Ética na Idade Média é tema do curso “História da Ética”
Com a palestra “Ética na Idade Média”, o professor José Carlos Estevão (foto) iniciou, no último dia 1º de setembro, o Módulo II do curso de extensão universitária e formação continuada História da Ética da EPM. A aula contou com a participação do diretor da EPM, desembargador Fernando Antonio Maia da Cunha, e do professor Luiz Paulo Rouanet, coordenador do curso.
Em sua exposição, José Carlos Estevão debruçou-se sobre o período histórico da Filosofia, correspondente ao Neoplatonismo e ao Aristotelismo, compreendido entre os séculos IV ao XIII, por sua continuidade temática, já que os autores desse período dialogam com matrizes comuns de pensamento.
Ele discorreu, em princípio, sobre a chamada Antiguidade Tardia, não medieval, numa extensa referência a Agostinho de Hipona, o Santo Agostinho, filósofo da passagem do século IV para o século V, que teve um peso absolutamente determinante na Idade Média. “Agostinho não é o filósofo mais importante do mundo, mas o mais influente da história, que vem influenciando o nosso modo de pensar há 1.600 anos”, observou.
Em prosseguimento, referiu Tomás de Aquino, do século XIII, nos albores da modernidade, autor da Suma Teológica. “Tomás de Aquino, fundador da Teologia, como uma ciência de Deus, que diz respeito também à religião para a plena realização da natureza humana, consegue pensar Aristóteles compatibilizado com o cristianismo. É dele a concepção de Deus como uma necessidade da razão”, ensinou.
Na terceira etapa, analisou alguns aspectos da obra de Guilherme de Ockham, que escreveu sua obra duas gerações depois de Tomás de Aquino.
Entre as referências filosóficas do racionalismo cristão, o palestrante destacou ainda as figuras de Pedro Abelardo, no século XII, o primeiro a escrever uma ética desde a antiguidade tardia, e Boécio da Dácia, no século XIII, autor de Sobre a Eternidade do Mundo e Sobre o bem supremo. “Recuperando Aristóteles, Boécio divide a razão humana em duas faculdades: especulativa e prática. De acordo com esse filósofo, o bem supremo da faculdade especulativa da razão é conhecer a verdade; o bem supremo da faculdade prática é o prazer da Justiça e das virtudes morais. A felicidade humana então atinge-se pela contemplação da verdade e a vida justa”, comentou José Carlos Estevão.
A ética estoica dos aristocratas
José Carlos Estevão ensinou que, no começo do Império Romano, vigorou a Filosofia Estoica. A partir do século IV, uma nova fusão filosófica, chamada de Neoplatonismo vai se tornar absolutamente hegemônica até um milênio depois.
Ele lembrou que as religiões pagãs eram formas de identidade cívica, que exprimiam aquilo que identificava um povo, uma cidade, o pertencimento a uma mesma comunidade cívica que cultuava os mesmos deuses, ou vice-versa – cultuava-se os mesmos deuses porque se pertencia à mesma comunidade cívica. “Os romanos eram muito cuidadosos em respeitar as religiões dos povos que eles incorporavam ou conquistavam. Esse trato com as religiões dos povos funcionou perfeitamente durante a República”, observou.
O palestrante citou os preceitos éticos estoicos autoimpostos pelo imperador Marco Aurélio, a “cidadela interior”, de natureza autonômica. Citou, antes dele, a ética rigorosa e igualmente virtuosa de Sêneca, nas Cartas a Lucílio.
A conclusão do panorama do período estoico é o que o professor considerou “a descrição do óbvio”. De um lado, os deuses e as leis para o povo; de outro, a virtude, segundo a Ética, para a aristocracia. “É exatamente essa dicotomia que é posta em causa por Agostinho e seus contemporâneos, no momento em que se torna necessário falar para todos, ou explicitar uma ética para o homem comum. E a tentativa, diga-se de passagem, foi bem sucedida”, salientou.
A ascensão da ética lastreada no monoteísmo
Adiante, José Carlos Estevão discorreu sobre a disseminação dos preceitos éticos de origem judaico-cristã, pela ascensão da religião monoteísta em sua vertente cristã, contemporânea do nascimento do Império Romano, na transição da prática filosófica estoicista para a fusão filosófica conhecida como Neoplatonismo, a partir do século IV.
De acordo com o professor, há uma unidade filosófica absolutamente evidente no período analisado, que corresponde à maturação da expressão intelectual do monoteísmo. “Se há uma particularidade da Ética na Idade Média, em relação às éticas antigas e modernas, é que aquela está imediatamente referida à religião, embora com ela não se confunda”.
E esclareceu que um raciocínio filosófico é exclusivamente fundado na razão. A religião, ao contrário, prescinde de raciocínios e apresenta outra coisa: revelações, milagres, etc. “O raciocínio religioso parte de um princípio de autoridade. É por terem modus operandi completamente diferentes que a religião e Filosofia são oponíveis”, observou.
Em seguida, o palestrante caracterizou precisamente o que seria o arco das éticas tardo-antiga e medieval. Ele ressaltou que, em primeiro lugar, há uma preocupação com o universalismo (pretensão de formular regras éticas que digam respeito a todos); em segundo lugar, com a responsabilização (entendimento de que os princípios éticos não são entendidos coletivamente, mas dirigidos a indivíduos); e, em terceiro lugar, com a heteronomia (submissão a uma autoridade) dessas éticas. “Elas estão sempre referidas a um fundamento que não está ao alcance dos atores. Eu me regro por uma regra que me é dada. É a dependência de princípios extrínsecos àquilo que é humano, super-humanos; no limite, a dependência em relação aos mandamentos divinos”, ensinou. Para exemplificar, afirmou que, enquanto no Cristianismo o homem é responsável por seus pecados, no paganismo o homem está submisso aos fados, ao destino.
“Tanto o universalismo quanto a responsabilização distinguem essas éticas tardo-antigas e medievais das éticas antigas. E a heteronomia, por outro lado, que é a necessidade de ancoragem na autoridade divina, distingue essas éticas das modernas, que não são mais heteronômicas, pois procuram encontrar o fundamento em si próprias”, aduziu.
Por outro ângulo de análise, José Carlos Estevão observou que a Ética monoteísta cristã incorpora, em todos os seus níveis, o princípio da autoridade. “As divindades cívicas das religiões antigas, ao contrário do monoteísmo cristão, são celebradas por ritos, por festas, porque constituem manifestações de identidade coletiva. Em particular, não possuem corpo dogmático nem ensinamentos; não pretendem dirigir indivíduos do ponto de vista moral. O sacerdote pagão não prega; faz sacrifícios, dirige procissões, desenvolve outro tipo de atuação. É por isso que um filósofo do fim da República e começo do Império, Cícero, diz ‘o povo acredita em todos os deuses; os filósofos não acreditam em nenhum, e para os governantes, todos os deuses são úteis’“.
José Carlos Estevão asseverou, finalmente, que o universalismo possível da ética do homem comum é que levou grandes intelectuais do século IV a tornarem-se cristãos. “Santo Agostinho fala de uma ‘popular clemência’. Isso é que é sedutor no Cristianismo, pois sua doutrina diz que Deus se revela como homem, particularmente aos pobres de espírito. Portanto, já não é mais apanágio dos ‘aristocratas do espírito’, expressão usada em um sermão por Ambrósio, bispo de Milão, então capital do Império, para se referir aos platônicos. O sucesso do Cristianismo, que se tornou a religião mais popular do Império, vem do fato de ele oferecer uma ética para todos”, pontuou o professor.
Curso
Com quatro módulos (“Antiguidade”, “Ética Medieval”, “Modernidade” e “Contemporaneidade”), o curso História da Ética é ministrado nas modalidades presencial e a distância, para magistrados de todo o Estado e dos Estados do Acre, Amazonas, Goiás, Roraima, Santa Catarina e Sergipe, bem como outros profissionais do Direito. Também coordenado pelo presidente do TJSP, desembargador José Renato Nalini, o curso tem como objetivo geral ampliar a concepção dos alunos a respeito dos indivíduos e das sociedades, por meio da exposição e reflexão sobre a complexidade e multidisciplinaridade das questões de natureza ética.
No módulo inicial, analisou-se a ética na Antiguidade, formulada pela tríade helênica formada por Sócrates, Platão e Aristóteles, por meio das palestras ministradas pela professora Maria Tereza Aina Sadek e pelo desembargador Ricardo Henry Marques Dip. Os próximos temas a serem abordados são “Ética no Tomismo” (8/9) e “Ética e Religião” (15/9).
ES (texto e foto)