653 - O problema epistemológico da “Crítica da Razão Pura”, de Kant


OSVALDO  PALOTTI  JUNIOR [1] – Desembargador e professor

 

1. A pergunta de Kant e seus pressupostos

 

O problema da “Crítica da Razão Pura”, de Kant, é de natureza epistemológica e se traduz em três perguntas, aparentemente independentes umas das outras: (i) como é possível a Física como Ciência,  (ii) como é possível a Matemática como Ciência  e  (iii) se a Metafísica é possível como Ciência.   

 

Kant quer saber, em resumo, como são possíveis juízos sintéticos “a priori”.

                          

O exame do problema kantiano começa pela explicitação de um pressuposto, comum à época (e hoje definitivamente superado, pelo menos a partir do falseacionismo de Karl Popper): para Kant, Ciência é conhecimento universal e necessário.

 

No campo científico, a primeira metade do Séc. XVIII é marcada pela disputa entre a Física de Descartes e a Física de Leibniz.  É nesse cenário que surge a Física de Newton, que a todos empolga, inclusive a Kant, que se encontrava justamente a meio de seu desenvolvimento intelectual e acaba aderindo em definitivo à nova Física [2].

 

O racionalismo moderno, embora tenha revolucionado o conteúdo da Ciência, manteve, contudo, o conceito que Aristóteles lhe atribuiu: Ciência é conhecimento universal e necessário.  

 

Kant adere à Física de Newton, porém não a vê como conhecimento que se ocupa, apenas, com as relações entre fenômenos naturais, e não mais reflete sobre a natureza última desses fenômenos.  Kant se mantém fiel à ideia clássica de Ciência, de modo que, para ele, Ciência é conhecimento absolutamente certo e, por isso, imutável. É conhecimento pelas causas (ou pelas razões), é conhecimento demonstrado. Conhecimento científico, destarte, é aquele que tem caráter explicativo, e não meramente informativo. Dito de outro modo: o conhecimento científico deve não apenas dizer o que acontece, mas deve também demonstrar porque um fenômeno acontece de determinado modo e porque não poderia acontecer de outro [3].   

 

Se conhecimento demonstrado é conhecimento certo, então conhecimento demonstrado é conhecimento necessário [4] e essa necessidade é transmitida ao próprio fenômeno.

 

2. As diversas formas de conhecimento e de juízo

 

No exame da questão epistemológica que se propôs a enfrentar, Kant distingue as formas de conhecimento de acordo com o modo como ele pode ser fundamentado.

 

Para ele, conhecimento “a posteriori” é aquele que pode ser suficientemente fundamentado na experiência. Portanto, é conhecimento cuja verdade ou falsidade é revelada pelos dados sensoriais  (se afirmo que “a parede é branca”, a verdade ou falsidade dessa afirmação pode ser constatada assim que meu interlocutor voltar seus olhos para a parede a que me refiro). Conhecimento “a posteriori”, então, é sinônimo de conhecimento empírico.

 

Conhecimento “a priori” é, por definição, aquele que não é conhecimento “a posteriori”. É dizer: é aquele cuja verdade ou falsidade não pode ser suficientemente fundada na experiência. A definição, porém, não diz em que se funda um conhecimento “a priori”. O conhecimento “a priori” distingue-se do conhecimento “a posteriori” justamente por sua universalidade e necessidade  (quando digo que “a linha reta é a menor distância entre dois pontos”, não me refiro a nenhuma linha reta em particular,  mas a qualquer linha reta, que sempre será a menor distância entre dois pontos).

 

Então, qualquer juízo que pretende ser universal é um juízo “a priori”, embora faça menção a objetos empíricos.

 

A par da distinção entre conhecimento “a posteriori” e conhecimento “a priori”, importa diferenciar, para Kant, juízo analítico de juízo sintético.

 

Juízo, na concepção kantiana, é um enunciado que se submete a valores de verdade. Kant também aqui segue o pensamento de Aristóteles, para quem todo juízo se articula de acordo com a estrutura sujeito-verbo-predicado. De outro giro: “um juízo consiste na conexão de dois conceitos, dos quais um (A) cumpre a função de sujeito e o outro (B) cumpre a função de predicado” [5].

 

Por conta dessa estrutura, toda forma de inferência se deixa reduzir a um silogismo, que expressa justamente uma “combinação” de sujeito e predicado.

 

E há duas formas de juízo: o juízo analítico e o juízo sintético.

 

Na esteira da teoria de Leibniz, para Kant juízo analítico é aquele em que o conceito do predicado está contido no conceito do sujeito.  Ele expressa, portanto, uma identidade, explícita ou implicitamente. Se digo que “um triângulo tem três lados”  (o exemplo é do próprio Kant), emito um juízo implicitamente analítico. E se digo “um triângulo é um triângulo”, emito um juízo explicitamente analítico.

 

Daí se extrai importante consequência: se no juízo analítico, o predicado está contido no sujeito, então o juízo analítico é “logicamente necessário”.   E se o juízo é “logicamente necessário”, a sua negação implica uma contradição.

 

Juízo sintético, ao contrário, é aquele que reúne duas coisas diferentes, já que, nele, o predicado não está contido no sujeito.  Dizer que “o corpo é extensão” é emitir um juízo sintético.

 

O juízo sintético divide-se em juízo sintético “a posteriori” e juízo sintético “a priori”.

 

3.  A Física e a Matemática, na concepção de Kant

 

Kant vê, na Física newtoniana, a realização da ideia clássica de Ciência.

 

Mas a Física de Newton, embora descreva adequadamente fenômenos e, para mais do que isso, relacione fenômenos que pareciam ser absolutamente independentes uns dos outros (como, por exemplo, o movimento da lua e o movimento das marés), o fato é que ela não demonstra os fundamentos das leis que estabelece.   Em outras palavras:  a Física newtoniana diz “o quê”, mas não explica o “porquê” [6].

 

A mecânica newtoniana assenta-se sobre as noções de tempo e espaço absolutos (e também sobre o princípio de causalidade). O tempo e o espaço absolutos são abstrações matemáticas, insuscetíveis, bem por isso, de terem sua existência constatada pela experiência.  Dito de outro modo: tempo e espaço absolutos são realidades cuja existência Newton não demonstra, mas apenas pressupõe.

 

Aí reside o problema dos juízos que se querem “universais”: embora se refiram a objetos empíricos (fatos), eles não podem ser demonstrados [7].   Eles são, por isso, juízo sintéticos “a priori”, ou juízos “puros”.

 

Contudo, se para Kant a Física de Newton é a realização da ideia clássica de Ciência e, por assim ser, Kant reconhece que a Física newtoniana se constitui em conhecimento universal e necessário, a pergunta que se apresenta é: como são possíveis juízos necessários, mas não logicamente necessários?

 

De outro giro: o princípio dos juízos sintéticos “a posteriori” é a experiência.  Mas qual é o fundamento da “síntese”, nos juízos sintéticos “a priori”?   Não pode ser a experiência, porque a experiência não pode fundar a necessidade e a universalidade.   

 

A mesma reflexão se aplica à Matemática (cujo modelo, para Kant, é a Geometria Euclidiana).  Para ele - ao contrário de Leibniz -, a Matemática não lida com juízos analíticos, mas com juízos sintéticos “a priori”.

 

Em resumo: para Kant, a Matemática e a Física operam com juízos sintéticos “a priori”. E ele se pergunta se isso também é possível em relação à Metafísica.

 

Para ele, pelo menos a princípio, por serem necessárias, “as afirmações metafísicas devem ter um status a priori, pois não podemos determinar que elas são necessárias por meros meios a posteriori” [8].

 

Como explicam Giovanni Reale e Dario Antiseri, “conseguindo-se estabelecer qual a natureza e o fundamento da ‘síntese a priori’,  poder-se-á resolver com facilidade o problema de como e por que são possíveis as ciências matemático-geométricas e a ciência física, e se poderá, por fim, resolver o problema se é ou não possível uma ‘metafísica como ciência ‘, ou então, se isso não for possível, por que a razão humana se sente tão irresistivelmente atraída pelas questões metafísicas” [9].



[1] Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Mestre em Direito Penal pela PUC-SP. Professor do Departamento de Teoria Geral do Direito na Faculdade de Direito da PUC-SP. Graduando em Filosofia na PUC-SP.

[2] Cf. Mário Ariel Gonzáles Porta, in “A Filosofia a partir de seus problemas”,  Edições Loyola, 2007, p. 108.

[3] Na medida em que Aristóteles concebe a Ciência como conhecimento explicativo, demonstrativo, torna-se necessário investigar em que hipóteses se pode considerar “válida” uma demonstração.  É nesse contexto que surge a Lógica, como disciplina que estabelece critérios (meramente formais) para distinguir uma demonstração válida de uma demonstração não-válida.

[4] “necessário” é aquilo que “não pode não ser”.  

[5] Giovanni Reale e Dario Antiseri, in História da Filosofia, ed. Paulus, volume 4, 2009, p. 356.

[6] O próprio Newton reconheceu esse fato.  Ao ser indagado sobre os fundamentos da lei da gravitação universal, respondeu:  hypotheses non fingo.

[7] Coloca-se, em relação a eles, o chamado “problema da indução”.

[8] In Dicionário de Filosofia de Cambridge,  ed. Paulus, 2006, verbete “Kant, Immanuel”.

[9] Ob. cit., p. 355.


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