648 - Uma breve introdução ao Realismo Lógico de Bolzano

 
OSVALDO PALOTTI JUNIOR [1] – Desembargador e professor

 

 
1. A situação da Ciência no Século XIX e a situação do pensamento de Bolzano na História da Filosofia

 

As voltas e reviravoltas experimentadas pela Ciência ao longo do Séc. XIX influenciaram decisivamente o pensamento filosófico da época, especialmente no que se refere à Teoria do Conhecimento, justamente a pedra de toque da Filosofia naquela quadra.

 

A descoberta de antinomias nas disciplinas matemáticas, o nascimento das geometrias não-euclidianas, a revisão da perspectiva mecanicista do Universo decorrente do triunfo da Física Newtoniana, a teoria da evolução das espécies de Darwin, as leis da hereditariedade biológica de Gregor Mendel, a questão da “geração espontânea” e a demonstração de Pasteur sobre a origem das bactérias, tudo isso abalou, também, o edifício do saber filosófico. 

 

Afinal, no dizer de Giovanni Reale e Dario Antiseri, “o homem que capta, constrói ou, de qualquer forma, é capaz de verdades absolutas não é o mesmo homem que só é capaz de verdades sempre desmentíveis ou então de convenções” [2].

 

Paralelamente, a visão científica distanciou-se da visão cotidiana de mundo, porque o prisma científico afastou-se da intuição. A razão é simples: a Ciência passou a descrever o Universo e aquilo que nele há e acontece com o instrumental da Matemática, cuja marca, no Séc. XIX, era uma forte exigência de rigor.

 

Nesse contexto, e lembrando que os filósofos de então eram, também, grandes matemáticos (entre eles, Bolzano), surgiu um dos problemas fundamentais da Filosofia do Séc. XIX: a relação entre Ciência e Filosofia.

 

A Filosofia, voltada, como já se anotou, à questão epistemológica,  passa por uma “crise”.  Bolzano debruça-se sobre aquilo que era pressuposto pela Filosofia da época e questiona: o que é Teoria do Conhecimento?

 

A Teoria do Conhecimento parte de um sujeito cognoscente e pergunta: como o sujeito pode conhecer? Bolzano coloca em segundo plano o sujeito cognoscente e preocupa-se com o conteúdo da Ciência. Ele funda, então, uma disciplina, a “Teoria da Ciência”: a Filosofia passa a fazer análise lógico-semântica dos conceitos utilizados pela Ciência [3].

 

É por isso que se pode dizer que o pensamento de Bernhard Bolzano situa-se, no plano intra-sistemático e propriamente filosófico, proposto por Mario Porta, exatamente na passagem do chamado “período epistemológico”  (ou “transcendental”) da história da Filosofia para o “período semântico-hermenêutico”[4]. Bolzano representa, no particular, a origem da “virada semântica” (semantic turn).


2. 
A Ciência, na visão e na doutrina de Bolzano

 

Para Bolzano, a Ciência é um conjunto de proposições e, para mais do que isso, um conjunto de proposições logicamente relacionadas, e é composta de “proposições em si”, de “representações em si” e de “verdades em si”, que integram um reino distinto e independente do mundo fenomênico e da existência de um sujeito empírico.

 

Nas palavras de Luis Niel, “lo particular de esta interpretación y que le da su tinte platónico es precisamente la idea del  ‘en sí’  (an sich), es decir, la absoluta independencia de cualquier otra entidad (sea mental, ontológica, etc) que no sea sí misma” [5].

 

O “Realismo Lógico” de Bolzano, portanto, implica e consiste na aceitação de uma “objetividade ideal” [6]. É dizer: o ideal é objetivo, é algo que independe da minha vontade e que não é apreendido pelos sentidos.  Esse mundo ideal se realiza no sujeito real: uma “proposição em si” se realiza na proposição que eu enuncio.  E se realiza, também, nos objetos concretos do mundo real (a pasta verde acomodada na cadeira à minha frente) [7].

 

Dito de outro modo: a “proposição em si”, como sublinham Reale e Antiseri,  “é o puro significado lógico de um enunciado, não dependendo do fato de ele ser expresso ou pensado.  ...  As proposições em si podem derivar uma da outra e podem entrar em contradição: elas são parte de um mundo lógico-objetivo e são independentes das condições subjetivas do conhecer” [8]

 

Uma “proposição em si”, destarte, é um objeto que não foi criado ou produzido por um sujeito e está fora do espaço e do tempo.   Possui unicamente “existência lógica” [9]. Por conta mesmo de sua natureza, a proposição em si é “portadora originária de verdade” [10].

 

As “representações em si” são as partes das proposições, mas que não são proposições em si.   

 

Toda “representação em si” tem um conteúdo e um objeto e se refere  ao seu objeto através de seu conteúdo [11] [12].

 

Ao lado das proposições em si há as “verdades em si”: a validade de um princípio lógico, como o princípio de identidade ou o princípio de não-contradição, por exemplo, que se revela na forma de uma proposição válida, existe e subsiste como tal ainda que sequer tenha sido pensado ou expressado pela linguagem, em qualquer de suas formas.

 

O pensamento de Bolzano, logo se percebe, opõe-se à concepção relativista do “psicologismo”, entendido como “toda teoria que, de um modo ou de outro, reduza a significação (e as ‘idealidades’ em geral) a uma entidade psicológica, vivência (Erlebnis) ou representação (Vorstellung)”, na lição de Mario Porta [13]  [14].     


3. 
O problema epistemológico que surge do Realismo Lógico

 

O Realismo Lógico não se confunde com a Teoria das Ideias de Platão, e menos ainda com a questão epistemológica exposta por Descartes.

 

Em Platão surge o problema da relação entre o mundo ideal e o objeto real.    E Descartes questiona a forma pela qual um sujeito real conhece um objeto real.

 

O problema epistemológico trazido pelo Realismo Lógico é distinto de um e de outro.  Ele traz a questão do objeto ideal e pergunta pela maneira como um sujeito real apreende um objeto que não é real.

 

É dizer: Bolzano não “divide” a realidade.   Ele estabelece um corte entre a realidade e uma coisa distinta da realidade, o reino dos objetos ideais, e então pergunta pelo modo como se dá a correspondência entre o reino objetivo ideal e o reino subjetivo fático.

 

Para Bolzano, uma boa Teoria do Conhecimento tem que explicar não apenas a relação de um sujeito real com um objeto real (Descartes), mas também a relação do sujeito real com o reino ideal  -- e a relação entre o reino ideal e o objeto real.

 

O problema epistemológico que surge do Realismo Lógico, em síntese, envolve a relação do sujeito real com um objeto ideal: como um sujeito real pode conhecer um objeto ideal e é justamente dessa questão que, ao lado de outras, partirá a Fenomenologia de Husserl.

        



[1] Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Professor do Departamento de Teoria Geral do Direito na Faculdade de Direito da PUC-SP. Graduando em Filosofia na PUC-SP.

[2][2] In  “História da Filosofia” , ed. Paulus,  volume 5,  2ª. edição, 2007,  p. 333-334.

[3] A “Teoria da Ciência” de Bolzano é precursora do que hoje se entende por “Filosofia da Ciência”.

[4] Mario Ariel Gonzáles Porta, in “A Filosofia a partir de seus problemas”, Edições Loyola, 2002, p. 158-159.

[5] In   Antipsicologismo y platonismo en el siglo XIX:  Herbart,  Bolzano e Lotze,  artigo publicado na “Revista de Filosofia” Vol. 39, Núm. 1 (2014): 95-118, p. 105.

[6] Justamente por aceitar a existência de uma “objetividade ideal”, o Realismo Lógico de Bolzano, como já se depreende da citação de Luis Niel,  também é chamado de “Platonismo Lógico”.

[7] Mas a relação do mundo ideal com o sujeito real é diferente da relação do mundo ideal com as coisas reais (as coisas pretas não têm consciência da “pretude” delas).

[8] ob. cit., volume 6,  2ª. edição,  2008,  p. 178.

[9] In  “Dicionário de Filosofia de Cambridge”,  editora Paulus, 2006,  verbete “Bolzano, Bernard”.

[10] A questão dos “portadores de verdade” (Truth-bearers) é, por si só, bastante problemática, como evidencia Susan Haack em sua obra “Philosophy of Logics”, Cambridge University Press, 15th printing, 2006, p. 79 e seguintes.

[11] Mas há, também, representações sem objeto.   Posso “imaginar” ou falar de um “círculo retangular”, embora ele não exista e embora isso se constitua em uma evidente contradição.

[12] A expressão “objeto” é aqui utilizada em seu sentido filosófico, “funcional”:  aquilo que, numa relação de conhecimento, está de um certo lado.  O cognoscente é o sujeito.  O cognoscido, aquilo que se conhece, é o “objeto”.

[13] Mario Ariel Gonzáles Porta,  ob. cit.,  p. 174.

[14] O psicologismo, basicamente, diz com a ideia de uma fundamentação da Lógica e da Matemática a partir da Psicologia.   Nas palavras de Luis Niel, es decir, las leyes de la lógica y de la matemática se justificam a partir de los procesos de pensamento mediante los cuales llegamos a ellas  (ob. cit., p. 98).


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