652 - Breve reflexão sobre o problema da causalidade nos crimes omissivos impróprios sob o prisma da lógica jurídica
OSVALDO PALOTTI JUNIOR [1] – Desembargador e professor
1. Introdução
Os crimes, como se sabe, são classificados em “comissivos” e “omissivos”, conforme sejam praticados mediante um agir, ou mediante um não-agir. Estes últimos, por sua vez, dividem-se em “crimes omissivos próprios” e “crimes omissivos impróprios”.
Os “crimes omissivos próprios” são aqueles que só podem, mesmo, ser cometidos mediante um comportamento negativo, um não-fazer. Exemplo típico, até por conta de sua própria rubrica, é o crime de “omissão de socorro” (CP., art. 135).
Os “crimes omissivos impróprios”, por sua vez, são aqueles que normalmente são praticados mediante um comportamento positivo, um agir, mas que admitem, também, uma conduta negativa, omissiva, como forma de cometimento (daí porque são também chamados de “crimes comissivos por omissão”). Homicídio e lesões corporais são os exemplos clássicos dessa modalidade.
2. O tratamento dado pelo Código Penal à questão
A relação de causalidade entre a conduta do agente e o resultado que se verifica no mundo fenomênico é tratada, num primeiro instante, pelo caput, do artigo 13, do Código Penal, que considera causa “a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”.
A norma só tem interesse para os chamados “crimes materiais”, é dizer, aqueles que se consumam apenas com a produção do resultado neles previsto[2]. Para esses, então, é indispensável que se estabeleça esse vínculo entre a conduta do sujeito e o resultado que se verificou, e isso para impedir que alguém responda pelo resultado causado exclusivamente por terceiro, ou sem sua interferência.
O Direito Penal adotou, no particular, a teoria da conditio sine qua non, ou “teoria da equivalência dos antecedentes causais”: tudo aquilo que concorre para o resultado é causa do resultado. Todos os antecedentes do resultado se equivalem, têm a mesma importância. É dizer: a causa da causa também é causa do que foi causado.
Para se saber se determinado fato é ou não é causa do resultado, utiliza-se o “procedimento hipotético de eliminação de Thyrèn”, que consiste em, mentalmente, suprimir, de toda a cadeia causal, conduta por conduta, uma por uma e verificar se, mesmo assim, o resultado teria ocorrido. Se a resposta for negativa, aquela conduta é causa (ou concausa) do resultado.
Em seguida o texto cuida da superveniência de causa (absoluta ou relativamente) independente, ou seja, daqueles fatos que interferem no curso normal da causa principal e que alteram – ou não – as consequências jurídicas dela decorrentes.
Se a causa superveniente for absolutamente independente da causa principal, resta excluído o nexo causal, relativamente ao resultado que ocorreu. O agente responderá apenas pelos atos que praticou. Assim, se no refeitório de um canteiro de obras, Tício envenena a comida de Mévio, mas antes que o veneno produza qualquer efeito Mévio deixa o refeitório e é atingido, por acidente, por uma barra de ferro que despenca de um andaime, e isso provoca sua morte, Tício responderá por tentativa de homicídio, e não por homicídio consumado.
Se a causa superveniente for apenas relativamente independente da causa principal, deve-se verificar se a causa superveniente está - ou não - inserida na linha de desdobramento natural da primeira causa.
Se a resposta for afirmativa, o agente responderá pelo resultado (é o caso em que a vítima, atingida por uma punhalada, morre em decorrência de infecção hospitalar). Se a resposta for negativa, será impossível, também aqui, a responsabilização do agente pelo resultado (é o caso em que a vítima, atingida por uma punhalada, morre em decorrência de acidente de trânsito no qual se envolveu a ambulância que a transportava para o hospital).
3. A questão do nexo causal nos crimes omissivos impróprios sob o prisma da estrutura lógica da norma jurídica
A segunda parte do caput do artigo 13, do Código Penal não deixa margem a dúvida: pelo não-fazer também se pode dar causa a um resultado. O Direito Penal não distingue, no particular, o agir do não-agir. Ação e omissão se equivalem, ao menos aparentemente, para fins de imputação do resultado.
A afirmação, logo se vê, parece desafiar o senso comum. Vem já dos gregos a noção de que nada pode surgir do nada, de que o nada não pode dar origem a coisa alguma (ex nihilo fit). A racionalidade humana não concebe a ideia da creatio ex nihilo (a criação a partir do nada).
Mas na realidade há uma distinção que não transparece na letra do artigo 13, caput, do Código Penal.
A causalidade, nos crimes comissivos, é a causalidade “natural”, fática, aquela do mundo dos fenômenos. A ligação entre a conduta e o resultado pode ser constatada independentemente do conhecimento ou do exame de qualquer norma jurídica. Ali a questão é regida pela lei científica de causa e efeito à qual todos estamos habituados, e a esse liame naturalístico a lei empresta importância jurídica.
O mesmo não se dá, contudo, na relação que se estabelece entre a omissão e o resultado. O vínculo, agora, é deôntico, como esclarece Lourival Vilanova: é o sistema jurídico que tece essa causalidade, inexistente sob o ponto de vista ‘naturalístico’. [3]
Lourival Vilanova segue a teoria dual da proposição jurídica e denomina suas partes de “norma primária” (que estabelece direitos/deveres) e “norma secundária” (que sanciona o inadimplemento da conduta devida). Inexiste, contudo, relação de ordem temporal entre a norma “primária” e a norma “secundária”. Essas denominações exprimem, antes, uma relação de antecedente lógico para consequente lógico, já que a norma sancionadora pressupõe a existência da norma definidora da conduta devida.
A norma primária é uma proposição, composta de hipótese (ou pressuposto) e tese (ou consequência). A hipótese é uma proposição descritora de fato de possível ocorrência e a tese é uma proposição descritiva. Esse primeiro membro da proposição jurídica completa articula-se em forma lógica de implicação: a hipótese implica a tese.
Mas é certo que o fato ao qual se empresta relevância jurídica não provoca, por si mesmo, a consequência jurídica estabelecida pela norma. Dito de outro modo: no universo das proposições jurídicas inexiste necessidade lógica ou fática de a hipótese implicar a tese.
O vínculo entre uma e outra é instituído pela norma jurídica, fonte formal do Direito, que, baseando-se num ato de valoração, extralógico, recorta do tecido social determinado fato para colocá-lo como hipótese, e escolhe, para ele, uma consequência. É, pois, a norma jurídica que estabelece que a hipótese implica a tese. Sem a norma, esse vínculo inexiste.
Em linguagem formalizada: D (p —› q),
onde “p” é a proposição-hipótese; “q” é a proposição-tese; “D” é o functor, e “—›“ é a relação implicacional (se —› então).
A tese gera uma relação entre dois ou mais sujeitos. De fato, se se dá a hipótese, surge daí uma relação entre S’ e S”. Essa relação não é descritiva, mas deôntica, em qualquer de seus modos (obrigatório, proibido ou permitido).
Vê-se, assim, que há um functor deôntico (neutro) que atua sobre a relação de implicação entre a hipótese e a tese, e outro functor deôntico (modalizado) no interior da estrutura proposicional da tese.
Em linguagem formalizada: D (p —› q)
|
S’ R S”
|
D
A norma secundária é, também, uma proposição constituída de hipótese (ou pressuposto) e tese (ou consequência), articuladas entre si por uma relação de implicação. Na norma secundária estabelecem-se as consequências sancionadoras que decorrem do “não cumprimento do estatuído na norma determinante da conduta juridicamente devida”[4]. A relação implicacional que articula a proposição é também deonticamente modalizada. E o modal deôntico é prefixo à proposição implicacional, tal como ocorre com a norma primária.
Em linguagem formalizada: D (-q —› r)
Fica clara, diante desse cenário, a afirmação de Lourival Vilanova: ... interessa-nos sublinhar: enquanto na causalidade natural a relação entre o fator causal C e o fator efectual E é necessária, ou pelo menos, probabilitária, na causalidade jurídica é deôntica. Poderíamos esquematizar assim: na relação causal natural - se se dá C, então dá-se E; na relação causal jurídica – se se dá C, então deve dar-se E . [5]
É, portanto, a norma jurídica que põe o vínculo entre a conduta negativa, nos crimes omissivos impróprios, e o resultado. Sem essa imputação jurídico-normativa não se pode sustentar a existência de qualquer liame entre uma conduta omissiva e a ofensa a um bem juridicamente tutelado pelo Direito Penal. O nexo causal, nos crimes omissivos impróprios, é então normativo: a norma é que confere relevância jurídica ao não-fazer.
O parágrafo 2º, do artigo 13, do Código Penal costura esse liame entre o não-agir e o resultado, ao descrever as hipóteses em que a omissão é “penalmente relevante”.
Decorre daí que nos crimes omissivos impróprios o omitente suporta a reação penal não porque sua omissão causou o resultado, mas porque ele, omitente, não evitou o resultado, quando era seu dever fazê-lo.
Esse dever jurídico de evitar o resultado surge quando presentes uma (ou mais) das hipóteses previstas nas letras “a”, “b” e “c”, daquele dispositivo. E ao lado do dever jurídico de agir há que estar presente, também, a possibilidade - inteira e exclusivamente fática, física - de o omitente agir para impedir o resultado, sem a qual não é possível responsabilizá-lo por ele
É o caso do salva-vidas que, em razão de fato estranho à sua vontade (foi, por exemplo, imobilizado por terceiros), encontrava-se impossibilitado de atirar-se ao mar para salvar alguém que se afogava. Essa circunstância fática exime-o da responsabilidade penal.
Em síntese, nos crimes omissivos impróprios, o vínculo causal entre a conduta omissiva e o resultado somente se estabelece quando resta claro que o omitente (i) tinha o dever jurídico de agir para impedir o resultado e (ii) tinha possibilidade de agir para impedir o resultado. Ausente um ou outro, não incide a norma penal sancionadora.
[1] Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Mestre em Direito Penal pela PUC-SP. Professor do Departamento de Teoria Geral do Direito na Faculdade de Direito da PUC-SP. Graduando em Filosofia na PUC-SP.
[2] Os crimes materiais diferem dos chamados “crimes formais”, que se consumam com a simples ação do agente (como, por exemplo, a extorsão mediante sequestro e a concussão, previstas, respectivamente, no artigo 159, e no artigo 316, do Código Penal e que, por isso mesmo, também são chamados de “crimes de consumação antecipada”). E diferem, igualmente, tanto dos “crimes de mera conduta”, como é o caso da invasão de domicílio (artigo 150, do Código Penal) quanto dos crimes “omissivos próprios”.
[3] In “Causalidade e Relação no Direito”, ed. RT, 4ª. edição, 2.000, p. 65.
[4] Lourival Vilanova, “As Estruturas Lógicas e o Sistema de Direito Positivo”, Ed. Revista dos Tribunais, 1977, p. 64.
[5] In “Causalidade e Relação no Direito”, p. 64.