Flavia Piovesan faz palestra na EPM sobre as conquistas na proteção internacional aos direitos da mulher

“Como compreender o direito internacional das mulheres? Qual o alcance da proteção internacional dos nossos direitos?”. Com estas indagações, a procuradora do Estado e professora Flavia Cristina Piovesan iniciou a palestra “Os direitos da mulher e a necessidade da perspectiva de gênero”, ministrada na EPM, no dia 25 de março. A aula fez parte do curso Temas controvertidos dos direitos humanos e contou com a participação da coordenadora, juíza Camila de Jesus Mello Gonçalves.

 

Flavia Piovesan salientou, preliminarmente, que ainda há uma grave violação aos direitos da mulher e relatou, como caso emblemático, a morte de Aline Pimentel, de 27 anos, aos seis meses de gestação, na periferia do Rio de Janeiro. O episódio foi levado ao conhecimento do comitê da “Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher” (Cedaw) da ONU, em 2011, que condenou o Brasil ao pagamento de indenização por negligência do serviço público de saúde. “Foi a primeira condenação internacional do Brasil em razão de morte materna”, ressaltou.

 

Ela observou, em seguida, que o arcabouço dos direitos humanos das mulheres reflete, ao longo de seu desenvolvimento, as diversas feições e vertentes do movimento feminista. “Não traduzem uma história triunfal, mas refletem as ações e lutas emancipatórias na busca pela proteção à dignidade e prevenção ao sofrimento humano. Nesta perspectiva, reivindicações como o direito à igualdade formal, à liberdade sexual e reprodutiva, o fomento da igualdade econômica, a redefinição dos papéis sociais e o direito à diversidade, em sua perspectiva de raça e etnia, dentre outras, foram sendo incorporadas gradualmente pelos tratados internacionais”, explicou.

 

A seguir, discorreu sobre o movimento de internacionalização dos direitos humanos, iniciado no pós-guerra e impulsionado pelo aumento das reivindicações normativas da sociedade internacional. Ela explicou que a nova perspectiva da Declaração Universal de 1948, em resposta às perguntas “quem tem direitos?”, “por que direitos?” e “quais direitos?” declara, em uma dimensão holística, que toda e qualquer pessoa tem direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, porque estes constituem valores intrínsecos à condição humana.

 

De acordo com Flavia Piovesan, é esse posicionamento filosófico que inspira toda a arquitetura protetiva internacional aos direitos humanos. “A universalidade, a indivisibilidade, a interdependência e ética dos direitos humanos traduz a ética da alteridade, ver no outro um ser igual, merecedor de consideração e respeito, dotado do direito de desenvolver suas potencialidades de forma livre, autônoma e plena. Se observarmos, ao longo da história, as mais perversas e graves violações aos direitos humanos tiveram como radical a dicotomia do eu versus o outro, quando foi visto como um não humano ou como um ser apequenado em direitos e dignidade. Essas práticas de intolerância são comuns à escravidão, ao holocausto nazista, ao sexismo, à homofobia, à xenofobia e à violência contra idosos e crianças.”

 

A professora afirmou, ainda, que os estudos são convergentes ao apontar um componente cultural da intolerância: “Ela decorre de relações assimétricas de poder entre homens e mulheres, de relações historicamente construídas de forma desigual.”

A conquista da condição de sujeito de direito

 

Flavia Piovesan enfatizou que a primeira vertente dos direitos humanos foi orientada pela tônica da proteção geral, genérica e abstrata, correspondente à noção de igualdade formal. “O destinatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto de Direitos Civis e Políticos, do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Naturais é esse ente geral e abstrato”, pontuou.

 

Já a segunda vertente, inspirada no processo de especificação do sujeito de direito, caracteriza-se pela transição para o ente específico, tomado em suas peculiaridades. “Somamos o direito à redistribuição – que tem como desafio debelar a injustiça social e econômica – e o direito de reconhecimento às identidades – que tem como desafio debelar a injustiça cultural, a injustiça dos preconceitos, das discriminações, das hostilidades. Emerge, assim, o direito à diferença, ao reconhecimento de identidades específicas, e isto é capaz de refletir a voz crescente do movimento feminista, sobretudo nas suas vertentes críticas e multiculturalistas”, observou.

 

A professora mencionou a Declaração de Viena, de 1983, subscrita por 171 estados, cujo parágrafo 18 reconhece como parte inalienável, integral e  indivisível dos direitos humanos universais os direitos humanos das mulheres. “Como lembrava o Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem), sem as mulheres os direitos não são humanos, pois não há como negar o direito de metade da população mundial”, observou. E afirmou que, a mirada retrospectiva para o período pós-década de 70 revela jamais ter havido um grupo social que conquistasse tanto num período histórico tão curto. “A grande revolução do século XX foi a das mulheres”, ressaltou.

As frentes de luta da mulher pela afirmação do Direito

 

Em seguida, discorreu sobre as agendas essenciais à construção dos direitos humanos das mulheres: o combate à discriminação e à violência e a afirmação de seus direitos sexuais e reprodutivos. “Em 1979 foi adotada a convenção da ONU sobre a inação de todas as formas de discriminação contra a mulher, com adesão de 187 estados em 2013. Esta convenção nasceu em razão de uma reivindicação das mulheres, numa conferência havida no México, em 1975, em que clamavam por uma plataforma internacional de proteção aos seus direitos. Ela só perde em grau de adesão para a convenção das crianças, que tem 192 estados pares (de um total de 200).

 

A seguir, apontou aquilo que considera um paradoxo: “Ao mesmo tempo que essa convenção é a segunda em maior grau de adesão, também é recordista em reservas, que são declarações unilaterais formuladas por estado no sentido de afastar a incidência de dispositivos da convenção, alterar ou modificar o seu alcance.” Relatou que o Brasil, quando a ratificou em 1984, fez reservas que tinham por alvo os artigos 15 e 16, que estabelecem a igualdade entre homens e mulheres na família, sob a justificativa de que o Código Civil, à época de 1916, previa que o homem era o chefe da sociedade conjugal, um modelo patriarcal de família incompatível com a igualdade de gênero pregada pela convenção. Disse, ainda, que países como Índia e Egito também urdiram reservas quanto à igualdade entre homens e mulheres sob os argumentos jurídico, cultural ou de cunho religioso.

 

Sob outro aspecto, Flavia Piovesan observou que a história da construção dos direitos da mulher guarda relação com a dicotomia entre os espaços público e privado, em que foram criados papéis sociais atribuindo às mulheres a esfera doméstica, ao passo que foi atribuído aos homens os papéis da esfera pública. “O que ocorre, desde a década de 1970, é a conquista do espaço público pelas mulheres. Mas o aspecto dramático é que essa democratização crescente não ocorreu na esfera privada”, salientou.

Os marcos legislativos da proteção à mulher

 

A professora afirmou, em seguida, que a Convenção da ONU incorpora duas vertentes: a da repressão política, em que os estados são obrigados a adotar marcos jurídicos proibitivos da discriminação contra a mulher, e a da vertente positiva promocional da igualdade com ações afirmativas especiais e temporárias, como as cotas para equilíbrio entre os gêneros no campo eleitoral. “Estas vertentes devem ser vistas pelo prisma retrospectivo, ou seja, de como aliviar e remediar a carga de um passado discriminatório, mas também pelo prospectivo, de como transformar uma realidade discriminatória”, observou.

 

De acordo com ela, dentro dos parâmetros protetivos à mulher, a agenda do combate à violência é um tema tabu. “Tanto que a Convenção da ONU não o explicitou, possuindo apenas uma declaração adotada em 1993. Contudo, na sua jurisprudência (Recomendação geral nº 19 do Comitê) afirma que a violência contra a mulher é uma forma de discriminação, e que a violência doméstica é uma de suas formas mais insidiosas, prevalente em todas as sociedades como fenômeno epidêmico generalizado. E a dependência econômica ainda faz com que mulheres permaneçam em situações violentas”, revelou.

 

Quanto à evolução da legislação nacional de proteção às mulheres, recordou que a primeira convenção específica é a de Belém do Pará, voltada à prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher, ratificada pelo Brasil. “Esta convenção reconhece que a violência contra a mulher na esfera pública e privada constitui grave violação aos direitos humanos e limita, total ou parcialmente, os demais direitos. A violência contra a mulher é, assim, definida como qualquer ação baseada no gênero”, esclareceu.

 

A professora citou decisões paradigmáticas de ações sob o argumento da omissão estatal no combate à violência contra a mulher, proferidas pela Comissão Interamericana. Entre estas, o caso Maria da Penha, levado à corte pela vítima, pelo Cladem/Brasil e pelo Centro pela Justiça e Direito Internacional (Cejil). Esclareceu que a ação resultou, de forma inédita, na condenação do Brasil por negligência e tolerância estatal no trato da violência contra a mulher, a efetuar o pagamento de uma indenização e a modificar a sua ordem jurídica, já que se colocava em posição de isolamento, pois era o único país da América Latina que não dispunha de legislação específica para o combate à violência contra a mulher.

 

“Há todo um cuidado da comunidade internacional para que os estados não sejam negligentes, tolerantes ou omissos com a violência contra a mulher. Não podemos aceitar que, ademais de sofrer a violência no âmbito doméstico, a mulher sofra a violência institucional pela incapacidade do Estado. A ONU e a OEA tem clamado aos estados para que adotem diligências, providências e medidas para a implementação das leis que trazem a prevenção e a repressão à violência contra a mulher. Resoluções do Conselho de Direitos Humanos da ONU, de 2002, 2009 e 2010 preocuparam-se em acelerar medidas para eliminar toda e qualquer violência contra a mulher”, informou Flavia Piovesan.

 

De acordo com a professora, “o tema mais complexo dessa agenda é a afirmação dos direitos sexuais e reprodutivos. Não temos convenção específica sobre esse tema, mas a Conferência do Cairo, de 1994, de maneira inédita e de acordo com a vontade política de 184 estados, reconhece os direitos sexuais e reprodutivos como Direitos Humanos”.

 

Ela ponderou que, na perspectiva das relações equitativas entre os gêneros, os direitos sexuais e reprodutivos envolven duas vertentes. A primeira delas aponta o campo da liberdade, da autodeterminação. Compreende o livre exercício da sexualidade e da reprodução sem discriminação, coerção ou violência. Por outro lado, o efetivo exercício desse direito demanda políticas públicas para a implementação e acesso a meios e recursos seguros para a saúde sexual e reprodutiva. “No que se refere à questão controvertida do aborto, há uma orientação internacional para que os estados tratem esse tema como questão prioritária de saúde pública, revisando as legislações punitivas”, informou.

 

A seguir, a professora ressaltou a importância do princípio da laicidade estatal para o debate (previsão no artigo 19 da Constituição Federal), que, em seu entendimento, consiste em “separar o sagrado do profano, a razão pública e secular dos dogmas religiosos e sagrados.”

 

Ela discorreu, finalmente, sobre os avanços da Constituição Brasileira no que refere à igualdade entre homens e mulheres. “Os avanços internacionais influenciaram a luta no âmbito nacional. O movimento de mulheres catalisa as forças e amplia as suas estratégias de luta, exigindo a implementação das conquistas e dos ganhos internacionais na agenda doméstica.”

 

Flavia Piovesan afirmou, em prosseguimento, que a Constituição de 1988 simboliza um triunfo para o movimento das mulheres, pois este exerceu papel fundamental nas mudanças legislativas e sociais no território das desigualdades e proposição de políticas públicas. E enumerou os avanços da carta magna sobre o tema: “a par dos desafios e estratégias para implementação, ela reconhece a igualdade em direitos e obrigações de homens e mulheres em seu artigo 5º, inciso I; reconhece, no artigo 226, § 5º, a igualdade entre homens e mulheres no campo da família; reconhece a união estável como entidade familiar; proíbe a discriminação no mercado de trabalho por motivo de sexo ou estado civil;  prevê proteção especial para a mulher no mercado de trabalho no artigo 7º, inciso XX; prevê dever do estado em coibir a violência nas relações familiares no  artigo 226, § 8º; consagra o planejamento familiar como livre decisão do casal, devendo o estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito.”

 

ES (texto e foto)


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