Políticas de prevenção e redução da criminalidade são analisadas na EPM
Realizou-se, no dia 19 de março, a última aula do 1º Curso de segurança pública da EPM, com o tema “Segurança pública e prevenção – um olhar sobre as experiências francesa e canadense”. A aula foi ministrada pela professora Paula Miraglia (foto) e teve a participação do juiz coronel Fernando Pereira, vice-presidente do Tribunal de Justiça Militar de São Paulo, e da advogada Janaina Conceição Paschoal, coordenadores do curso.
Doutora em Antropologia Social, especialista em Segurança Pública e Desenvolvimento Urbano e integrante da “Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional”, Paula Miraglia foi diretora-geral do “Centro Internacional de Prevenção contra o Crime” (International Centre for the Prevention of Crime - ICPC), fundado no Canadá em 1994, em parceria com o governo da França. Ela destacou, inicialmente, a importância de se conhecer as estratégias do ICPC: “Interessa-nos olhar a experiência da criação, desenvolvimento, implementação e institucionalização de políticas de prevenção e combate ao crime organizado desses países, embora seus contextos sejam bem diversos dos nossos”, afirmou.
A seguir, a professora falou das estratégias globais de prevenção da violência e da criminalidade num contexto de reforma da Justiça Criminal. “Hoje falamos dessa prevenção como um campo já delineado no âmbito das políticas públicas, mas durante muito tempo esse tema foi tratado exclusivamente no campo da Justiça Criminal e de repressão ao crime, com pouca ênfase na prevenção. Esse debate iniciou-se quando os países perceberam que a Justiça Criminal, exclusivamente, não dava conta da questão, e começaram a questionar seus modelos, custos a eles relacionados e capacidade do sistema de Justiça”, explicou.
Adiante, relatou como a matéria foi tratada na Organização das Nações Unidas (ONU). “As resoluções da ONU que tratam de cooperação e assistência técnica no campo da prevenção entre os países, de 1995, de diretrizes específicas para a prevenção do crime, de 2002, do direito de acesso à Justiça, mostram em que momento esse debate global começou a acontecer. Referidas resoluções buscam dar conta da diversidade e impõem um desafio, orientando, em alguma medida, políticas nacionais, pois os países-membros comprometem-se a cumpri-las.”
Paula Miraglia explicou que tais estratégias essencialmente combinam prevenção da criminalidade com desenvolvimento social, sendo a mais importante delas aquela com base comunitária ou local: “Por mais que saibamos ser a criminalidade um fenômeno da cidade, de países, ou transnacional, como no caso do crime organizado, os impactos ocorrem na comunidade, onde as armas traficadas são usadas e onde é percebida a violência gerada pelas drogas. As estratégias de prevenção precisam então ser pensadas a partir de uma dimensão local, em que a comunidade passa a ser parte integrante”.
Outros aspectos dessa estratégia são a prevenção situacional, no sentido de prevenir e reduzir as oportunidades de crimes, os programas de reintegração social, liderança governamental (comprometimento e clareza política fundamentais em estados críticos), desenvolvimento e inclusão socioeconômicos, cooperação/parcerias, sustentabilidade das políticas (conhecimento sobre o destino dos recursos e responsabilização pela participação na implementação da política), base de conhecimento estatístico do crime, perfis de situação de risco, observância dos direitos fundamentais, do Estado de Direito e da cultura da legalidade, interdependência e diferenciação dos grupos particularmente vulneráveis.
Adiante, a professora mencionou instrumentos de apoio à formulação de estratégias contra a violência comunitária estabelecidos pela ONU, quais sejam, a Convenção sobre os Direitos da Criança, as Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil, a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres, a Declaração dos Princípios Básicos de Justiça para Vítimas, de Crime e de Abuso de Poder, as convenções das Nações Unidas contra a corrupção e o crime organizado transnacional.
A par da importância de temas para pensar as políticas de prevenção, tais como o papel dos governos em todos os níveis, a prevenção à criminalidade com base no conhecimento, planejamento, monitoramento e avaliação e abordagens multisetoriais, Paula Miraglia sopesou a relação repressão/prevenção: “É preciso pensar a relação custo/benefício de uma estratégia repressiva em comparação com estratégias preventivas alternativas, o que significam numa perspectiva econômica mais ampla, em relação à preservação da saúde, da vida, da produtividade”. Segundo ela, a experiência dos países (citou o caso do Estado da Califórnia, nos EUA), demonstrou que a adoção de políticas repressivas muito duras não reduzem significativamente a criminalidade. Além desse fator negativo, superlotam as prisões e aumentam os custos do sistema prisional.
A experiência canadense – foco nas situações de risco e na coesão social
A seguir, a professora discorreu sobre a experiência canadense. “O Canadá tem uma política de segurança pública e um órgão específico para tratar da prevenção ao crime, o Centro Nacional de Prevenção ao Crime, como uma espécie de Ministério da Segurança Pública. O Ministério da Justiça no Canadá cuida do sistema prisional, do trabalho com o sistema Judiciário. Sua filosofia preventiva é baseada na ideia da coesão social, que implica no cultivo dos laços sociais, na formação de comunidades mais resilientes. Suas premissas, que indicam uma mudança de perspectiva de reativa para interventora e transformadora, são: “Intervenções bem desenhadas são capazes de influenciar comportamento”; “intervenções bem sucedidas reduzem a vitimização e o custo do sistema de Justiça Criminal”.
A professora declinou os elementos-chave da estratégia canadense: expandir o conhecimento sobre os fatores de risco de envolvimento com atividades criminosas em relação ao indivíduo, à família, à escola e à comunidade; identificação de indivíduos que exibem ou estão expostos a esses fatores, com foco em crianças, jovens, jovens adultos e egressos do sistema penitenciário, bem como criar uma base de intervenções eficazes para lidar com tais fatores – sem estigmatizar grupos sociais ou reduzir direitos fundamentais, mas identificando situações e grupos de vulnerabilidade para garantir o acesso aos direitos constitucionais –; apoiar intervenções baseadas em evidência; buscar os clientes com probabilidade de beneficiar-se da intervenção; implementar abordagens e práticas comprovadamente eficazes; trabalhar para a comunidade com valorização dos profissionais da área; buscar uma linha de financiamento e estruturação de projetos comunitários; construir e compartilhar do conhecimento prático; e apoiar a realização de estudos e a avaliação de impactos.
A professora mencionou, ainda, estudos que comprovam que crianças que foram vítimas de violência ou a presenciaram no cotidiano familiar ou comunitário têm predisposição ao comportamento violento. “Uma das características da violência é a maleabilidade do ponto de vista da percepção. Em algumas culturas, falar alto ou encostar em uma pessoa pode ser considerado violento. A perversão dessa maleabilidade é que o nosso nível de tolerância pode ser ampliado e vivemos numa sociedade que foi incorporando a violência em seu cotidiano, modificando continuamente as estratégias para conviver com ela.”
A experiência francesa – investimento na comunidade
Segundo a professora, a França, em relação ao Canadá, é pioneira em pensar estratégias de prevenção em resposta à violência. Ela mencionou um relatório feito pelo governo em 1977, que adotou como ponto de partida o sentimento de insegurança, a maneira como a violência estava afetando a vida social e comunitária, a falta de estratégias de repressão, a relação entre processos de urbanização e criminalidade e a percepção dos jovens como principais vítimas e perpetradores da violência. Adiante, mencionou um segundo relatório, “A segurança é um assunto para todos”, de 1987, dedicado à expansão da compreensão da segurança como tema público merecedor de intervenção coletiva e a quem ela interessa, elaborado pelo então prefeito de Paris, Gilbert Bonnemaison, militante da causa da prevenção à violência e criminalidade, criador dos Fóruns francês e europeu de segurança urbana. Segundo Paula Miraglia, o relatório possui três pontos-chave: a ineficácia da estratégia repressiva e seu custo, a necessidade de ações e parcerias e o envolvimento municipal da prevenção.
“Aspecto fundamental da política francesa de prevenção é sua institucionalização, vinculada à tradição democrática francesa, que passa pela criação de leis e instâncias responsáveis por sua aplicação. Exemplo disso é o Decreto de 1983, que cria três instâncias nacionais de prevenção à delinquência (Conselho Nacional, Conselhos Departamentais e Conselhos Comunitários e Intercomunitários). Esse é um tema a ser pensado para o Brasil.”
Nesse contexto, citou os princípios de parceria, aproximação física entre agentes e comunidade e política urbana. Entre estes, citou a política nacional com implantações territoriais, que tem o prefeito como figura central em sua execução e a prefeitura como instância de articulação. “O resultado são os contratos locais de segurança, a pactuação em torno da política de prevenção nacional, a descentralização estratégica que envolve a responsabilização e cooperação dos diversos atores, a expansão dos poderes da polícia municipal e a ideia da responsabilidade coletiva.
Paula Miraglia destacou, ainda, a exemplo do Canadá, a criação pela França da Comissão Interministerial de Prevenção da Delinquência, além de uma lei que trata da prevenção do crime e dá autonomia política e orçamentária às estratégias de prevenção. Informou, ainda, que aquele país possui um plano nacional de prevenção à delinquência e de ajuda às vítimas.
A professora elencou, finalmente, a Justiça de Menores, o monitoramento escolar, a formação da polícia local, a proteção às vítimas, a videovigilância, a participação comunitária e a difusão nacional da estratégia territorial. Salientou também a tradição francesa da mediação social e comunitária: “As políticas de segurança e prevenção na França hoje são resultado de um processo de construção que já dura 35 anos.”
Brasil: desafio para a construção de novos paradigmas
Em relação ao Brasil, Paula Miraglia observou, inicialmente, que a ditadura militar teve um impacto muito grande no desenho das instituições e na concepção da segurança pública: “Tratava-se de um Estado de exceção que pensava na lógica do inimigo, pois precisava se proteger do cidadão. Assim, a segurança era pensada como um sistema de proteção do Estado e não do cidadão. É por isso que ainda pensamos a segurança no Brasil associada à ideia de repressão. Essa noção fez com que poucos agentes se interessassem pelo tema durante muito tempo, uma vez que os setores sociais, diante da multiplicidade de causas, não viam isso como um tema a ser incorporado em seu debate.”
Adiante, a professora afirmou que ainda precisamos consolidar a política de prevenção, pois as respostas reativas e imediatistas são mais frequentes. “Precisamos construir um paradigma de segurança que incorpore a repressão e a Justiça criminal quando forem necessárias, mas que também contemple a ideia de que cidadania plena é essencial. Se não pensarmos a ideia de repressão, incorremos no risco de promover uma dupla vitimização dos grupos vulneráveis, sujeitos, por um lado, ao controle de grupos ligados ao crime organizado e privados, por outro lado, do direito à proteção policial preparada e equipada. O modelo ainda constitui um desafio, pois é injusto – e não podemos mais olhar para as periferias das grandes cidades com olhar estigmatizante, com potencial envolvimento com o crime.”
Paula Miraglia pontuou, a seguir, que os mesmos desafios de continuidade enfrentados e resolvidos pelo Canadá e pela França estão colocados para o Brasil. Nesse sentido, preconizou a importância de um debate orientado pela racionalidade e não pela ideologia polarizada entre direita e esquerda. “Pensar políticas sustentáveis de segurança pública que estejam calcadas num planejamento de longo prazo, porque isso implica em gastos de recursos gigantescos que a nossa tradição política costuma não aproveitar em gestões subsequentes”.
A professora também mencionou a diversidade de polícias intrafronteiras no Brasil (Guarda Municipal, Polícia Civil, Militar e Federal), em comparação com o serviço genérico de polícia no Canadá e na África do Sul. “Nesses países, a polícia não é entendida como uma força policial, mas como um serviço social inserido em um conjunto de políticas públicas”, observou. Mencionou, ainda, problemas endêmicos, como alta de taxa de letalidade da ação policial, baixa taxa de esclarecimento de homicídios e precariedade da cultura da informação e do esclarecimento, que impedem a formulação de uma política eficaz de segurança pública.
A professora falou, ainda, da necessidade de institucionalização das políticas de segurança pública. “Estamos começando a pensar as estratégias políticas de prevenção urbana. Entretanto, as constantes mudanças políticas impedem a continuidade dos projetos”, observou. Citou, como exemplo, o “Programa Nacional de Segurança com Cidadania” (Pronasci), plano elaborado no governo Lula, que não teve continuidade.
Finalmente, a professora falou sobre a herança cultural de investimento privado em estratégias de segurança, o que, em sua opinião, fragmentou ainda mais o nosso repertório de soluções para aquilo que considera um tema público, um bem público que demanda soluções coletivas. “Enquanto não introjetarmos pelo menos a utopia de que vivemos em uma única cidade e que a segurança da cidade é um problema de todos, não conseguiremos implementar políticas de segurança efetivamente bem sucedidas”.
ES (Texto e foto)