EPM inicia o seminário “Marco Civil da Internet”
Os aspectos gerais da Lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet) na visão dos prestadores de serviços e dos consumidores foram analisados ontem (4) na EPM, na abertura do seminário Marco Civil da Internet. O evento teve como expositores os professores Veridiana Alimonti, advogada do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), e Marcel Leonardi, ombudsman do Google, e contou com a participação do desembargador Luís Francisco Aguilar Cortez, coordenador do seminário.
Coube a Veridiana Alimonti a apresentação de um panorama da Lei 12.965/14, aprovada pelo Congresso em março e sancionada pelo Senado em abril deste ano. Conforme definido por ela, a lei “inspirada em princípios fundamentais do uso e da governança na internet, garante direitos essenciais do usuário, busca o equilíbrio entre diferentes direitos que perpassam a utilização da rede mundial e amplia a segurança jurídica, na medida em que estabelece procedimentos para uma série de questões que o Judiciário já vinha enfrentando há muito tempo sem uma lei específica.”
A palestrante discorreu sobre a dimensão social da legislação, “paradigmática em termos de regulação democrática para a internet e pela forma como foi construída”, sobre o histórico de sua construção e seus antecedentes jurídicos e sobre os princípios, valores, responsabilidades e direitos que a norteiam. E destacou como antecedente o projeto de Lei 84/99, conhecido como Lei Azeredo. Conforme recordou, foi esse projeto, enviado à Câmara dos Deputados com disposições bastante restritivas, que mobilizou a sociedade civil para a discussão sobre o tema.
De acordo com Veridiana Alimonti, a reivindicação de princípios e direitos na utilização da rede veio em contraposição a uma regulação da internet com foco na repressão às condutas do usuário. Nesta perspectiva, disseminou-se o entendimento de que, antes de tipificar como crime o que não deve ser feito na rede mundial, é necessário estabelecer os princípios de utilização, os direitos e as responsabilidades civis daqueles que atuam na prestação desses serviços. E lembrou ter sido esta ideia que mobilizou o espírito participativo da sociedade civil e levou à realização de duas fases de uma consulta pública inovadora, on line, entre 2009 e 2010, pelo Ministério da Justiça, através da Secretaria de Assuntos Legislativos, com a parceria do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV do Rio de Janeiro. Dessa consulta resultou uma proposta, encaminhada ao Congresso em 2011, a qual deflagrou um intenso debate até a redação do projeto de lei.
Ao falar sobre a defesa do usuário no mundo digital, a professora destacou a necessidade de se entender a mudança de comportamento que ocorre ao se manejar ferramentas de informática para acessar bens culturais, produtos, serviços e cidadania. Explicou que há uma alteração de velocidade de consumo e de redimensionamento da condição de consumidor, pois não se trata mais de alguém que apenas recebe bens e serviços, mas também de um criador ou colaborador em relação à informação.
Em prosseguimento, salientou a importância atribuída pela legislação à proteção de dados pessoais, considerados como uma das principais moedas de troca na prestação de serviços na internet. “Se o Código de Defesa do Consumidor já se preocupava com a regulação do banco de dados, principalmente no que se refere à proteção ao crédito de forma ampla, a maneira como se pode coletar, armazenar e tratar os dados também se colocou como preocupação central na regulação da internet. Reconhecida como legislação em diálogo com a legislação consumerista, ela traz os princípios da ordem econômica como um dos seus fundamentos, e diz claramente que o acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania e que a aplicação das normas de proteção e defesa do consumidor são asseguradas ao usuário e poderão ser exercidas em juízo individual ou coletivamente”, ensinou.
Adiante, destacou os pontos cruciais para a proteção do consumidor no Marco Civil da Internet, quais sejam, a privacidade e proteção de dados, a neutralidade da rede, a liberdade de expressão e o acesso à informação compatibilizada e equilibrada com a proteção contra a violação de direitos com conteúdos on line. E definiu a neutralidade como o tratamento isonômico dos pacotes de dados e livre acesso às informações que trafegam na rede, sendo vedado na provisão de conexão onerosa ou gratuita à internet, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, bloquear, monitorar, filtrar ou analisar conteúdo dos pacotes de dados.
Em relação à disciplina do direito à informação, Veridiana Alimonti ressaltou a importância do disposto no artigo 7º da Lei 12.965/14, que traz a obrigatoriedade de fornecimento de informações claras e completas nos contratos de prestação de serviços aos consumidores, com detalhamento sobre o regime de proteção aos registros de conexão e de acesso a aplicações na internet, bem como sobre as práticas de gerenciamento da rede que possam afetar sua qualidade. Além disso, informou que o dispositivo estabelece o princípio da finalidade, o qual obriga o fornecedor a dar informações claras sobre a coleta, o uso, o armazenamento, o tratamento e a proteção dos dados pessoais, que somente poderão ser usados para finalidades que justifiquem sua coleta, mediante consentimento expresso e prévio do consumidor.
A lei também prevê a necessidade de prévio consentimento do consumidor para o compartilhamento de seus dados pessoais com terceiros e garante o direito de solicitação de exclusão de dados pessoais pelo consumidor após o término da relação consumerista. Estabelece, igualmente, a obrigatoriedade da guarda dos registros de acesso pelo prazo de um ano e dos registros de aplicações pelo prazo de seis meses. Esses prazos poderão ser ampliados mediante requisição da autoridade policial, do Ministério Público ou por ordem judicial.
Veridiana Alimonti também comentou a inserção do artigo 11, após as recentes denúncias internacionais de violação do sigilo de comunicações de personalidades políticas, o qual estabelece a obrigatoriedade do respeito à legislação brasileira e aos direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, dados pessoais ou de comunicações, em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional.
Discorreu, ainda, sobre o artigo 19 do Marco Civil, que traz o regime geral da responsabilização dos intermediários da veiculação de conteúdos na rede, restringindo a responsabilização do provedor por danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiro apenas aos casos em que, notificado por ordem judicial, não tornar indisponível a publicação de conteúdo apontado como infringente. Comentou, finalmente, o artigo 21, que traz a proibição da violação da intimidade decorrente da divulgação sem autorização dos participantes de imagens, de vídeos, ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado.
Marcel Leonardi, por sua vez, discorreu sobre a aplicação prática da lei pelos operadores do Direito. Ressaltou que a compreensão da importância do Marco Civil da Internet reside na ideia da sua criação, qual seja, trazer um sistema que apresentasse garantias de direitos para os usuários. Mas, acima disso, afirmou que “ele traz um norte, um sistema de segurança jurídica para o juiz ter embasamento para decidir com mais correção e não mais precisar recorrer a analogias com os princípios gerais do Direito.”
Adiante, comentou que a regulação do uso da internet no Brasil chegou tarde. “No Direito comparado, a regra sobre a questão das plataformas, a responsabilização após uma ordem judicial, teve origem nos EUA e Europa há quase vinte anos. Logo se percebeu que essas plataformas mudavam completamente a sistemática da comunicação. A imprensa tradicional, os veículos de imprensa de uma maneira geral partem da lógica de que se edita primeiro e publica-se depois, ao contrário das plataformas digitais, que não têm essa característica. Elas dão ao usuário ferramentas abertas, na qual ele publica o que desejar”, ponderou.
E discorreu sobre os temas polêmicos acerca do uso na internet, debatidos à época no mundo inteiro, e que ensejaram a legislação nos EUA e Europa. Em seu desdobramento analítico, comparou as regras da proteção de dados e à privacidade do usuário no Marco Civil com os princípios que orientam as legislações internacionais comentadas, e esclareceu o papel, as atividades e operações dos provedores de conexão e de acesso, bem como a forma como poderão ser rastreados, através do cruzamento de informações, os responsáveis pela inserção de conteúdos.
Concluiu afirmando que “o usuário hoje passou a ter prerrogativas de preservação de sua privacidade. Nada, a priori, está proibido, desde que o usuário consinta, mas a maneira de obtenção do consentimento e como isso tem de ser demonstrado e, eventualmente, provado pelas empresas, é que ficou mais detalhada, devendo ser bem estudada para que a empresa não cometa nenhum erro e eventualmente tenha algum problema consumerista no Judiciário brasileiro”.
Sem perder de vista a importância e a complexidade interpretativa que a nova legislação coloca para os magistrados – e desconstruindo o mito da internet como uma “terra sem lei” –, o palestrante comentou que o grande desafio da internet nunca foi a falta de lei, pois o Direito material dos códigos sempre foi aplicável às condutas no meio virtual, mas sim a efetividade das normas diante da novidade de fenômenos desconhecidos do Judiciário.
Realizado presencialmente e a distância, o seminário prossegue no próximo dia 11, conforme a programação abaixo:
Dia 11/8
Tema: Neutralidade da rede. Armazenamento de Dados. Segurança dos usuários e prova técnica. Os riscos decorrentes da criminalidade e da super vigilância da rede
Palestrante: professor Carlos Affonso Pereira de Souza
Dia 18/8
Tema: O Marco Civil e a internet como espaço público de informação e mobilização. Liberdade de expressão e democracia participativa. Proteção a direitos fundamentais: direito ao esquecimento e interesse público
Palestrante: professor Oscar Vilhena Vieira
Dia 25/8
Tema: Proteção aos direitos intelectuais. A responsabilidade pelo conteúdo disponibilizado e sua retirada. Encerramento
Palestrante: desembargador Enio Santarelli Zuliani
ES (texto e foto)