Aspectos polêmicos das ações afirmativas são debatidos na EPM
A secretária municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo, Luciana de Toledo Temer Castelo Branco, ministrou ontem (1º), a aula “As ações afirmativas: consolidação da igualdade ou reforço ao preconceito?” na EPM. A palestra fez parte do curso Temas controvertidos dos direitos humanos e teve a participação da juíza Maria Cláudia Bedotti.
Nas considerações preliminares, Luciana Castelo Branco fez uma retrospectiva histórica sobre a construção do conceito de igualdade no Direito. Ela discorreu sobre a transição da noção de igualdade formal e abstrata, presente nas primeiras declarações internacionais de direitos, para a igualdade material em seus aspectos distributivo, de natureza socioeconômica, e de reconhecimento de identidades e diferenciações da pessoa humana. Citou, ainda, uma terceira geração de direitos, em que as relações sociais lastreadas no amplo espectro do conceito de igualdade associam-se ao direito à paz e à preservação do meio ambiente.
“Nesta perspectiva, cabe ao Estado tanto coibir através da sanção as práticas discriminatórias quanto empreender ações promocionais para a implementação do direito à igualdade entre gêneros, etnias e idades. As políticas de proteção do direito à igualdade comportam, assim, as vertentes punitiva e promocional. Transitamos, sem o excluir, do conceito do Direito que não deve desigualar para aquele em que deve desigualar quando necessário para atingir os objetivos da Justiça social”, afirmou.
De acordo com a professora, a segunda geração de direitos, caracterizada por seus aspectos econômicos, sociais e coletivos foi inaugurada doutrinariamente pela Constituição mexicana de 1917, e depois consolidada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, de 1948. E é nesta perspectiva que se inserem as ações afirmativas.
Ela ensinou que, a partir da construção do conceito de igualdade no Estado Liberal, surgiram declarações internacionais de direitos humanos que preveem o combate à discriminação e guardam relação direta com as ações afirmativas: a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965, ratificada por 170 estados, entre os quais o Brasil, em 1968; a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, ratificada pelo Brasil em 1984; e a Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, celebrada na Guatemala em 1999 e ratificada por decreto no Brasil em 2001. “Todos esses instrumentos preveem o aspecto repressivo-punitivo e o promocional, porque não basta ao Estado punir a discriminação. É necessário que promova o ser discriminado”, observou.
Os contornos das ações afirmativas na conjuntura brasileira e sua necessidade
Em relação ao Brasil, Luciana Castelo Branco afirmou que “a Constituição Federal vem consolidar as ideias de igualdade formal e material, de admissão e reconhecimento de realidades diversas que precisam ser protegidas para além da desigualdade socioeconômica das minorias que precisam, historicamente, ser protegidas.” Entre os dispositivos, citou o artigo 5º, que traz a regra da igualdade formal, e os incisos que tratam da sua regulamentação. Também citou o artigo 3º, inciso I, que traz como objetivo da República construir uma sociedade livre, justa e solidária; o inciso III, que traz o objetivo de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e o inciso IV, cuja finalidade é promover o bem de todos sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
A seguir, discorreu sobre a natureza das ações afirmativas nos dispositivos constitucionais. Mencionou os incisos I e X do artigo 5º, que tratam, respectivamente, do reforço da igualdade de gênero e do combate à pobreza e às causas da discriminação, promovendo a integração social nos setores desfavorecidos; o artigo 145, de natureza fiscal, que prescreve a obrigatoriedade de observar a capacidade contributiva de cada um; e os princípios da ordem econômica que visam a redução das desigualdades econômicas e sociais, elencados no artigo 170.
No âmbito do reconhecimento de identidades, no que diz respeito à proteção das mulheres, a professora mencionou o artigo 7º, que estabelece como direito das trabalhadoras, no inciso XVIII, a licença-gestante sem prejuízo do emprego; a proteção ao mercado de trabalho, no inciso XX; a proibição de diferença de salário, de exercício de função e de critérios de admissão, como sexo, cor e estado civil. Citou, ainda, o artigo 143, que dispõe sobre a isenção do serviço militar, e a previsão de aposentadoria da mulher com antecedência de 5 anos em relação aos homens, no inciso I do artigo 202.
“Outro grupo bastante protegido pela Constituição é o das pessoas com deficiência”, ressaltou. E mencionou a proibição de discriminação dessa espécie de trabalhadores quanto a salário ou outros benefícios. Lembrou, ainda, a competência concorrente dos entes da Federação para a sua proteção e integração social; o dever de reserva de percentual de cargos e empregos públicos para essas pessoas e os critérios para sua admissão; a diferenciação em relação à aposentadoria; a garantia de um salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprove não ter meios de prover a própria manutenção (artigo 203); a criação de programas de prevenção e atendimento especializado para pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou mental; e a interdição de impedimentos arquitetônicos para acesso a essas pessoas.
Adiante, comentou a proteção constitucional aos negros, com destaque para o artigo 5º, que prevê que a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível. Falou, ainda, da proibição de salários diferenciados e citou os textos legais que fortaleceram e deram operacionalidade aos dispositivos constitucionais em benefício desse grupo, quais sejam, a Lei 9.459 e depois a Lei 8.081.
Ainda no tema do reconhecimento de identidades, Luciana Castelo Branco referiu, finalmente, a proteção aos índios, através da prescrição do dever de ensino a esse grupo populacional em sua língua materna.
Ao falar sobre ações afirmativas que podem ser consideradas derivadas do texto constitucional, a professora citou algumas que tiveram sua constitucionalidade questionada e foram declaradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF): as cotas raciais para as universidades públicas, as cotas sociais do Prouni, que beneficiam alunos egressos das escolas públicas em universidades particulares, as cotas para mulheres nos partidos políticos (30%, na legislação atual). “Lançado em 2004, o Prouni havia beneficiado, até 2012, 927.317 alunos com bolsas integrais e 740 mil com bolsas parciais”, informou.
Quando ao eventual papel de reforço ao preconceito das ações afirmativas, Luciana Castelo Branco afirmou: “não me parece que as ações afirmativas tenham acirrado o racismo disfarçado que subjaz na sociedade brasileira; elas constituem explicitações de situações concretas e representam o seu enfrentamento”.
A professora comentou, ainda, o empreendimento das ações afirmativas para o combate ao uso do crack e recuperação dos usuários no município de São Paulo, através da Secretaria que ela coordena, e que consiste na oferta de remuneração pelo trabalho de varrição de ruas, hospedagem em hotel, alimentação e tratamento médico voluntário para pessoas que vivem em situação de miserabilidade no entorno da Estação da Luz, cuja capacidade é de 400 matrículas.
Acerca da inter-relação étnica e socioeconômica que justifica o conjunto das ações afirmativas, informou que 80% dos usuários de crack são pobres e não brancos, segundo levantamento feito em parceria pelos Ministérios da Justiça e da Saúde. “De acordo com o último senso, existem 15 mil pessoas em ‘situação de rua’. No âmbito ampliado das ações afirmativas da Secretaria, então, o objetivo é tirar as pessoas da situação de penúria, mediante oferta de abrigo, alimentação, tratamento médico e, ainda, celebração de convênio com comerciantes para oferta de emprego”, observou.
Natureza, avanços e limites das ações afirmativas
No que tange à natureza das ações afirmativas, a professora ponderou que refletem uma cultura em transformação, tendo, portanto, caráter temporário. “Servem para a implementação e construção cultural dos direitos humanos e para promover a diminuição da desigualdade real. Atingidos seus objetivos, perdem sua necessidade e utilidade”. Também afirmou que são sempre polêmicas e, em princípio, objeto de ações de inconstitucionalidade.
Acerca da sua necessidade, apresentou estatísticas de sua utilização por mulheres no Brasil e no mundo, e também pelos negros e indígenas, além de levantar algumas questões. “No Brasil, a desigualdade é eminentemente social e econômica e o índice de desigualdade de gêneros é altíssimo. Embora a miséria atinja negros e brancos indistintamente, as pesquisas demonstram que, quando começam a ascender socialmente, o processo é mais difícil para o negro do que para o branco nas mesmas condições socioeconômicas”, observou.
Em relação aos direitos das mulheres, observou que as ações afirmativas antecedem a Constituição no processo de emancipação feminina e lembrou a previsão de reserva de bens no Estatuto da Mulher Casada, de 1962, justificada pela desigualdade de gênero no mercado de trabalho. Citou, ainda, relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que reafirmou a dupla jornada de trabalho das mulheres, cuja média mensal supera em 20 horas a masculina, pois 90,7% delas mantém atividades domésticas contra 49% dos homens. Mencionou, por fim, “a imensa disparidade salarial entre homens e mulheres que ocupam o mesmo cargo”, segundo relatório do Fórum Econômico Mundial, de 2011. “Esses dados ainda justificam, culturalmente, a necessidade de ações afirmativas para a proteção das mulheres”, ponderou.
Durante os debates, afirmou a pertinência e a necessidade da intervenção do Judiciário nos casos de lacunas legislativas e de ausência de políticas públicas para graves problemas sociais, como o aborto de fetos anencéfalos e o fornecimento de medicamentos no sistema público de saúde.
Interpelada quanto à necessidade de cotas raciais para cargos públicos na situação hipotética de concorrentes com a mesma formação educacional, adotou a ponderação de uma aluna, no sentido de que as cotas raciais e étnicas deviam ser vistas na perspectiva da garantia de representação plural e democrática nas instituições públicas.
ES (texto e foto)