Francisco Rezek fala sobre soberania nacional e autoridade das jurisdições internacionais na EPM

O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal e das Relações Exteriores José Francisco Rezek proferiu, no último dia 8, a palestra “Soberania nacional e autoridade das jurisdições internacionais: problemas emergentes” no 1º Curso de Direito Internacional da EPM.  

 

A aula teve a participação dos coordenadores da área de Cursos e Convênios Internacionais da EPM, desembargadora Christine Santini, representando o diretor da Escola, e juiz Marcus Vinicius Kiyoshi Onodera; dos juízes Fernanda Galizia Noriega, coordenadora do curso, e Mário Sérgio Leite, assessor da Presidência do TJSP e professor assistente do curso; e do professor Manuel Nabais da Furriela.

 

Francisco Rezek iniciou sua exposição recordando a tentativa de suspensão das obras da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, em abril de 2011, sob a alegação de proteger as comunidades indígenas locais, por meio de medida cautelar concedida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão sediado em Washington (EUA), que exerce função pré-jurisdicional da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sediada em São José (Costa Rica).

 

Ele salientou que o episódio – ocorrido após a matéria já ter sido decidida pelo Supremo Tribunal Federal – levou a comunidade jurídica brasileira a uma profunda reflexão: “A quem um país soberano se submete quando aceita a jurisdição internacional de um órgão como esse do chamado ‘Sistema Interamericano Proteção aos Direitos Humanos’? Isso é ou não uma renúncia à soberania e ao exercício da soberania pelos poderes constituídos?”, indagou, frisando que, mais do que um problema de soberania nacional, a questão envolve a legitimidade democrática: “Os juízes de São José da Costa Rica e os comissários de Washington não foram eleitos pelo povo brasileiro para governar ou legislar, nem foram investidos pelo sistema brasileiro de aferição de mérito, na função judiciária”.

 

O palestrante recordou que, em 1998, o Brasil se submeteu à jurisdição da Corte de São José da Costa Rica e à competência fiscalizatória da Comissão sediada em Washington, contrariando a sua tradição: “Durante toda a sua história, o Brasil se manteve à margem da competência obrigatória de tribunais internacionais”, frisou. Lembrou, nesse sentido, que, por ocasião da ratificação do texto da Convenção de São José da Costa Rica – iniciada durante sua gestão no Ministério das Relações Exteriores e consolidada em 1992 –, havia uma consciência de que isso não significava virtualmente nada, porque o Brasil já estava sob a vigência da Constituição de 1988: “Não há nada que exista em Direito Internacional que possa acrescentar algo à inesgotável lista de direitos e garantias da Constituição brasileira”, ponderou.

 

Atuação da Corte de Haia

 

Em seguida, Francisco Rezek discorreu sobre a Corte Internacional de Justiça (CIJ), sediado em Haia, tribunal que integrou durante nove anos. Ele recordou que, embora a Corte tenha sido implantada apenas em 1946, a ideia de criação de um órgão judicial transnacional, com jurisdição obrigatória para todos os países, teve origem na década de 1920, na Europa. “Era difícil imaginar, então – como ainda é –, uma competência de uma jurisdição internacional à qual um Estado soberano pudesse ser chamado e devesse obrigatoriamente comparecer, porque outro Estado soberano assim o desejasse”.

 

Ele chamou a atenção para a horizontalidade que ainda hoje marca a sociedade internacional e as dificuldades decorrentes para a construção do Direito Internacional: “Nenhum Estado soberano é naturalmente e congenitamente jurisdicionado de tribunal nenhum. Só o consentimento pode fazer com que um tribunal internacional pretenda chamar à sua barra o Estado”.

 

Nesse contexto, recordou a criação, pela Corte de Haia, da “cláusula facultativa de jurisdição obrigatória”, também conhecida como “cláusula Raul Fernandes“, em homenagem ao diplomata brasileiro que a idealizou. “Os países que assinam a cláusula submetem-se à jurisdição da corte, em base de reciprocidade”, esclareceu. Ele observou que, dos 192 países da ONU, apenas entre 58 e 65 são signatários da Corte, tendo em vista que a cláusula pode ser assinada por tempo determinado ou com limitações temáticas, excluindo certas matérias.

 

O palestrante salientou que o Brasil sempre se manteve à margem da cláusula Raul Fernandes – exceto por um curto período –, sob o argumento de que o país possui um contencioso internacional muito rarefeito e que os poucos episódios importantes, ocorridos ainda no final do século XIX, foram resolvidos por diplomacia ou arbitragem. “Como se explica, então, que um país que valorizou tanto a sua ideia de soberania, a ponto de ter se mantido à margem da Corte de Justiça da ONU, tenha se submetido à jurisdição da Corte de São José da Costa Rica? Ou que um país que, aparentemente, não aceita a ideia de que outra bandeira soberana possa processá-lo em Haia, aceita que particulares ou ONGs o processem?”, indagou.

 

Complementando sua explanação, o ministro chamou a atenção para a diferença entre a atuação da Corte de Haia e da Corte Interamericana de Direitos Humanos: “A Corte de Haia julga demandas entre soberanias. Só pode proferir sentença contra um Estado soberano quando esse, além de ter aceito a sua jurisdição, esteja diante de uma reclamação posta contra ele por outra soberania, portanto em uma hipótese de competência internacional”, explicou, frisando que a questão não pode ser decidida por um juiz ou tribunal doméstico de um dos países.

 

Em relação à atuação dos tribunais e comissões do Sistema Interamericano Proteção aos Direitos Humanos, Francisco Rezek  destacou o já mencionado problema de soberania e legitimidade democrática: “Isso ocorre porque pretendem se sobrepor à jurisdição nacional dos países envolvidos em casos que são da óbvia competência desses países”, frisou, citando o episódio de Belo Monte ou a Ação Penal 470, ponderando que, no caso de eventual representação dos réus à Comissão, o resultado seria imprevisível. “Isso volta a nos colocar diante desse dilema e dessa perplexidade: a que teremos sido levados quando o Brasil – que não se submete à jurisdição de Haia – se submeteu à jurisdição de São José da Costa Rica, considerando que temos aí uma jurisdição procurável por particulares e cuja competência visivelmente concorre e possivelmente pretende sobrepor-se à competência de tribunais nacionais, no que se distingue radicalmente da Corte de Haia, que só julga contenciosos entre soberanias”, concluiu.


O Tribunal de Justiça de São Paulo utiliza cookies, armazenados apenas em caráter temporário, a fim de obter estatísticas para aprimorar a experiência do usuário. A navegação no portal implica concordância com esse procedimento, em linha com a Política de Privacidade e Proteção de Dados Pessoais do TJSP