da LIA);
(v) princípio de culpabilidade ou de mera voluntariedade: em sede administrativa disciplinar e repressiva, o princípio de culpabilidade tem leitura própria, pois a responsabilidade pode pressupor dolo ou culpa, mas, para as infrações formais, basta a simples inobservância de dever funcional, e, assim, afirma-se o denominado princípio da mera voluntariedade, informando que, no âmbito administrativo sancionador em geral não há necessidade de dolo ou culpa, bastando o animus ou a simples voluntariedade de praticar determinada conduta, salvo previsão legal diversa e específica em sentido contrário, como atualmente se encontra na LIA, por força da Lei nº 14.230/21, a exigir o dolo específico.
f) princípio de proporcionalidade: impõe “adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público” (art. 2º, parágrafo único, VI, da Lei nº 9.748/99, que traduz o princípio no âmbito processual administrativo, mas cujo conceito também vale para o processo judicial administrativo-repressivo);
g) princípio de motivação: na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, a “Administração é obrigada a expor os fundamentos em que está embasada a sanção”, sob pena de “nulidade do apenamento”[41], e vale igualmente para o Poder Judiciário em sua função jurisdicional repressiva, não se olvidando que no regime sancionatório da improbidade administrativa, como já se apontou, a fundamentação exige densidade e amplitude, não só pela aplicação dos novos princípios do CPC/2015, mas também pelas indicações da própria LIA em sua nova redação, a incluir o campo do juízo fático-jurídico e da demonstração das provas em que se sustenta a condenação;
h) princípio de prescrição: porque a sanção nesta seara importa em punição ao infrator, a inércia da Administração Pública, no decurso do tempo, resulta na extinção do ius puniendi, ou seja, da pretensão punitiva do Estado, observando, com José Armando da Costa, que a “prescritibilidade das sanções disciplinares é princípio mundialmente sacramentado” [42], e o mesmo vale, com adaptações, para a esfera judicial da improbidade administrativa, que, na atual redação da LIA, contêm normas expressas sobre o ponto, mais benéficas aos supostos infratores (prevista, inclusive, a figura da prescrição intercorrente).
Oportuno, finalizar o item, destacando o denso estudo de José Roberto Pimenta Oliveira e Dinorá Adelaide Musetti Grotti sobre a matéria – acerca, como intitulado, do Direito administrativo sancionador brasileiro: breve evolução, identidade, abrangência e funcionalidades –, publicado em março/abril de 2020 (antes, pois, da Lei 14.230/21), no qual, apontado o fenômeno da expansão do DAS, identificam-se os seus princípios constitucionais, segregando-os os materiais dos processuais, e, em resumo, assim os catalogam:
“Direitos e garantias constitucionais individuais que merecem atenção cuidadosa no Direito Administrativo Sancionador podem ser catalogados e classificados como princípios materiais e processuais. São materiais, vez que incidem diretamente na relação jurídico-administrativa sancionadora: legalidade, tipicidade, irretroatividade de norma mais prejudicial, imputação adequada, pessoalidade, proporcionalidade, prescritibilidade e non bis in idem. São princípios processuais, vez que incidem na relação jurídico-processual administrativa que objetiva a produção do ato administrativo sancionador: devido processo legal, imparcialidade, contraditório, ampla defesa, presunção de inocência, garantia da não-auto-responsabilização, inadmissibilidade de provas ilícitas, recorribilidade, definição, a priori, da competência administrativa sancionadora, motivação e duração razoável do processo”[43].
Observe-se, nesse estudo, que, dentre os princípios constitucionais materiais de Direito Administrativo Sancionador, por derivação do princípio de legalidade, aponta-se o da irretroatividade de norma mais prejudicial[44], mas nele não há uma linha sequer em torno da eventual retroatividade de norma mais favorável. Estaria, propositalmente, fora do catálogo? Poder-se-ia entender implícito, ou incluído indiretamente, por inferência ao da irretroatividade da norma mais prejudicial que se apontou?
9. Sobre a (ir)retroatividade da lei nova mais favorável em Direito Administrativo Sancionador. Esboços para soluções de questões de direito intertemporal material
Como já se antecipou, há inúmeras incertezas e dúvidas quanto à adequada interpretação e aplicação das novas normas da LIA (sobretudo em sede de direito intertemporal material): (i) aos fatos ocorridos ao tempo da lei antiga, aplica-se a lei antiga ou a lei nova? (ii) aos processos em trâmite antes da lei nova, impõe-se, ou não, a adaptação à Lei nº 14.230/21? (iii) as sentenças condenatórias transitadas em julgado – pendentes, ou não, de cumprimento (total ou parcial) –, escapam, ou não, dos efeitos da lei nova mais benéficos aos infratores?
É preciso cautela nessa avaliação e, de saída, evitar os polos extremos de tentações interesseiras ou ideológicas: (i) um, de política abolicionista, centrada apenas em interesses de tirar da lei nova proveito aos infratores condenados, em vias de ser ou em risco de sofrer processos por improbidade administrativa; (ii) outro, de desencanto com o estrago que se fez na LIA, ante os nítidos propósitos da Lei nº 14.230/21 de minguar as condenações por improbidade administrativa, reduzindo ou minimizando, neste campo, a tutela da moralidade, centrada apenas em esforço ativista de ignorar ou inconstitucionalizar as inovações legais, no escopo de preservar, em tudo e o quanto der, a lei antiga, seja qual for o argumento.
A razoabilidade na interpretação e a prudência na aplicação, então, se impõe, especialmente no ponto da transposição da abolitio criminis – ou da regra da retroatividade da lei penal mais favorável (art. 5º, XL, da CF) ao sistema da improbidade administrativa. E aí está a chave para solução daquelas questões de direito intertemporal material.
Há diversos e respeitáveis entendimentos, e, ao que parece, formam-se duas correntes principais, de relevantes e respeitáveis densidades argumentativas:
(i) uma pela transposição da abolitio criminis ao regime jurídico da improbidade administrativa, via princípios constitucionais que se apontam também ao Direito Administrativo Sancionador, especialmente em campo de densidade infracional e punitiva como é o da improbidade;
(ii) outra, pela inadmissibilidade dessa transposição, ante a especificidade e distinção de fins, de bens jurídicos tutelados e de princípios específicos e autônomos do Direito Administrativo Sancionador, que não comungam com todos os princípios do Direito Penal.
No STF, a questão está posta em repercussão geral já admitida (Tema nº 1199, ARE843.989) e o voto do Rel. Min. Alexandre de Moares, pela admissibilidade, bem resume a divergência de entendimentos que reina no assunto.
Não se nega, ademais, uma forte tendência à resposta assertiva para a aplicação da lei nova mais benéfica em todas aquelas situações questionadas, invocando a expansão do Direito Administrativo Sancionador, ao fundamento de que se reclama cada vez mais aproximação aos princípios e critérios operacionais garantistas do Direito Penal. Assim tem sido a orientação de boa parte da academia, e alguma tendência nessa direção também se pode vislumbrar no STJ (é o que se pode ler no voto-vista da Min. Regina Helena Costa, REsp. 1353267/DF, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Rel. p/ Acórdão Ministra REGINA HELENA COSTA, Primeira Turma, julgado em 23/02/2021, DJe 25/03/2021[45]).
Mas, mesmo no STJ, a questão – embora em exame no campo do processo administrativo disciplinar (PAD), em matéria de prescrição advinda em lei superveniente –, não ganhou tanta elasticidade, inclusive em face de argumentação calcada no Direito Administrativo Sancionador: conclui-se, pelos fundamentos do voto do Rel. Min. Herman Benjamin, que a prescrição superveniente poderia ser aplicada ao processo em curso, não, contudo, aos processos findos, destacando-se com a doutrina de Fábio Medina Osório, que, "se no Brasil não há dúvidas quanto à retroatividade das normas penais mais benéficas, parece-me prudente sustentar que o Direito Administrativo Sancionador, nesse ponto, não se equipara ao direito criminal, dado seu maior dinamismo" (STJ, RMS 33.484/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, Segunda Turma, julgado em 11/06/2013, DJe 01/08 2013[46]).
No Tribunal de Justiça de São Paulo, igualmente, há posicionamentos distintos: (i) alguns julgados pela irretroatividade (não só em face de lei mais benéfica no campo de sanções por infrações de trânsito[47], mas também em face da Lei nº 14.230/21, na sede da improbidade administrativa[48]); (ii) outros, pela retroatividade, apanhando os processos em curso (em acusações por improbidade administrativa, por efeito da Lei nº 14.230/21, mais benéfica[49]).
10. As razões da irretroatividade das normas mais favoráveis da Lei nº 14.230/21
Antes de descer apressadamente à planície das respostas com axiomas de que isso ou aquilo é, ou não, do próprio do Direito Administrativo Sancionador, é necessário examinar em detalhe e ponderadamente, no esforço de se extrair a axiologia de fundo do regime jurídico de improbidade administrativa (os maiores valores inerentes nesse campo), fundamental para se atingir a rainha das interpretações, a teleológica.
Isso, pois, impõe alongar os argumentos neste item, e nos subsequentes, ao que se pede a paciência do leitor, na esperança de que, ao menos em linhas gerais, bem se compreendam as razões ora expostas, imbricadas, aliás, no universo de dois blocos de regramentos próximos, mas maiores, em que a solução proposta está inserida: (i) o da categoria denominada Direito Administrativo Sancionador (DAS), para o qual já se anteciparam os pressupostos de sua adequada cognição; e (ii) o do sistema normativo de combate à corrupção sistêmica.
Consciente, ademais, do chão movediço em que se pisa, mas convencido da solução adequada, penso que a razão está com a corrente que não admite a retroatividade da lei mais favorável, por força exclusiva da teoria e dos princípios constitucionais de direito administrativo sancionador, ou seja, das normas insertas no § 4º do art. 1º e no art. 17-B, ambos da LIA, na redação da Lei nº 14.230/21.
A uma, porque se justifica a leitura restritiva do art. 5º, Xl, da Constituição Federal – “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” – que parece ser a de melhor técnica, data máxima vênia o entendimento majoritário oposto que se vem formando. Admite-se, pois, como de Direito Administrativo Sancionador apenas o princípio de irretroatividade da lei mais prejudicial, o qual, aliás, nem depende do art. 5º, XL, da Constituição Federal, pois lhe basta o da irretroatividade geral das leis, pelo qual só se apanham os fatos que ocorrem após a vigência da lei nova; não, contudo, o da retroatividade da lei nova favorável, que é próprio do Direito Penal.
Nem se diga que, acolhendo o princípio da irretroatividade da lei prejudicial está implícito, ou se deve necessariamente acolher, o da retroatividade da lei benéfica, pois nisso há vício de lógica. Um independe do outro.
Alejandro Nieto afirma, com precisão, no direito espanhol, acompanhando López Menudo, que o princípio da irretroatividade das normas sancionadoras desfavoráveis, em termos lógicos, não encerra o da retroatividade das sancionadoras mais favoráveis, e, daí, este último (retroatividade), que não tem sede constitucional, mas depende de norma legal infraconstitucional (que, no direito espanhol há, mas no nosso não há), tem sua solução na previsão, ou não, da lei. Em outras palavras, isso significa, para o direito espanhol (em que há, note-se bem, norma geral prescrevendo a retroatividade da lei nova mais favorável), que “as normas sancionadoras favoráveis ‘podem’ ser tanto retroativas como irretroativas", conforme assim dispor a lei: "Entendo, pois, em conclusão, que a regra da retroatividade das normas sancionadoras favoráveis tem caráter legal e não constitucional"[50].
Se assim é até mesmo no Direito Administrativo Sancionador espanhol, em que há norma legal expressa para a retroatividade da lei nova favorável[51], o que dizer para o Direito Administrativo Sancionador brasileiro, em que não há lei alguma equivalente?
Ademais, a expressão “lei penal” na Constituição Federal tem sentido próprio (basta verificar todas as vezes que o constituinte emprega termo “penal” ou vocábulos a ele correlatos[52]), enquadramento singular, ou seja, delimitação de campo de incidência no Direito Penal ou a ele relacionado, em modo específico ou como regra especial.
A duas, porque o próprio art. 37, § 4º, da Constituição Federal – primeira fonte da matriz constitucional referente à matéria –, prescreve a necessidade de um regime jurídico sancionatório de improbidade administrativa “sem prejuízo da ação penal cabível”, a afastar a identidade formal e substancial dos ilícitos, das sanções e, por consequência, do substrato teórico fundamental e principiológico em que se apoiam o Direito Administrativo Sancionador aplicado à improbidade administrativa e ao Direito Penal.
Isso, naturalmente, não significa desprezar as garantias individuais no Direito Administrativo Sancionador, nem que não se possam delas extrair princípios constitucionais de direito administrativo sancionador (materiais e processuais), mas apenas que ele tem sua autonomia, sem necessária correspondência (ou identidade) com todas as garantias individuais e princípios constitucionais do Direito Penal.
Assim, para se extrair os referidos princípios constitucionais, é preciso ponderar valores, evitar resultados de extrema rigidez e inflexibilidade do sistema sancionador administrativo, considerar os fins próprios do Direito Administrativo (e nele do DAS), especialmente os de atendimento a fins de interesse geral e de padrões éticos de probidade, evitando, por último, soluções que causem instabilidade e afronta à segurança jurídica (art. 30 da LINDB). E, com esse manancial de significativos valores, a retroatividade da lei mais favorável não comunga.
A três, porque a expressão Direito Administrativo Sancionador é de construção doutrinária – e em nosso direito ainda volátil e sem a sua precisão normativa –, indicativa de categoria do Direito Administrativo, com axiologia própria e diversa da que informa o Direito Penal.
E isso se pode verificar, em abundância, nos itens anteriores deste estudo, a incluir o de sua evolução histórica e doutrinária europeia (especialmente a espanhola).
Ademais, como também já se apontou, até mesmo a denominação do Direito Administrativo Sancionador (não mais chamado Direito Penal Administrativo) e, porque não, do Direito Penal, revelam essa evidência: após distinguir as normas primárias (prescritivas de condutas), secundárias (cominatórias de sanções ao descumprimento das condutas prescritas) e terciárias (assecuratórias de execução das sanções cominadas), Alejandro Nieto observa que enquanto no Direito Penal prevalecem as normas secundárias (as primárias estão implícitas nas secundárias – daí o seu nome “Direito Penal” e sua forte conotação garantista), no Direito Administrativo Sancionador a situação é, licitamente, inversa, pois “se enumeram cuidadosamente as obrigações”, mas a fórmula consequente ao descumprimento é “substituída por uma declaração genérica”, ou seja, infração é contrariar os comandos estabelecidos nas normas primárias[53].
É certo que, com as inovações da Lei nº 14.230/21, as formulações dos tipos e os critérios de sanções estão mais aproximados aos do Direito Penal, mas isso não significa que o Direito Administrativo Sancionador (universo mais amplo que o da improbidade administrativa) carrega, por si, os mesmos princípios constitucionais garantistas do Direito Penal, a incluir o da retroatividade da lei nova mais favorável.
Não é, pois, da referência principiológica constitucional do Direito Administrativo Sancionador, em si, que se pode extrair identidade principiológica constitucional ao Direito Penal.
A quatro, porque o regime jurídico de improbidade administrativa está inserto nos sistemas maiores de tutela da moralidade pública (de perfil constitucional) e de combate à corrupção sistêmica (de caráter internacional internalizado no Brasil em normas de status constitucional), que se irradiam pelos vários ramos do direito, pulverizando esse interesse público de largo espectro por todo o direito, e que respeita, em cada um, o que lhe é próprio, a incluir sua natureza e o trato jurídico específico do ilícito e das sanções em cada um desses horizontes jurídicos.
Em outras palavras, a matriz comum constitucional - a incluir a internacional internalizada - não estabelece uma unificação de natureza infracional e sancionatória na matéria, nem uma principiologia comum à moda do Direito Penal, mas, ao contrário, é de sua ratio iures o seu carácter difuso, expansivo, e de mera irradiação axiológica (valorativa) por todas as searas do direito, respeitando, em cada uma, seu fim específico, seu modo operacional, enfim, sua natureza própria, quer material, quer formal.
Afinal, é nessa preservação multidisciplinar que se amplia o tema que se busca com maior intensidade tutelar (a moralidade) e combater (a corrupção).
A cinco, porque a abolitio improbitatis não se encontra expressa na lei nova, nem sequer em mens legis da Lei 14.230/21, e não cabe ao Judiciário abolir ilícito que o legislador assim não fez nem quis fazer, em contexto de carência de norma própria, constitucional ou legal, que a autorize.
Aliás, o legislador foi expresso e rico em prescrições normativas para apontar o dolo específico; poderia fazer o mesmo, em ao menos um artigo, para indicar a tal abolição, destinada à aplicação retroativa da lei de improbidade mais benéfica, mas assim não fez. E esse seu não fazer revela, em modo objetivo, a mens legis de não retroatividade em matéria tão relevante e de enorme repercussão político-social.
O argumento de que a mens legis seria contrária a essa conclusão, pela inferência da abolitio do conjunto normativo inovador, ou por extração indireta à menção do Direito Administrativo Sancionador, não convence, até porque poderia significar torpeza legislativa – a lei não diz, mas ocultamente quis dizer, e, assim, não serão dos legisladores o ônus político de tamanha anistia, mas do Judiciário, que leu a norma e lhe deu a interpretação jurídica extensiva, nele ficando o ônus do abrir as trancas para os infratores já condenados por improbidade –, e não parece adequado acolher tal argumento que resvala em afirmar improbidade legislativa.
Convêm, por fim, nos itens seguintes, aprofundar algumas referências aqui apontadas.
11. O combate à corrupção sistêmica
A Lei de Improbidade Administrativa integra o sistema normativo anticorrupção, de larga amplitude, que é preciso compreendê-lo não só para a extração das diretrizes comuns que se irradiam aos diversos âmbitos de combate à corrupção, mas também para bem compreender e delimitar o campo em que cada ramo (sistema ou regime jurídico menor) está chamado a contribuir.
Sabe-se, ademais, que essa pulverização normativa tem apoio em matriz constitucional e tem avançado em razão de uma política internacional de combate à corrupção, fixada em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, com previsões de cooperação internacional neste âmbito.
Assim, na esfera constitucional, embora o ponto não encontre sistematização dessa matéria, é possível constatar que o combate à corrupção, por repressão ou prevenção, perpassa, necessariamente, três ramos distintos do direito: (i) o político-administrativo-penal (v.g. art. 85 ao se reportar a “crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: (...) V - a probidade na administração”); (ii) o administrativo-civil (v. g art. 37, § 4º ao apontar que “Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível); (iii) o eleitoral (v.g. art. 14, § 9º, que, imerso no regramento dos direitos políticos, prevê que “Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”).
Para além da Constituição Federal de 1988, destacam-se (i) a Convenção Interamericana contra a Corrupção (Convenção da Organização dos Estados Americanos – OEA, de 29 de março de 1996, assinada em Caracas, internalizada e promulgada pelo Decreto 4.410/2002), (ii) a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, conhecida por Convenção de Mérida (cidade onde foi assinada, no México), internalizada e promulgada pelo Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006; (iii) a Convenção da OCDE contra a corrupção (Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, concluída em Paris, em 17 de dezembro de 1997), internalizada e promulgada pelo Decreto nº 3.678, de 20 de novembro de 2000).
A sensibilidade internacional caminhou no sentido de que a corrupção tornou-se sistêmica e um problema global, a reclamar medidas conjuntas das nações para o seu combate. O Brasil, então, tem se alinhado a essas demandas internacionais, em corresponsabilidades multilaterais das Nações. E, em tais convenções, não se esqueça o teor do art. 5º, § 3º, CF/88: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.
Assim, como instrumento à implementação de direitos humanos, via reflexa, aquelas convenções internacionais têm sido consideradas normas de status constitucional[54].
Deste modo, partindo desse conjunto normativo maior, no plano infraconstitucional, verifica-se a irradiação da política nacional e internacional de tutela da moralidade (especialmente a administrativa) e de combate à corrupção, espalhada em diversos ramos do direito, todas centradas no eixo comum de que essa tutela e tal combate são de feições jurídicas multidisciplinares, espraiadas por todos os ramos e setores do direito (nacional e internacional; penal, administrativo, eleitoral e civil), abarcando uma pluralidade de instrumentos, a cada dia ampliados (v.g. acordo de leniência, delação premiada) e, em regra, cada vez mais densos, bem como atentos ao universo de todos agentes envolvidos (públicos e privados, pessoas físicas e pessoas jurídicas, empresas públicas e empresas privadas).
Assim, ganham destaque, para além da Lei do Crime de Responsabilidade[55] e do Código Penal[56]; no âmbito eleitoral, a Lei da Ficha Limpa[57]; no âmbito administrativo-civil, a chamada Lei Anticorrupção[58]; e, nesse contexto, a Lei de Improbidade Administrativa.
A Lei de Improbidade Administrativa, portanto, responde ao chamado de tutela à moralidade administrativa e de combate à corrupção sistêmica em modo próprio e peculiar: vai além da disciplina censória ou disciplinar por infrações funcionais regrada nos Estatutos do Funcionalismos Públicos e aquém dos crimes objeto de tipificação e sanção do Direito Penal, situando-se num campo intermédio de sancionamento, preservando-se sua natureza administrativo-civil, sem confusão alguma àquelas de feição eleitoral (Lei da ficha limpa), penal (Código Penal), político-administrativo (crimes de responsabilidade) e disciplinar-administrativa (Estatutos de Funcionários Públicos).
Esse ponto, parece-me importante frisar: há um tronco comum, o da tutela da moralidade (especialmente a administrativa) e o do combate à corrupção sistêmica, que se irradia pelos vários ramos do direito, pulverizando esses interesses públicos de largo espectro por todo o direito, mas respeita, em cada um, o que lhe é próprio, a incluir sua natureza e o trato jurídico específico do ilícito e das sanções em cada um desses horizontes jurídicos.
Em outras palavras, a matriz comum constitucional (a incluir a internacional internalizada) não estabelece uma unificação de natureza infracional e sancionatória na matéria, mas, ao contrário, é de sua ratio iures o seu carácter difuso, expansivo, e de mera irradiação axiológica (valorativa) por todas as searas do direito, respeitando, em cada uma, sua natureza e sua operacionalidade.
Afinal, é nessa preservação multidisciplinar que se amplia o ponto que se busca, com maior intensidade, tutelar (a moralidade) e combater (a corrupção).
Perdoem-me a analogia, que apresento apenas para fins didáticos: quando maior a variedade de instrumentos numa orquestra, respeitando a natureza de cada um, mas os fazendo soar em conjunto e harmonia, no mesmo tema musical, melhor ficar o resultado.
Tratar, pois, os princípios do regime jurídico da improbidade administrativa, via mera interpretação expansiva do Direito Administrativo Sancionador, equiparando-o aos do Direito Penal e admitindo a retroatividade da Lei nº 14.230/21, pela novatio legis in mellius, sem previsão normativa constitucional ou legal específica, também pode configurar afronta aos princípios maiores do conjunto normativo de raiz constitucional de combate à corrupção sistêmica, com grave desestabilização aos processos em cursos e findos (em que constam condenações por improbidade já pronunciadas e transitadas em julgado) e retrocesso.
Em suma, nesse passo, a interpretação extensiva (quiçá melhor dizer integração analógica) de resultado retroativo-abolicionista pode eventualmente ser considerada como interpretação de retrocesso à tutela de direitos humanos no âmbito do combate à corrupção sistêmica.
12. Novatio legis in mellius, retroatividade-tipificação, retroatividade-sanção e retroatividade-prescrição
Ingressado no caminho da irretroatividade das normas da Lei nº 14.230/21, ainda que mais favoráveis, aplicando-as apenas a partir de sua vigência, ficam despiciendas as análises das regras de direito benéficas que se pode, ou não, aplicar retroativamente, pois irretroatividade alguma haverá (quer no campo do direito processual, quer no campo do direito material; quer em tema de tipicidade ou atipicidade de atos ímprobos [abolitio improbitatis], quer em tema de sanção [abolitio vel diminutio sanctionis], quer em tema de prescrição).
Contudo, ao se admitir a retroatividade das normas mais favoráveis da Lei nº 14.230/21, é preciso descer a essa análise, para se verificar se tal retroatividade abarca todas, ou apenas algumas das novas normas mais benéficas, e com isso, compreender até que ponto vai esse efeito retroativo (qual o seu limite).
De saída, compreenda-se que a inovação legal mais favorável, no caso, pode se encontrar na esfera antecedente da hipótese normativa, isto é, da nova configuração do ilícito ou da desfiguração do ilícito antes previsto (campo da tipicidade); ou, então, na esfera consequente da cominação normativa, isto é, da sanção (campo do apenamento); ou, ainda, na esfera da pretensão sancionadora (campo do ius puniendi do Estado).
Assim, em tese, seria possível cogitar em retroatividade-tipificação (que toca à tipicidade dos atos ímprobos), retroatividade-sanção (que toca à repressão por improbidade) e retroatividade-prescrição (que toca à pretensão sancionadora por improbidade).
Sabe-se, por exemplo, que, em Direto Penal, a extensão da retroatividade de lex mitior é de solução expressa em normas e, nelas, a retroatividade pode ser de maior ou menor extensão: assim, por exemplo, o Código Penal de 1940, em sua redação original, restringia a aplicação da lei mais benigna aos casos de abolitio criminis e de cominação de pena mais brandas, mas, depois, foi ampliado, com a redação da Lei nº 7.209/84, para abarcar qualquer outro modo de favorecimento do agente (art. 2º, caput e parágrafo único, do CP).
Não há lei no Brasil para o Direito Administrativo Sancionador. Nem a LIA contém prescrição alguma sobre o assunto.
Como resolver a retroatividade da Lei nº 14.230/21? Em modo amplo, (i) para toda forma de favorecimento, (ii) em modo intermédio apenas para abolitio improbitatis, abolitio sanctionis e diminutio sanctionis (abrandamento de sanções cominadas), ou (iii) em modo restrito apenas para abolitio improbitatis?
Haveria limite para a retroatividade in bonus (i) até o ajuizamento da ação, (ii) até o recebimento da petição inicial na ação ajuizada, (iii) até a sentença condenatória pronunciada, (iv) até a confirmação condenatória de segundo grau, (v) até a formação da coisa julgada, (vi) até o decurso do tempo para ajuizamento da ação rescisória; (vii) até a satisfação da sanção, ou (viii) nem sequer o cumprimento da sanção a poderá obstar, mas, diversamente, ela poderá até justificar ação revisional, a qualquer tempo, quiçá, ainda, repetição de indébito (para multa civil paga em excesso) ou indenização (para situações de abolitio improbitatis ou abolitio sanctionis)?
Sem lei, como solucionar essas questões? Novamente por transposição analógica das regras e orientações do Direito Penal? Com inspiração no Direito público estatal e temperamento no Direito Administrativo?
As questões ficam abertas. As discussões, nesse caminho de retroatividade in bonus, tendem a crescer e apontam um longo período de divergência jurisprudencial e insegurança jurídica, até a decantação dos julgados nas múltiplas facetas que o ponto toca, sem contar, ainda, com seus reflexos em outros campos do direito, como o eleitoral (inelegibilidade por efeito de improbidade administrativa) e o civil-patrimonial (imprescritibilidade da responsabilidade civil indenizatória por improbidade administrativa), já aludidos em item anterior.
Em relação à prescrição, aliás, os debates são intensos, com diversos posicionamentos e longas argumentações, e, ao que parece, o caminho de maior razoabilidade vai ao encontro da irretroatividade das novas regras (art. 23 da LIA, na redação da Lei nº 14.230/21), não retroagindo às ações por ajuizar, às já ajuizadas nem apanhando os processos em curso para retroagir as regras de prescrição intercorrente, salvo a partir da data de início de vigência da Lei nº 14.230/21, observando-se, assim, tanto o princípio da actio nata, como o de não-surpresa, o de proteção da confiança no regime jurídico então vigente e o de segurança jurídica das relações processuais.
Em relação à prescrição intercorrente (art. 23, § 8º, da LIA), acresça-se que sua natureza híbrida, processual (na configuração, entenda-se: existência e validade) e material (nos efeitos, por atingir a pretensão sancionadora), mas com peso mais processual que material (ante a preponderância dos elementos de existência e dos requisitos de validade em face dos fatores de eficácia, na medida em que esses pressupõem aqueles), atrai para a matéria o art. 14 do CPC, reforçando o argumento de sua irretroatividade.
E, em relação à prescrição comum (art. 23, caput, §§ 1º a 7º, da LIA), que é de direito material (pois têm todos seus elementos de existência, requisitos de validade e fatores de eficácia em lei, a partir de fatos jurídicos alheios ao processo, operando-se, pois, com abstração ao ajuizamento da ação), é preciso ponderar duas importantes circunstâncias, que igualmente reforçam a sua irretroatividade: (i) primeiro, a circunstância de que não se está apenas diante de norma redutora de prazo prescricional, preservando-se todos demais elementos de sua configuração, mas sim diante de instituto prescricional novo (instituto novo, pois novo é o termo a quo e todos os demais requisitos de sua configuração, a incluir sua contagem e os marcos de suspensão e interrupção, embora de igual efeito ao antigo, i. e, extintivo da pretensão sancionadora); (ii) segundo, a circunstância de que o campo da retroatividade-prescrição é de mão dupla, ou seja, in bonus para um (suposto infrator), mas simultaneamente in pejus para outro (sociedade acusadora), e ainda ele é bem diverso dos campos da retroatividade-tipicidade e da retroatividade-sanção, pois nessas o foco é a (não)configuração do ato ímprobo e seu (não)sancionamento, mas naquela tão somente a possibilidade da ação judicial e da persecução sancionadora.
Para melhor explicar essa primeira circunstância que envolve a prescrição ordinária, vale a pena relembrar o caminho de solução e a sedimentação jurisprudencial da matéria em torno da prescrição aquisitiva da usucapião especial de imóvel urbano, também conhecida por usucapião constitucional (art. 183 da CF – norma constitucional autoaplicável). O efeito era o mesmo, comum a toda espécie de usucapião (aquisição da propriedade pela posse contínua), mas a norma não só apontou o reduzido prazo para usucapir (cinco anos) como também prescreveu vários requisitos novos e específicos para tanto. Fosse, então, apenas uma redução de prazo (como no passado ocorreu com a usucapião extraordinária, de 40 para 30, e depois para 20 anos), poder-se-ia reconhecer sua aplicação retroativa (salvo aos processos em curso - Súmula 445/STF), mas o conjunto de inovações, com várias circunstâncias novas, revelaram a presença de instituto jurídico novo, a reclamar sua irretroatividade. Embora agora se esteja diante de prescrição extintiva (não aquisitiva), o raciocínio é o mesmo e, porque não se está ante norma que apenas reduz o prazo prescricional da pretensão sancionadora de ato ímprobo, mas o reconfigura por completo, então há inovação substancial do instituto a reclamar a irretroatividade da lei nova.
Quanto à segunda circunstância, outro paralelo também ajuda na compreensão: enquanto para condenar por improbidade administrativa o critério é o de rigidez na verificação e comprovação dos fatos tipificados em lei, a autorizar a aplicação de sanção (esfera, pois, da tipicidade e do sancionamento), a ponto de justificar a máxima in dubio pro reo; para o recebimento da petição inicial, bastam, além dos requisitos formais, indícios suficientes de materialidade e autoria (art. 17, II, §§ 6º-B e 7º), a ponto de justificar a outra máxima in dubio pro societate[59]. Então, se a prescrição da pretensão sancionadora da improbidade administrativa é, em sua reformulação normativa, simultaneamente, lei mais favorável ao suposto infrator e mais prejudicial à sociedade, porque optar pela retroatividade in bonus e não pela irretroatividade in pejus, matando a ação antes mesmo de ser ajuizada? Será que o interesse público da moralidade administrativa e do combate à corrupção sistêmica não justifica, no âmbito administrativo sancionador, caminhar pela irretroatividade, desgarrando-o, no ponto, do Direito Penal?
13. Processo em trâmite e (ir)retroatividade da Lei nº 14.230/21
Para os processos em curso, além da cautela já apontada para a questão referente ao ponto da (ir)retroatividade da prescrição segundo as normas da lei nova, é preciso atenção às inovações processuais da Lei nº 14.230/21, não se esquecendo que, para elas, a solução de direito intertemporal tem sede no art. 14 do CPC: as novas normas processuais não retroagem e serão aplicadas “imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada”.
Em relação às inovações substanciais (de direito material) da Lei nº 14.230/21, para os processos em curso, contudo, as situações são mais complexas.
Se reconhecida a retroatividade, com abolitio improbitatis, por exemplo, a solução não será diversa da improcedência da demanda, admitindo-se, no limite, a conversão da ação de improbidade em ação civil pública, nos termos e para os fins do art. 17, § 16, c.c. o art. 17-B, ambos da LIA, prosseguindo-se, então, se o caso, para solução da pretensão indenizatória de ressarcimento de dano ao erário.
Todavia, quando a situação, embora com retroatividade in bonus, justificar desclassificação para algum dos tipos da LIA, na nova redação da Lei nº 14.230/21, será necessário – em não havendo na petição inicial (antecedente à Lei nº 14.230/21) todos os elementos do tipo novo, nem havendo no feito decisão de que cuida o art. 10-C (lei nova ainda não em vigor quando dessa fase do processo) –, baixar o feito para o aditamento da exordial, reabrindo a oportunidade de defesa e de eventual instrução complementar, uma vez que não se pode proferir sentença condenatória por tipo diverso da demanda (art. 10-F, I, da LIA).
Se, de outra banda, o caminho for o da irretroatividade, mesmo assim, poderá haver um sério problema de apenamento.
De fato, a irretroatividade da Lei nº 14.230/21 pode salvar a configuração e a declaração do ato ímprobo pelo tipo legal em vigor ao tempo da consumação dos fatos (mesmo na hipótese de abolitio improbitatis). Entretanto, como fica a aplicação da sanção? Será possível aplicar a sanção da lei antiga (daquele tempo da consumação da infração)? Será viável aplicar a sanção da lei nova? Será o caso de sentença meramente declaratória do ato ímprobo sem infligir sanção alguma?
Note-se que a questão é complexa, pois a sentença condenatória (e essa é a natureza da sentença de procedência de demanda por improbidade administrativa) exige que a condenação se faça por sanção com força jurídica (vigente, correlata e legalmente cominada para o ilícito configurado) ao tempo da sentença. Todavia, (i) a sanção para o tipo antigo não mais existe no tempo da sentença, e (ii) a sanção nova do tipo novo tem aplicação irretroativa, apenas se pode infligir para a prática do tipo novo.
Nesses casos, então, encontrando-se a ocasião da sentença no tempo de vigência da Lei nº 14.230/21, parece não haver outra solução àquela antevista por Ricardo Barros Leonel: “a nova disciplina da tutela da probidade deve se traduzir, para os casos pendentes, em sentenças de parcial procedência, com acertamento (declaração) da ocorrência do ilícito, sem, entretanto, aplicação de sanção, que na época da decisão condenatória deixou de existir”[60].
E o interesse de agir dessa declaração, aliás, perdura não por mero capricho nem por simples “certificação estatal (oferecimento de certeza) a respeito da efetiva ocorrência dos fatos que eram ilícitos”[61], mas sobretudo pelos efeitos secundários que essa declaração de ato ímprobo configurado (existente) tem em outras esferas jurídicas, como a eleitoral (com possível inelegibilidade), a civil-patrimonial (preservando a imprescritibilidade da responsabilidade indenizatória) e a funcional-infracional (ou administrativo-disciplinar, no âmbito estatutário dos servidores públicos).
Aponte-se, enfim, que se a sentença condenatória foi proferida antes da vigência da Lei nº 14.230/21, considerando, pois, a configuração do ato ímprobo e a aplicação da sanção vigente na LIA a esse tempo, ainda que o processo esteja pendente, em fase recursal, após essa lei nova, não haverá problema algum, pois a condenação não se opera no grau recursal, que exerce apenas o juízo revisor, e a lei superveniente, nesse caso, somente teria importância se admitido seu efeito retroativo, o que, na hipótese em exame, não se cogita. Segue-se nessa situação, a aplicação da LIA em sua redação antecedente à Lei nº 14.230/21.
14. Processos findos, coisa julgada e (ir)retroatividade da Lei nº 14.230/21
Em processos findos, com condenação por improbidade administrativa ao tempo anterior à Lei nº 14.230/21, cobertos pela coisa julgada, a aplicação retroativa dessa lei nova, fundada em intelecção do Direito Administrativo Sancionador, pela cláusula novatio legis in mellius, é, com o máximo respeito ao entendimento diverso, indevida, como já se apontou, inclusive por inadequada interpretação extensiva cujo resultado importa em interpretação de retrocesso aos direitos humanos no âmbito do combate à corrupção sistêmica.
Mas não é apenas isso.
Novamente, até no Direito Administrativo Sancionador espanhol, em que há norma legal expressa para a retroatividade in bonus (coisa inexistente no Brasil), há forte oposição a esse entendimento.
De fato, ainda com a doutrina de Alejandro Nieto, é preciso compreender que enquanto no Direito Penal a retroatividade é absoluta, em Direito Administrativo Sancionador (espanhol), quando possível, ela é relativa, pois, para as normas administrativas "a retroatividade somente atinge os fatos sobre os quais ainda não houve um pronunciamento administrativo firme”[62].
Ora, se até a coisa julgada administrativa afasta a revisão retroativa de lei mais favorável, sob pena de grave insegurança jurídica do sistema de sanções do Direito Administrativo, como maior razão a coisa julgada judicial a deve afastar.
Outrossim, se os tempos atuais são particularmente preocupados com a necessidade de fomento à segurança jurídica (v.g. novo CPC/2015 e a recente reforma da LINDB), será contraditório o caminho de desprestígio e de flexibilização da coisa julgada, pilar fundamental da estabilização de situações jurídicas consolidadas, elevado ao status constitucional de cláusula pétrea (art. 5°, XXXVI, da CF).
E, em adendo, como já se apontou ao se cuidar dos nortes de hermenêutica do nosso Direito Administrativo (incluso o Sancionador) é dever das autoridades decisórias (inclusas as judiciais) “atuar para aumentar a segurança jurídica”, preferindo, pois, a exegese que confira estabilidade à que deságue em instabilidade e insegurança jurídica (art. 30 da LINDB).
O Terceiro Grupo de Câmaras do Tribunal de Justiça de São Paulo, por sua vez, já enfrentou a matéria julgando improcedente ação rescisória com esse propósito de ataque à coisa julgada no âmbito da improbidade administrativa:
“AÇÃO RESCISÓRIA. Pretensão à rescisão de acórdão que condenou o autor, pela prática de ato de improbidade, ao pagamento de multa civil, ressarcimento do dano, perda da função pública, suspensão de direitos políticos e proibição de contratar com o Poder Público. 1. Prova nova é aquela obtida posteriormente ao trânsito em julgado, cuja existência era ignorada ou de que não se pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável. Hipótese não materializada quando a prova é incapaz de alterar o desate. 2. Violação manifesta aos arts. 9º, caput, e 11 da Lei nº 8.429, de 1992 não identificada. Elemento subjetivo necessário à configuração do ato ímprobo demonstrado. 3. Os critérios de proporcionalidade, de justeza, de razoabilidade, utilizados como parâmetros na aplicação das sanções ao ato ímprobo não são passíveis de serem revistos na via estrita de ação rescisória, porquanto não se constituem como violação 'literal' de dispositivo legal". Precedentes 4. Impossibilidade de aplicação da lei nova, mais branda, na hipótese de acórdão transitado em julgado, sob pena de violação da cláusula pétrea insculpida no art. 5°, XXXVI, da Constituição da República. 5. Ação julgada improcedente.” (Ação Rescisória 2259847-80.2021.8.26.0000, Rel. Des. COIMBRA SCHMIDT, j. 25/01/2022).
Se, enfim, nem ação rescisória é viável, com maior razão é inadequada a ação revisional (própria do Direito Penal) para destruir sentença condenatória de improbidade administrativa, de natureza civil (não penal), proferida em ação civil (não penal).
Nesse eventual excesso, pois, haverá a necessidade, mais uma vez, de bem frisar que o fim do Direito Administrativo Sancionador não é o mesmo do Direito Penal: “O objetivo do Direito Administrativo Sancionador não é a proteção do autor da infração, mas sim o seu castigo com respeito às garantias... Em outras palavras, as garantias procedimentais e materiais são um modo, uma limitação à atuação administrativa repressora que em caso algum pode paralisá-la ou fazê-la inoperante”[63].
Por isso, a “tomada de empréstimo das técnicas garantistas do Direito Penal nem sempre são adequadas ao Direito Administrativo Sancionador”[64].
15. Conclusão
As reformas da Lei de Improbidade Administrativa pela Lei nº 14.230/21 foram tão amplas e profundas – com enormes agitações, debates e divergências nas comunidades políticas, sociais e jurídicas; alguma inconstitucionalidade já apontada em liminar concedida no âmbito do STF (ADIs 7042/DF e 7043/DF); repercussão geral já admitida para solucionar questões referentes à eventual (ir)retroatividade das novas disposições (Tema 1199/STF) –, que, de fato, exigem estudos minuciosos em diversos aspectos.
Neste artigo, após um breve histórico legislativo e uma breve visão panorâmica e sistemática das alterações, constatou-se o evidente manancial de disposições mais favoráveis aos acusados por atos ímprobos (v.g. tipificação fechada, exigência de dolo específico em todas figuras ímprobas, abrandamento de sanções, abertura ao acordo de não persecução cível, prescrição reconfigurada e intercorrente) e foram selecionados alguns tópicos de aprofundamento, considerando, especialmente, aqueles de fortes impactos nos processos em curso e já findos (com sentenças condenatórias transitadas em julgado).
Assim, foi preciso mergulhar na construção doutrinária do Direito Administrativo Sancionador, investigando seu caminho histórico (da Alemanha à Espanha, chegando ao Brasil, com expressa referência na lei nova examinada), sua compreensão e teoria elementar, em busca de seus valores e princípios maiores, para, então, enfrentar o ponto de grande e atual polêmica acerca da novatio legis in mellius nessa matéria.
A investigação sobre a (ir)retroatividade da lei nova mais favorável em Direito Administrativo Sancionador, revela-se de profunda complexidade, especialmente no Brasil, que carece de legislação específica sobre a matéria, anotado os graves riscos que a cega ou a apressada transposição de princípios próprios do Direito Penal pode causar no sistema sancionador administrativo em geral, com potencial de desestabilização e aguda insegurança jurídica.
A exigência de cautela e prudência nesse assunto toca à autonomia do Direito Administrativo Sancionador, suas fontes de inspiração e axiológicas diversas daquelas inerentes ao Direito Penal, nada obstante alguns paralelos estruturais normativos e operacionais, observando que as garantias constitucionais de direitos individuais têm consideração em ambos, mas medidas e pesos distintos, sem rasa identidade, por atenção à necessidade de se preservar em cada ramo sua natureza e fins próprios, que até suas denominações indicam: o Penal, sendo “penal”, ante a prevalência nesse ramo das normas secundárias (cominatórias de sanções) às primárias (prescritivas de condutas), com forte conotação garantista individual; o Administrativo Sancionador, sendo “administrativo”, sem tamanha força garantista, ante a necessidade de se atender aos fins de interesses gerais e aos padrões éticos de moralidade administrativa.
Oportuno, pois, absorver, quanto à discussão sobre a (ir)retroatividade in bonus da lei nova de Direito Administrativo Sancionador (DAS) algumas sábias advertências de doutrina e experiência espanhola, bem mais amadurecida que a nossa nesse campo, a qual, mesmo diante de legislação disciplinadora do DAS, com previsão especifica para a retroatividade da lei superveniente mais favorável (que não há no Brasil), poda excessos: não a classifica como princípio constitucional de direito administrativo sancionador, acentua seu caráter legal (não constitucional), reconhece que é a lei que deve dispor sobre a retroatividade ou irretroatividade benéfica, e, quando admitida, enfatiza que deve ser relativa (não absoluta como em Direito Penal), atingindo apenas os fatos sobre os quais ainda não houve um pronunciamento administrativo firme (a que denominamos coisa julgada administrativa).
E, plantando esse tema no Brasil e no âmbito da improbidade administrativa, reconhecida a divergência de pensamentos e respeitado o entendimento oposto, parece-me, como se procurou em detalhada e ampla fundamentação discorrer, que o caminho da retroatividade das disposições favoráveis da Lei nº 14.230/21 não é o mais adequado, e, ainda, a interpretação extensiva do art. 5º, XL, in fine, da Constituição Federal, para migrar a retroatividade in bonus do Direito Penal ao Direito Administrativo Sancionador, pode não apenas indicar inadequação de rumo, desviando-se da natureza (administrativa, na substância; civil, no processo) e dos fins maiores em que a matéria se encontra, com graves repercussões na estabilidade e na segurança jurídica das relações e situações jurídicas consolidadas (possível desatenção ao art. 30 da LINDB), e, ainda, trazer consigo o risco e a inconveniência, nacional e internacional, por seu eventual resultado retroativo-abolicionista dilatado (atingindo, quiçá, um vasto universo de coisas julgadas) de ser apontada como interpretação de retrocesso no campo do combate à corrupção sistêmica em que o regime da improbidade administrativa está imbricado.
São Paulo, 04 de março de 2022.
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[1] Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Membro do atual Conselho da Escola Paulista da Magistratura (EPM), para a área de Direito Público. Foi coordenador do Núcleo de Estudos em Direito Administrativo da EPM. Palestrante em cursos de extensão e de especialização em Direito Urbanístico e Ambiental Urbano, Direito Notarial e Registral, e Direito Imobiliário, em diversas instituições (v.g. COGEAE-PUC/SP, Escola Paulista da Magistratura, SECOVI-SP, Universidade Federal do Maranhão).
[2] Esse material de interesse ao estudo e à pesquisa, elaborado pelo CADIP denominado Caderno Especial sobre as “Alterações na Lei de Improbidade Administrativa Lei nº 8.429/1992 (Lei nº 14.230/2021)”, 2ª edição – está disponibilizado no site da EPM, área de Jurisprudência, CADIP: https://www.tjsp.jus.br/Download/SecaoDireitoPublico/Pdf/Cadip/EspCadipImprobAdm20211026.pdf?d=1638127284093.
[3] Para estudo detalhado e aprofundado dessa matéria, a incluir o histórico das discussões e da evolução jurisprudencial em torno do elemento subjetivo da improbidade administrativa, remeto o leitor aos estudos de Viviam Maria Pereira Ferreira, que se tomou por base para o desenvolvimento deste ponto (FERREIRA, Viviam Maria Pereira Ferreira. O dolo da improbidade administrativa: uma busca racional pelo elemento subjetivo na violação aos princípios da Administração Pública. Revista Direito GV, São Paulo, vol. 15, n. 3, 2019).
[4] Para melhor estudo desse ponto, remeto o leitor ao que já escrevi em comentários ao art. 20 da LINDB: AMADEI, Vicente de Abreu. Interpretação realista (em comentario ao art. 20 da LINDB), in Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Anotada, coordenada por Alexandre Jorge Carneiro da Cunha Filho, Rafael Hamze Issa e Rafael Wallbach Schiwind, vol. II. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 72/81.
[5] De fato, o art. 28, § 1º, da LINDB, que foi vetado, previa que “Não se considera erro grosseiro a decisão ou opinião baseada em jurisprudência ou doutrina, ainda que não pacificadas, em orientação geral ou, ainda, em interpretação razoável, mesmo que não venha a ser posteriormente aceita por órgãos de controle ou judiciais.” Mas foi vetado com as seguintes razões: “A busca pela pacificação de entendimentos é essencial para a segurança jurídica. O dispositivo proposto admite a desconsideração de responsabilidade do agente público por decisão ou opinião baseada em interpretação jurisprudencial ou doutrinária não pacificada ou mesmo minoritária. Deste modo, a propositura atribui discricionariedade ao administrado em agir com base em sua própria convicção, o que se traduz em insegurança jurídica.”
[6] O art. 1º, § 8º, da LIA, voltou ao tema, para prever o mesmo teor excludente de responsabilidade administrativa: “Não configura improbidade a ação ou omissão decorrente de divergência interpretativa da lei, baseada em jurisprudência, ainda que não pacificada, mesmo que não venha a ser posteriormente prevalecente nas decisões dos órgãos de controle ou dos tribunais do Poder Judiciário”. E, na exposição de motivos da Lei 14.230;21, constou que “(...) Não são incomuns ações civis públicas por atos de improbidade administrativa ajuizadas em razão de o autor legitimado possuir uma interpretação acerca de princípios e regras destoante da jurisprudência dominante ou em desconformidade com outra interpretação igualmente razoável, quer seja dos setores de controles internos da administração, quer dos Tribunais de Contas. Em razão dessa situação de fato, assaz corriqueira, o texto faz incluir o conceito de “interpretação razoável da lei, regulamento ou contrato. Cuida-se de cláusula aberta que deverá ser objeto de preenchimento de seu sentido deôntico por parte dos intérpretes da lei e colmatado pelo Poder Judiciário. A cláusula aberta da razoabilidade da interpretação é necessária, haja vista a total impossibilidade de previsão de interpretações tidas por razoáveis, quando do momento legislativo de criação da norma.”
[7] COSTA, José Armando da. Direito Administrativo Disciplinar, 2ª edição. São Paulo: Método, 2009, p.190/191.
[8] “Essa solução importa restrição significativa para a configuração da improbidade”, especialmente pela fórmula “colocando em risco a segurança da sociedade e do Estado”, que “propicia incerteza” e exige atenção para se afastar de “interpretações fundadas em argumentação retórica, destituída de concretude e de evidência da produção da produção efetiva de riscos” (JUSTEN FILHO, Marçal. Reforma da lei de improbidade administrativa comparada e comentada: Lei 14.230, de 25 de outubro de 2022. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 119/120).
[9] Essa cláusula de exceção, a rigor, não inova, mas apenas explicita a não configuração ao ilícito, pois onde já há norma constitucional (art. 5º, XXXIII) ou legal para o sigilo, naturalmente (por congruência lógica) publicidade não pode haver, e sem dever de dar publicidade, por si, não há como configurar-se ato ilícito (e, obviamente, ímprobo). Em todo caso, o legislador, para deixar bem evidenciada a restrição do campo de incidência da norma qualificadora ao ato ímprobo, preferiu apontar como exceção, o que, a rigor e naturalmente, já se encontrava fora da incidência da figura ímproba. Convém, enfim, anotar que são inúmeras as hipóteses instituídas em lei orientadas a preservar o sigilo de atos oficiais (v.g. Lei nº 13.709/2018 - LGPD, em seus arts. 46 a 49; Lei nº 14.133/2021, nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, arts. 13, 18, §1º, VI, 75, III, “l”, 91, § 1º).
[10] “nomear cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas”.
[11] “A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal”.
[12] “O conteúdo e a extensão dessa ressalva são incertos” (...) e talvez se resolva sua inteligência e aplicação pela sua adequação à orientação jurisprudencial do STF (RE 579.951) e pelo entendimento de que a norma tenha o escopo de redução de seu campo de incidência apenas pela atual necessidade do dolo específico: “enfim, o dispositivo reconhece a punibilidade da conduta, quando eivada de intenção orientada a uma finalidade ilícita” (JUSTEN FILHO, Marçal. Reforma da lei de improbidade administrativa comparada e comentada: Lei 14.230, de 25 de outubro de 2022. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 126).
[13] MATTES, Heinz. Problemas de Derecho Penal Administrativo. História y Derecho Comparado. Tradução (do original alemão, publicado por Ed. Duncker & Humblot, Berlim, 1977) de José Maria Rodriguez Devesa. Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas (EDERSA), 1979.
[14] MATTES, Heinz. Ob. cit., p. 169. Tradução livre.
[15] MATTES, Heinz. Ob. cit., p. 173. Tradução livre.
[16] MATTES, Heinz. Ob. cit., p. 177. Tradução livre.
[17] MATTES, Heinz. Ob. cit., p. 178/179. Tradução livre. Com Stahl, a ideia do cuidado com o bem comum pela Administração e de que o Estado o deve fomentar, com mais atenção à ordem a ser corrigida, com função preventiva dos ilícitos, em relação à ordem jurídica punitiva. Com Von Stein, a distinção entre Administração e administração de justiça, e, daí, a configuração da pena na ordem administrativa, própria da competência da Administração. Com Otto Mayer, uma maior precisão do objeto da Administração, no foco da tutela contra perturbações à boa ordem da comunidade frente ao ser individual, atento à possibilidade de uma pena de conformação a preceitos jurídicos. Confira: MATTES, Heinz. Ob. cit., p. 179/184.
[18] MATTES, Heinz. Ob. cit., p. 179. Tradução livre.
[19] MATTES, Heinz. Ob. cit., p.186/194.
[20] MATTES, Heinz. Ob. cit., p.195/228.
[22] MATTES, Heinz. Ob. cit., p. 231/238 e 485.
[23] GARCÍA, Alejandro Nieto Derecho Administrativo Sancionador, 4ª edição (2005), 2ª reimpressão (2008). Madrid: Tecnos, 2008, p. 173; 177. Tradução livre.
[24] GARCÍA, Alejandro Nieto. Ob. cit., p. 177. Tradução livre.
[25] A Espanha, desde 1992, conta com legislação sobre a matéria: a Lei espanhola 30/1992 contém normas específicas acerca dos princípios do poder sancionador da Administração (arts. 127 a 133), bem como do respectivo procedimento sancionador (arts. 134 a 138).
[26] GARCÍA, Alejandro Nieto. Ob. cit., p. 565. Tradução livre.
[27] GARCÍA, Alejandro Nieto. Ob. cit., p. 560-561. Tradução livre.
[28] GARCÍA, Alejandro Nieto. Ob. cit., p. 26. Tradução livre.
[30] GARCÍA, Alejandro Nieto. Ob. cit., p. 27. Tradução livre.
[31] GARCÍA, Alejandro Nieto. Ob. cit., p. 562. Tradução livre.
[32] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, 9ª ed., 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 323.
[33] A 1ª Seção do STJ definiu pela impossibilidade dessa sanção, que não conta com previsão legal da LIA: Embargos de Divergência em RESP nº 1.496.347-ES, Rel. desig. p/ ac. Min. Ministro BENEDITO GONÇALVES, j. 24 de fevereiro de 2021: “A Lei Federal n. 8.429/92 é lei especial e posterior à Lei n. 8.112/90, disciplinando, especificamente, "as sanções aplicáveis aos agentes públicos" que incorram nos atos de improbidade ali previstos (grifou-se). Portanto, no âmbito da persecução cível por meio de processo judicial, e por força do princípio da legalidade estrita em matéria de direito sancionador, as sanções aplicáveis limitam-se àquelas previstas pelo legislador ordinário, não cabendo ao Judiciário estendê-las ou criar novas punições, sob pena, inclusive, de violação ao princípio da separação dos poderes” (voto-vista do Min. Benedito Gonçalves).
[34] LORA, Alejandro Huergo, Las sanciones administrativas. Madri: Iustel, 2007, p. 143/153,
[35] Ob. cit., p. 244.
[36] Este breve estudo, aliás, procurei apontar por ocasião de artigo que escrevi e foi publicado na Revista Brasileira de Estudos da Função Pública – RBEFP (AMADEI, Vicente de Abreu. Responsabilidade Administrativa dos Notários e Registradores. Revista Brasileira de Estudos da Função Pública – RBEFP, v. 1, n. 2, p. 121–147, maio/ago., 2012. Belo Horizonte: Fórum, 2012). Logo, a mesma advertência que então apontei naquela ocasião sobre essa principiologia vale para o momento reproduzir: “Abstração às questões de filosofia do direito, que o trato dos princípios jurídicos remete e ao tema atual da hipertrofia dos princípios, inclusa as propostas de delimitação dos conceitos de princípios e normas em ordem a evitar essa hipertrofia (v.g. a crítica de Alejandro Nieto, in Derecho Administrativo Sancionador, 4ª edição, 2ª reimpressão. Madri: Tecnos, 2008, p. 44/47), procuramos, focado apenas no critério da utilidade, apontar as proposições gerais ou enunciados de verdades generativas (com potencial de dedução de outras verdades) pertinentes à matéria, que se revelam, na prática, relevantes, sem pretensão de atender rigor científico ou esgotar o ponto. Para aprofundamento, indicamos, além da referida obra de Alejandro Nieto, os estudos de José Armando da Costa (Direito Administrativo Disciplinar, 2ª edição. São Paulo: Método, 2009, p. 55/85, 175, 229/231), de Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo, 27ª edição. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 850/859), de Diógenes Gasparini (Direito Administrativo, 12ª edição. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 242/245, 936/938 e 956), em que estão apoiadas boa parte das assertivas indicadas”.
[37] Daí cabe “mandado de segurança quando a lei não autoriza a imposição da pena aplicada” (STF, RE 84217, Rel. Min. MOREIRA ALVES, j. 09/04/1976, RTJ 79-01/318 ou RDA 130/186). Como subprincípio derivado do princípio de legalidade, ainda é possível apontar o da irretroatividade da lei prejudicial; mas, para discutir o da ir(retroatividade) da lei favorável, em DAS, a análise se fará em item próprio.
[38] É a lição de Ricardo Dip, in Registros de Imóveis e Notas. Responsabilidade civil e disciplinar. São Paulo: RT, 1977, p. 31.
[39] A Lei estadual paulista nº 10.177/98 enfatiza a necessidade de observância ao princípio da reserva legal na criação de “condicionamentos aos direitos dos particulares”, na imposição de “deveres de qualquer espécie”, na previsão de “infrações” e prescrição de “sanções” (artigo 6º).
[40] RIBEIRO, Carlos Vinicius Alves. Comentários ao § 3º, do art. 22, da nova redação da LINDB. In: Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Anotada, coordenada por Alexandre Jorge Carneiro da Cunha Filho, Rafael Hamze Issa e Rafael Wallbach Schiwind, vol. II. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 214.
[41] Ob. cit. p. 859.
[42] Ob. cit. p. 230.
[43] OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti Grotti. Direito administrativo sancionador brasileiro: breve evolução, identidade, abrangência e funcionalidades. Revista Interesse Público – IP, ano 22, n. 120, mar./abr. 2020. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 83-126.
[44] E, para ele, não há dúvida quanto à necessidade de sua observância. Basta, dentre muitos julgados e vasta doutrina, apontar o bom precedente do STJ (caso em que se rejeitou a aplicação retroativa da LIA, i. e, aos fatos ocorridos antes de sua vigência): “ADMINISTRATIVO. LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. APLICAÇÃO RETROATIVA A FATOS POSTERIORES À EDIÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. IMPOSSIBILIDADE. 1. A Lei de Improbidade Administrativa não pode ser aplicada retroativamente para alcançar fatos anteriores a sua vigência, ainda que ocorridos após a edição da Constituição Federal de 1988. 2. A observância da garantia constitucional da irretroatividade da lei mais gravosa, esteio da segurança jurídica e das garantias do cidadão, não impede a reparação do dano ao erário, tendo em vista que, de há muito, o princípio da responsabilidade subjetiva se acha incrustado em nosso sistema jurídico. (...)” - (REsp. 1129121/GO, Rel. Ministra ELIANA CALMON, Rel. p/ Acórdão Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/05/2012, DJe 15/03/2013).
[45] “RECURSO ESPECIAL. DIREITO DA CONCORRÊNCIA. REGULAÇÃO ESTRUTURAL DO PODER ECONÔMICO EXERCIDA PELO CADE. ATOS DE CONCENTRAÇÃO - MOMENTO DE SUA REALIZAÇÃO. ABOLITIO CRIMINIS - INAPLICABILIDADE - MAIOR RESTRITIVIDADE DA LEI POSTERIOR. (...) – (VOTO-VISTA – Rel. Min. Regina Helena Costa, que ficou como relatora designada) (...) VI. Da abolitio criminis. A abolitio criminis é a supressão de tipo penal, deixando de considerar delito determinada conduta. Enseja a retroatividade da lei abolicionista e beneficia os acusados e condenados com base no tipo extinto, nos termos do art. 2º do Código Penal. Em exame acerca da natureza jurídica da norma constante do § 5º art. 54 da Lei n. 8.884/1994, observo tratar-se de penalidade administrativa, imposta em razão do cometimento de infração ali tipificada. O tema insere-se no âmbito do direito administrativo sancionador e, segundo doutrina e jurisprudência, em razão de sua proximidade com o direito penal, a ele se estende a norma do art. 5º, XVIII , da Constituição da República, qual seja, a retroatividade da lei mais benéfica. Nesse sentido a jurisprudência desta Corte (e.g. 1ª TURMA, REsp. n. 1.402.893/MG, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, j. em 11.04.2019, DJe 22.04.2019 ). A aplicação da abolitio criminis pressupõe nova lei, que suprima ou reduza a pena do infrator pela prática de conduta outrora tipificada como crime. (...) Na atual Lei de Defesa da Concorrência, substitutiva da Lei n. 8.884/1994, a multa permanece e o prazo para submissão da operação ao CADE tornou-se mais restrito, porquanto a apresentação do ato de concentração deve se dar obrigatoriamente antes da produção de efeitos, sendo certo que esses efeitos não poderão ocorrer antes da manifestação da autarquia reguladora (Lei n. 12.529/2011, art.88, §§ 2º, 3º e 4º). Logo, não há que se falar em existência de lei penal mais benéfica que viesse a ser aplicada. Mais rigorosa é a lei posterior, porquanto exige a apresentação prévia do primeiro ato vinculativo da concentração, sob pena de multa.”
[46] “ADMINISTRATIVO. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PRAZO PRESCRICIONAL. REMISSÕES GENÉRICAS. LEGISLAÇÃO SUPERVENIENTE ESPECÍFICA. PRESCRIÇÃO. IRRETROATIVIDADE 1. O ora recorrente, Oficial de Justiça à época, foi investigado por exigir custas excessivas em processo judicial. O Conselho da Magistratura demitiu-o em 1986, após o regular processo administrativo, em decisão ratificada pelo Órgão Especial. Pleiteou-se a revisão do processo, em 1994, que, rejeitada por maioria de votos, ensejou a impetração de Mandado de Segurança, o qual foi denegado. 2. A demissão a bem do serviço público do recorrente foi confirmada pelo órgão especial em 1987, e o ato demissório deu-se em 1989. O pedido de revisão ocorreu mais de cinco anos depois, porquanto admissível sua propositura, uma única vez, a qualquer tempo (art. 249 da Lei 10.098/1994). 3. In casu, quando julgado o processo administrativo (1986), não havia norma sobre prescrição no Código de Organização Judiciária (Lei Estadual 5.256/1966), que tratou da Ação Disciplinar (arts. 756 e ss.). O acórdão recorrido valeu-se de dupla remissão para aplicar a prescrição prevista na legislação penal. Essa lacuna normativa perdurou até a edição da LCE 10.098/1994, que passou a regulamentar expressamente a prescrição da Ação Disciplinar em prazo mais curto, favorável ao recorrente. 4. Caso a lacuna da legislação local tivesse sido suprida ao longo do PAD mediante edição de lei nova que regulasse a prescrição no âmbito administrativo, estar-se-ia diante de norma superveniente que seria levada em consideração no julgamento do processo administrativo e poderia resultar na sua extinção. 5. Contudo, o pedido de revisão tem prazo aberto e pode ser apresentado a qualquer momento. A valer a proposição do recorrente, passados 5, 10, 20 ou 40 anos, havendo mudança na lei a respeito dos prazos prescricionais, todos os processos administrativos que ensejassem de advertência a demissão poderiam ser rejulgados, adotando-se a legislação eventualmente mais benéfica. 6. A diferença ontológica entre a sanção administrativa e a penal permite a transpor com reservas o princípio da retroatividade. Conforme pondera Fábio Medina Osório, "se no Brasil não há dúvidas quanto à retroatividade das normas penais mais benéficas, parece-me prudente sustentar que o Direito Administrativo Sancionador, nesse ponto, não se equipara ao direito criminal, dado seu maior dinamismo". 7. No âmbito administrativo, a sedimentação de decisão proferida em PAD que condena servidor faltoso (acusado de falta grave consistente na cobrança de custas em arrolamento em valor aproximadamente mil vezes maior) não pode estar sujeita aos sabores da superveniente legislação sobre prescrição administrativa sem termo ad quem que consolide a situação jurídica. Caso contrário, cria-se hipótese de instabilidade que afronta diretamente o interesse da administração pública em manter em seus quadros apenas os servidores que respeitem as normas constitucionais e infraconstitucionais no exercício de suas funções, respeitadas as garantias do due process. 8. Precedente em situação similar indica: "quanto à alegação de prescrição administrativa, questão que em tese poderia determinar a anulação do ato que cassou a nomeação do recorrente na função de Oficial do Registro de Imóveis da Comarca de Palhoça/SC, verifica- se que as leis apresentadas (9.873/99 e 9.784/99) foram editadas após a ocorrência da nomeação do recorrente em 1992 e após o próprio ato de cassação ocorrido em 1998, não podendo retroagir para alcançar a situação do recorrente. Precedentes: RESP nº 646107/RS, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ de 14/03/2005; MS 9092/DF, Rel. Min. Paulo Gallotti, DJ 25.09.2006 e EDcl no AgRg no RESP nº 547668/PE, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 02/05/2005" (AgRg no AgRg no REsp. 959.006/SC, Relator Ministro Francisco Falcão, Primeira Turma, DJ 7.5.2008). 9. Recurso Ordinário não provido” (RMS 33.484/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 11/06/2013, DJe 01/08/2013).
[47] (i) Ap. 1008189-53.2021.8.26.0344, Rel. Des. ANTONIO CARLOS VILLEN, 10ª Câmara de Direito Público, j. 25/02/2022: “MOTORISTA. Carteira Nacional de Habilitação. Penalidade. Detran. Pretensão à anulação de decisão que, em procedimento administrativo, aplicou ao autor a penalidade de suspensão do direito de dirigir. Pedido fundado na tese de retroatividade das alterações introduzidas no art. 261 Código de Trânsito Brasileiro pela Lei nº 14.071/2020. Aumento da pontuação necessária para a aplicação da pena de suspensão, caso, no período de 12 (doze) meses, o infrator não tenha praticado nenhuma ou apenas 01 (uma) infração gravíssima. Sentença que reconheceu a aplicabilidade da nova lei e julgou procedente a ação. Impossibilidade, pois, além de o autor ter atingido os 20 pontos exigidos na redação original do CTB, antes da alteração legislativa, o procedimento administrativo se encerrou também antes da vigência da nova lei. Precedentes. Recursos oficial, que se considera interposto, e voluntário providos para julgar improcedente a ação”; (ii) Ap. 1000765-92.2021.8.26.0300, Rel. Des. VICENTE DE ABREU AMADEI, 1ª Câmara de Direito Público, j. 22/02/2022: “APELAÇÃO E REEXAME NECESSÁRIO – Mandado de Segurança – Pretensão à suspensão dos efeitos de processo de suspensão do direito de dirigir, em razão da aplicação retroativa da Lei Federal nº 14.071/2020, que aumentou o teto máximo de pontuação para suspensão do direito de dirigir – Inadmissibilidade - Coisa julgada administrativa configurada – Revisão retroativa inviável – Norma de natureza administrativa de regulação do trânsito – Ausência de natureza penal em sentido estrito – Não aplicação do princípio da aplicação retroativa da norma penal mais benéfica, nem mesmo à luz da teoria do Direito Administrativo Sancionador (DAS) - Não configuração dos requisitos necessários para concessão da medida – Sentença de procedência da demanda reformada. RECURSO VOLUNTÁRIO E REEXAME NECESSÁRIO PROVIDOS”.
[48] (i) Emb. Decl. 1003043-67.2017.8.26.0248, Rel. Desª. TERESA RAMOS MARQUES, 10ª Câmara de Direito Público, j. 14/02/2022: “EMBARGOS DE DECLARAÇÃO Improbidade Administrativa – Retroação de lei nova - Omissões e contradições - Pretensão de rediscussão do mérito do processo – Impossibilidade: - O princípio da retroatividade da lei nova mais benéfica não se aplica às penalidades por improbidade administrativa. - Ausente omissões, contradições, obscuridades e erros materiais”; (ii)
Emb. Decl. 1000167-28.2016.8.26.0264, Rel. Des. FLORA MARIA NESI TOSSI SILVA, j. 24/02/2022: “...entendo que não ocorre a retroação da Lei nº 14.230/21, que deu nova redação a diversos artigos da Lei nº 8.429/92, como pretende a ora embargante, pois a conduta descrita como ímproba nos presentes autos ocorreu quando ainda não vigente esse novo dispositivo legal. Ora, conquanto a nova lei exija pronta aplicação de seus dispositivos processuais, na forma do art. 14 do Código de Processo Civil, o mais trazido por ela, ou seja, em assuntos de direito material, não há essa aplicação por força do art. 5º, caput, XL, da Constituição Federal, o § 4º do art. 1º da Lei 8.429/92, com a nova redação, e mesmo o art. 6º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), pois não cuidam da chamada novatio legis in mellius, a exigir pronta e imediata aplicação para situações ímprobas acontecidas antes dessa nova circunstância legal. A ação em que se pretende a condenação por ato de improbidade administrativa possui índole civil, administrativa. Não possui caráter penal.” (iii) AI 2264638-92.2021.8.26.0000, Rel. Des. CARLOS VON ADAMEK, 2ª Câmara de Direito Público, j. 27/01/2022; “AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE – AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO – Impossibilidade, a princípio, de aplicação retroativa da Lei nº 14.230/21, visto que ela não contém previsão nesse sentido – Inteligência do art. 6º da LINDB – Sem olvidar a polêmica no C. STJ acerca da possibilidade de retroatividade da lei mais benéfica em se tratando de direito administrativo sancionador, mesmo que adotada a posição que admite a aplicação retroativa da Lei nº 14.230/21, é certo que não verificada a prescrição intercorrente – Mesmo após a edição da Lei nº 14.230/21, permanece aplicável o entendimento firmado pelo E. STF no julgamento do Tema de Repercussão Geral nº 897, vez que calcado em norma constitucional (art. 37, § 5º, da CF), logo, prevalecente sobre norma infraconstitucional (art. 23 da Lei nº 8.429/92, com a redação dada pela Lei nº 14.230/21) – A ausência de distinção entre o referido precedente vinculante e o presente caso torna inviável o acolhimento da tutela pleiteada – Inteligência do art. 927, III e § 1º e 489, § 1º, VI, ambos do CPC/15 – A aplicação analógica da Súmula nº 383 do STF ao caso em tela a fim de preencher a lacuna aberta pela Lei nº 14.230/21, conforme autorização legal contida no art. 4º da LINDB, também afasta a verificação da prescrição intercorrente, mormente em homenagem ao princípio constitucional da proibição da proteção insuficiente, a fim de evitar a nulidade prevista no § 10-F, II do art. 17 da Lei nº 8.429/92, incluído pela Lei nº 14.230/21 (mantendo-se, pois, a designação de audiência de instrução e julgamento para a produção da prova oral, atendendo, inclusive ao pedido dos próprios agravantes deduzido ao r. Juízo 'a quo'), e diante do disposto no art. 206-A do Código Civil – Decisão mantida – Recurso desprovido.”
[49] (i) Ap. 1009214-10.2017.8.26.0161, Rel. Des. LEONEL COSTA, 8ª Câmara de Direito Público, j. 22/02/2022: “RECURSO DE APELAÇÃO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE (...) Aplicabilidade, quanto aos processos em curso, das modificações da Lei de Improbidade Administrativa instituída pela Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021 – Aplicabilidade imediata quanto às normas processuais nos termos do artigo 14, do CPC e, por analogia, do artigo 2º, do CPP – Aplicabilidade imediata e retroativa das normas materiais mais benéficas ao agente, nos termos do artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal: "XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu" – "Lei penal" que deve ser entendida como sendo todo o jus puniendi estatal - Direito administrativo sancionador que compartilha com o direito penal, das garantias constitucionais fundamentais, tais como, o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, os princípios da legalidade, da tipicidade, da culpabilidade, da pessoalidade das penas, da individualização da sanção, da razoabilidade e da proporcionalidade e, como não poderia deixar de ser, da retroatividade da lei mais benéfica (...)”; (ii) Ap. 1016807-89.2018.8.26.0344, Rel. Des. PAULO BARCELLOS GATTI, 4ª Câmara de Direito Público, j. 21/02/2022: “Não se olvide que por se tratar de legislação superveniente própria do direito material sancionador (art. 1º, §4º, da LF nº 8.429/92, com a redação atribuída pela LF nº 14.230/2021), suas disposições devem ser aplicadas de imediato e, inclusive, retroativamente, desde que para beneficiar o acusado (art. 5º, inciso XL, da CF/88”. (iii) Ap.1000388-26.2018.8.26.0204, Rel. Desª ANA LIARTE, 4ª Câmara de Direito Público, j. 21/02/2022: “APELAÇÃO – IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA (...) Alterações legislativas realizadas pela Lei nº 14.230/2021 – Aplicação retroativa das normas mais benéficas ao Requerido – Art. 1º, § 4º, da Lei de Improbidade Administrativa – Art. 5º, XL, da CF – Revogação do art. 11, inciso I, da Lei de Improbidade Administrativa, aplicada retroativamente ao Requerido (...)”; (iv) Ap. 1000508-44.2019.8.26.0104, Rel. Des. OSCILD DE LIMA JÚNIOR, 11ª Câmara de Direito Público, j. 21/01/2022: “AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA Município de Guarantã - Pretensão de condenação do réu a ressarcir os cofres públicos no valor indicado na inicial, correspondente a suposto dano causado ao erário, por ausência de pagamento de precatório e pagamento apenas parcial de requisições de pequeno valor, bem como ao reconhecimento dos atos de improbidade administrativa correspondentes – Ilegalidades que não podem ser equiparadas a atos de improbidade administrativa – Necessidade de configuração de dolo e de efetivo dano ao erário para que o réu seja condenado, de acordo com os termos da Lei nº 14.230 de 2021, que promoveu alterações na Lei nº 8.429/92 - Sentença de improcedência mantida. Recurso desprovido”.
[50] Ob. Cit., p. 243 e 244. Tradução livre.
[51] "Las disposiciones sancionadoras producirán efecto retroactivo en cuanto favorezcan al presunto infractor" (art. 128.2 da LPAC, Lei do Procedimento Administrativo Comum, Lei 30/1992).
[52] Arts. 5º, XL, LVII, § 4; 12, II, “b”; 21, XIV; 22, I; 32, § 4º; 37, § 4º; 53; 62, § 1º, “b”; 129, I; 144§ 5º-A; e 228, todos da Constituição Federal.
[53] Ob. cit., p. 44/45.
[54] V.g. BLANCHET, Luiz Alberto e MARIN, Tâmera Padoin Marques A corrupção como violação de direitos humanos e a necessária efetividade da Lei nº 12.846/13. In: Revista de Direito Administrativo Constitucional, ano 18, n. 71, jan./mar. 2018. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 267-294. Confira: “destaca-se um movimento mundial de tipificação penal de condutas e, em especial, de regulamentação de instrumentos civis e administrativos que buscam reparar danos causados ao patrimônio público ou à moralidade administrativa, considerando que as práticas corruptas, além de prejuízos econômicos, violam direitos humanos, na medida em que impedem a racional aplicação de recursos públicos em prol de toda a sociedade” (BLANCHET, Luiz Alberto e MARIN, Tâmera Padoin Marques. Ob. cit., p. 274).
[55] A Lei 1.097/50, que define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento contra o Presidente da República ou Ministros de Estado, contra os Ministros do Supremo Tribunal Federal ou contra o Procurador Geral da República.
[56] No foco punitivo de pessoas naturais por práticas de corrupção passiva (art. 317) e ativa (art. 333), além dos demais crimes contra a Administração Pública.
[57] Lei Complementar nº 135/2010, que teve por fim alterar a Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990, e estabelecer, de acordo com o § 9º do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato.
[58] Lei nº 12.846/2013, que dispõe acerca da responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.
[59] Nessa fase de recebimento da petição inicial da ação de improbidade administrativa, é reiterada a orientação do STJ: “vale o princípio do in dubio pro societate, a fim de possibilitar o maior resguardo do interesse público” (REsp. 1163499/MT, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, Segunda Turma, j. em 21/09/2010).
[60] LEONEL, Ricardo de Barros. Nova LIA: aspectos da retroatividade associada ao Direito Sancionador. São Paulo: ConJur, 17 de novembro de 2021.
[61] LEONEL, Ricardo de Barros. Ob. Cit.
[62] Ob. Cit., p. 244. Tradução livre.
[63] Ob. cit., p. 36. Tradução livre.
[64] Ob. cit., p. 27. Tradução livre.