647 - A semelhança e as diferenças entre o pensamento de Aristóteles e o pensamento de Descartes relativamente ao conceito e ao conteúdo da Ciência


OSVALDO PALOTTI JUNIOR [1] – Desembargador e professor

 

 

I.  Aristóteles: a natureza é repleta de surpresas!

 

Aristóteles foi o primeiro teórico da Ciência. Para o Estagirita, a Física “é a ciência das formas e das essências”[2], uma verdadeira “ontologia ou metafísica do sensível”[3].

 

Aristóteles olha o Universo com as lentes da Biologia.  O grande modelo de “physis” são os seres vivos. Nesse Universo, cada coisa tem uma natureza própria.

 

O mundo aristotélico, assim, é um mundo de mil e um contrastes, de muitas vestimentas, de uma extraordinária diversidade ontológica. Há lugar para “surpresas”. As coisas nunca são apenas o que mostram. Há sempre algo “oculto”, há sempre algo para ser desvelado.

 

A Física de Aristóteles é feita no plano do “humano” (e não no plano da racionalidade geométrico-matemática), no plano da experiência sensorial, empírica. É contemplativa. Nada tem de experimental, nada tem de “matemática”.   É uma Física puramente qualitativa.  

 

Para Platão, a Ciência envolvia apenas objetos ideais.  Aristóteles quer fazer Ciência no plano do real, é dizer, baseada nas qualidades fenomênicas dos objetos.

 

A Ciência, sob essa perspectiva, tem que ter a capacidade de explicar, a partir dos dados fornecidos pelos sentidos, a causa dos fatos. Então Ciência é conhecimento absoluto, universal e necessário.  

 

É da essência do conhecimento científico o possuir caráter explicativo, e não meramente informativo. Não apenas dizer o que aconteceu, mas explicar porque aconteceu daquela forma e porque não poderia ter sido de outra forma. Como se vê, para Aristóteles o conhecimento científico tem que se fundar em razões, em causas (expressões que, para ele, se equivalem).

 

Na medida em que Aristóteles exige que a Ciência se constitua em conhecimento explicativo, torna-se necessário estabelecer quando uma explicação, uma demonstração, é válida

 

Surge, então, a Lógica, que irá tematizar algo que está pressuposto  na Ciência: a possibilidade de demonstração.  A Lógica, como ciência puramente formal[4], estabelece critérios para se afirmar quando uma proposição é válida.

 

Para Aristóteles, conhecimento demonstrado significa conhecimento necessário (daí a extraordinária importância da Lógica, como instrumento para se aferir se um conhecimento pode ser qualificado como demonstrável).

 

A Física de Aristóteles é também finalista [5]. Dito de outro modo: seu modelo de explicação é o teleológico (porque, para ela, todo ser tende à realização da sua maior perfeição). 

 

Aristóteles não aplica a Matemática à Física. Movimento e repouso são vistos como estados qualitativamente diversos [6].  E quanto ao espaço, Aristóteles reconhece uma infinidade deles. Há, portanto, naturezas qualitativamente diferentes e os lugares do espaço também são qualitativamente diferentes.

 

Essa concepção de Física perpassou o restante da Antiguidade e toda a Idade Média. 

 

II.  Descartes : uma nova forma de ler o mundo

 

Descartes propõe uma nova forma de pensar. Ele quer aplicar o método matemático à Ciência  (e, portanto, também à Filosofia, já que uma e outra eram uma e a mesma coisa). Para Descartes, Ciência se faz a partir da observação, da experimentação (e aqui reside o eixo da mudança) e da elaboração de leis científicas.

 

O projeto de Descartes -- que atingirá seu ponto culminante na Física newtoniana  --  é edificar, sobre a certeza matemática, todo o edifício do conhecimento. Então, conhecimento é apenas aquilo que é indubitável.

 

Descartes, logo se vê, revolucionou o pensar, embora tenha mantido a ideia aristotélica de que Ciência é conhecimento universal e necessário  --  e aí reside, justamente, a relação de semelhança entre Aristóteles e Descartes --, ideia essa, aliás, que prevalecerá até Newton.

 

Contudo, para ele, e já então partindo para as relações de diferenças entre os dois Pensadores, uma ciência puramente empírica  -- aquela baseada nos dados sensoriais, como a Física de Aristóteles  -- , não é Ciência.   É a clareza racional que tem que dar conta da Ciência, porque aquilo que nos chega pelos sentidos não revela o mundo real.  A Ciência deve se basear exclusivamente naquilo que a razão lhe mostra. 

 

Para Descartes, há apenas duas substâncias:  alma e corpo. O atributo essencial da alma é o pensar, e o atributo essencial do corpo é a extensão. Então, todo corpo é igual a qualquer outro corpo. Todo corpo se reduz às suas dimensões geométricas:  largura, profundidade e altura.

 

Desaparece, assim, a diversidade ontológica do Universo aristotélico: o corpo é apenas extensão, e nada mais que extensão.  Aquilo que o corpo é, é mostrado pelo corpo. Suas propriedades esgotam-se naquilo que é mensurável. Todo corpo não tem qualquer coisa além de suas propriedades geométricas. Não há, então, uma “natureza oculta” no corpo (o que para Aristóteles era a “potência”).

 

O Universo cartesiano simplifica o Universo aristotélico. É um Universo de ontologia explícita, totalmente transparente, geometricamente transparente. Nada se “esconde” nesse mundo, para depois “se mostrar”. É um mundo feito de “cristais”:  posso analisar suas formas geométricas e suas magnitudes, mas o conjunto é ... transparente.

 

O critério de verdade estabelecido por Descartes é a evidência.  Então, a evidência estabelece, também, o princípio da racionalidade.

 

Foi justamente a simplificação do mundo pela Física de Descartes que permitiu a conflagração do projeto de matematização do Universo, passo inicialmente dado por Galileo Galilei, contemporâneo de Descartes.

 

A Matemática é puramente um sistema de relações, que pressupõe  o princípio de causalidade. A Física-matemática, a partir do princípio de causalidade, constrói processos de relações (porque não mais as coisas em si, mas apenas as relações entre as coisas interessa à Física moderna).  

 

Tem início, dessa forma, o “racionalismo”[7], que Descartes, contudo, não realiza em sua inteireza: o racionalismo cartesiano começa a ser “radicalizado” com Spinoza e Leibniz, e atinge seu ápice em Wolff.

 

O mundo de Descartes ganha em termos de Matemática. Mas perde em significação. O Universo cartesiano não é finalista, como o Universo de Aristóteles. Ele é  mecanicista.  Esgota-se na geometria.  É, portanto, totalmente matematizado. O racional é sempre determinado (no sentido de que não pode acontecer de outro modo). Tudo acontece necessariamente segundo as leis da Física. 

 

Nesse contexto, Newton representa o triunfo do processo de matematização do Universo. A Física se separa da Filosofia. O cientista passa a se ocupar de fórmulas matemáticas e não mais reflete sobre a existência, sobre a natureza última do espaço e do tempo, sobre a origem e sobre o destino do homem.


E, para mais do que isso, se não existe um Universo que não preste contas à Razão, então não existe espaço para a liberdade do homem.   Porque se se admite a liberdade, sob a forma de livre-arbítrio, então introduz-se algo no mundo -- as ações humanas -- que escapa à tarefa de explicar o mundo exclusivamente pela Razão.



[1] Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Professor do Departamento de Teoria Geral do Direito na Faculdade de Direito da PUC-SP. Graduando em Filosofia na PUC-SP.

[2] In  História da Filosofia, de Giovanni Reale e Dario Antiseri,  ed. Paulus,  2009, volume 1, p. 207.

[3] Idem, ibidem.

[4] A Lógica é ciência puramente formal porque ocupa-se apenas com a forma das inferências.  É-lhe indiferente o conteúdo das premissas.  A relação que se configura entre as premissas e a conclusão independe da verdade (ou da falsidade) das premissas.

[5] Agir para um fim e, em relação a este, avaliar os próprios meios, é típico da atividade humana.  Conforme a hipótese finalista, a natureza também seria movida por análogo critério de intencionalidade, obviamente nem sempre consciente.  O que determina o movimento dos astros celestes ou a evolução biológica das espécies animais não é o acaso e tampouco um rígido determinismo, mas a realização de um propósito.   O finalismo foi teorizado pela primeira vez por Aristóteles.  ...   (in  Antologia Ilustrada de Filosofia, de Ubaldo Nicola,  ed. Globo, 1ª. edição, 2002, p. 264).

[6] Uma vez que movimento e repouso são estados qualitativamente diversos, Aristóteles debruçou-se sobre a pergunta:  por que há o movimento?. A pergunta era fundamental, visto que o movimento representaria a passagem do “não-ser” para o “ser”, e do “ser” para o “não-ser”.  Essa passagem, entretanto, parecia desobedecer o princípio de identidade, pressuposto de toda a racionalidade, já que toda alteridade mostra-se, bem por isso, irracional.

[7] O sufixo indica o ato de “levar as coisas ao seu limite”.   Assim, portanto, em “logicismo”, “catolicismo”, “empirismo”, “cientificismo”, etc.


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