Controle jurisdicional de atos políticos e políticas públicas é analisado em aula na EPM

Realizou-se, no último dia 3, na EPM, aula do curso Controle jurisdicional das políticas públicas e responsabilidade do Estado, em que se analisou o tema “Controle jurisdicional de atos políticos e políticas públicas”. A aula foi ministrada pelo juiz Luis Manuel Fonseca Pires, coordenador do curso e da área de Direito Público da Escola.

 

Luis Manuel Fonseca Pires estabeleceu, inicialmente, oito propostas concretas de controle jurisdicional para debate, buscando “amealhar tudo que já foi produzido nos últimos vinte anos na doutrina nacional e estrangeira, neste caso com foco no que tem sido incorporado de maneira subliminar pelo STF.”

 

A seguir, discorreu sobre aspectos históricos da formação do regime jurídico-administrativo, iniciando a preleção pela gênese do Estado moderno, na Idade Média, “caracterizado por uma sociedade política organizada diferenciada das cidades gregas antigas e do Império Romano pela ideia da soberania e respeito da soberania alheia”.

 

De acordo com Fonseca Pires, o Estado Moderno marca-se, na sua primeira formação, como Estado de Polícia. “Hoje, quando fazemos crítica do Estado policialesco, estamos criticando as características autoritárias da formação do Estado Moderno, que enfeixa todos os poderes nas mãos de controle daquele que organiza a sociedade civil”.

 

Adiante, ele comentou a transição para o Estado de Direito, constituindo a segunda fase do Estado Moderno. Os principais mobilizadores dessa transformação foram os membros da burguesia em ascensão, que tinham a pretensão de substituir a classe política dominante, a nobreza. “Essa burguesia trabalhou muito bem com o arcabouço teórico dos pensadores do século XVII e XVIII, destacando-se Hobbes e Locke. Mas há dois que interessam em particular ao controle dos atos políticos e das políticas públicas, Rousseau e Montesquieu, este último autor da proposta de tripartição de Poderes. Mas sabemos que Montesquieu não concebeu em si a tripartição de funções, das quais já se falava na antiguidade greco-romana. Políbio e Cícero falaram dela; Aristóteles a sistematizou de modo original”.

 

Fonseca Pires ensinou que a grande percepção de Montesquieu é que cada função deveria ter um órgão distinto. Asseverou, contudo, que ele, até em função do momento histórico, tinha preconceito com relação à função de judicar. “Ao sistematizar a tripartição de Poderes, Montesquieu afirma que o Legislativo e o Executivo fazem a feição política de um Estado, atribuindo apenas a estes o papel político. Traduzindo seu pensamento, poderíamos chegar à conclusão de que o Judiciário é um mal necessário. No exercício da função concreta, cada juiz não deveria ser nada além do que a ‘boca da lei’, fazendo valer o que foi definido pelo Legislativo e praticado pelo Executivo”.

 

O professor ensinou que a influência desse pensamento materializou-se depois no chamado Conselho de Estado Francês, em 1799. “Na França, até hoje, prevalece a chamada dupla jurisdição. Por ela, ao Judiciário são reservadas as questões entre particulares. Para as questões envolvendo o cidadão e o Estado, aquele deve dirigir-se ao Conselho de Estado Francês, um órgão de controle com função jurisdicional, mas integrado à estrutura do Executivo”.

 

Ele lembrou uma frase recorrente à época da formação do Estado de Direito, no período da Revolução Francesa, qual seja, “julgar a administração é também administrar”. Por esta concepção, a admissão de um Estado onde é possível julgar a administração, significa que o Judiciário é o verdadeiro administrador, devendo-se evitar o governo dos juízes. “Até 1758, o Conselho de Estado francês era considerado uma Justiça retida, porque a palavra final não era de seus membros, mas do chefe do Executivo. Após essa data, passou a ser uma Justiça delegada, com função judicante de fato”.

 

No entendimento do palestrante, as críticas contemporâneas ao ativismo judicial recuperam, com outras palavras, a ideia da posição secundária do Judiciário em face dos outros Poderes.

 

Ele complementou a reflexão com o recorte do pensamento  de Jean-Jacques Rousseau. É desse filósofo iluminista a ideia da vontade geral, de acordo com a qual, na concepção de tripartição de Poderes, fosse o signo representante da vontade popular, materializada no exercício do Poder Legislativo. “Na concepção de Rousseau, para cada questão importante, para cada definição de política pública, cada lei que fosse editada deveria ser resultado da assembleia de todos os integrantes de uma nação. Mas o próprio Rousseau afirma que isso só seria viável em Estados pequenos. O filósofo não apresenta solução para esse problema, tanto que os práticos da Revolução Francesa acresceram à essa ideia de Rousseau a da representação”, pontuou.

 

A origem do protagonismo do Judiciário

 

Em prosseguimento, o palestrante asseverou que o regime jurídico-administrativo só adquiriu autonomia a partir de 1858, quando o Conselho de Estado francês deixou de se submeter ao chefe do Executivo, criando independência. Ele lembrou que, nesse mesmo ano, houve uma decisão afirmando a possibilidade do cometimento de desvio de poder em uma decisão de governo.

 

“Aos poucos, ao invés de se falar em poder discricionário – conceito surgido no século XIX com uma justificativa clara: explicar porque o Judiciário, no caso o Conselho de Estado, não podia rever as decisões do Executivo –, muda-se a terminologia e passa-se ao conceito de ato. Ato político (ato de governo); ato discricionário (ato de pura administração); ato de império, isentos de controle, e ato de gestão (sujeito ao controle), estes últimos, atos de contratos administrativos, de permissão de uso de bem público, que não afetam a composição política do Estado. Na função judicante, não teríamos, por essa ideia bem consolidada, qualquer função política na atuação”, ensinou Fonseca Pires.

 

A influência do pensamento francês no Direito Administrativo brasileiro

 

Fonseca Pires retornou ao pensamento fundador do Estado de Direito francês para situar a origem do desprestígio do Judiciário. Ensinou que, na época do Estado monárquico, as ordens do rei (ordenanças), eram emitidas para implementação nas províncias mediante um processo de publicidade. Mas era comum que ficassem engavetadas por um tempo, fragilizando politicamente o soberano. Isso desencadeou dois mecanismos: a substituição do representante local ou a publicidade forçada das ordenanças. Havia ainda uma terceira via, mais recorrente: a barganha política. “Esta prática demonstrava certa promiscuidade entre aquele que exercia a função judicante local, representando o rei, e a proximidade com o Executivo. Esse o dado histórico que compunha parte da resistência e do preconceito de Montesquieu com relação ao Judiciário. Naquilo que ele constatava sociologicamente, a função judicante era promíscua porque muito próxima do rei”, comentou.

 

“Quando afirmamos que o Direito Administrativo brasileiro tem uma influência marcante do Direito francês, e toda a sua estrutura foi incorporada na Constituição Federal, entendemos que a formação do pensamento do regime jurídico-administrativo e do controle dos atos políticos e das políticas públicas dá-se por esta perspectiva: o Judiciário não compõe função política”, ensinou. E observou que, até hoje, há juristas brasileiros de renome que entendem que o Judiciário não tem feição política.

 

É no século XIX, com essa feição, que se forma pela primeira vez o conceito de ato político, mas antes dele uma concepção jurisprudencial e doutrinária, que é a distinção entre poder gracioso (isento de controle) e poder contencioso (sujeito a controle). Em pleno Estado de Direito, ainda se fala em “poder gracioso”, como se fosse uma graça divina atribuída ao Estado. E a prática da jurisprudência francesa foi se construindo pela seguinte perspectiva: naquilo que diz respeito à força ou império do Estado (polícia, controle de imprensa, controle da moralidade pública, controle da saúde pública), o poder é gracioso. Poder contencioso praticamente se limitava a questões de responsabilidade, danos, revisão de alguns contratos.

 

O controle judicial efetivo diante da Constituição de 1988

 

O palestrante afirmou que, desde a época pré-revolucionária francesa, até o século XX, ocorreu a reformulação permanente da ideia de justificar a interdição do controle do Estado de Direito. E explicou que essa premissa constou como disposição expressa nas constituições brasileiras de 1934 e 1937, afirmando a doutrina consagrada na Europa, de que o Judiciário não pode rever atos políticos.

 

“Quando se diz, por exemplo, que é impossível o controle judicial de políticas de saúde, de fornecimento de medicamentos, argumentando-se que a questão não é o caráter vital do medicamento à pessoa, mas porque se encontra inserido em uma política pública de saúde de interesse social, e porque o fornecimento para uma determinada pessoa comprometeria uma política maior, isso nada mais é do que reformular direitos individuais e interesses. A pessoa tem direito individual enquanto não se vê nele uma parcela de interesse social. É quase um processo kafkiano de pensar a tutela dos direitos individuais. Nada mais é do que pensar a legitimidade de poderes graciosos e atos de império que não são passíveis de controle judicial”, refletiu o palestrante.

 

Ele observou, a seguir, que o controle judicial acabou por afetar a terminologia do poder de Estado. “Não é mais um poder que, por si, já diz tudo. É um ato que há de se encaixar em determinadas justificativas. Vários cursos de Direito Administrativo elencam recorrentemente os chamados “poderes da administração pública”, que partem justamente dessa gênese do século XIX da formação do Direito Administrativo. O que migrou para o século XX foi para a afirmativa de ato. E fala-se muito, há umas três décadas, na noção de competência. Não mais poder ou ato discricionário, mas competência discricionária”.

 

Nesse contexto, ressaltou que a questão pode parecer acadêmica, mas envolve a mudança do ônus argumentativo como um parâmetro objetivo de controle. “Significa dizer que não temos mais, a priori, o poder de Estado como entidade mítica, como uma palavra mágica que basta ser invocada para a legitimação de todos os atos. E isso interessa muito em desafios sociais e movimentos contemporâneos, como as proibições de máscaras em movimentos sociais e de reuniões sem prévia comunicação do lugar e o motivo. O que prevalece hoje é a indagação de qual a competência pública que os agentes do Estado têm para tratar de questões específicas. O poder é exercido na medida em que a competência é claramente definida pelos dispositivos legais”, ponderou.

 

Ele explicou, a seguir, que não é que não exista o poder no Estado de Direito contemporâneo. Ele migra do fundamento e premissa a priori para instrumento, na medida e enquanto necessário à realização da competência. E isso significa que cada qual, para justificar os seus atos, precisa fundamentá-los. É por isso que há uma preocupação forte na doutrina estrangeira e nacional, há algum tempo, de não falar mais em poder discricionário ou ato discricionário, mas enfatizar a competência discricionária.

 

Fonseca Pires refletiu ainda sobre o exercício do poder discricionário de nomeação e exoneração para cargos públicos em comissão em casos concretos brasileiros. Indagou se esse ato político conforma poder ou competência discricionária, concluindo que são atos discricionários, que prescindem da apresentação do motivo, não excluída a necessidade de justificação, em alguns casos, nem o dever do Judiciário de indagar qual a racionalidade da decisão.

 

Ele discorreu, finalmente, sobre os argumentos contrários e favoráveis ao controle jurisdicional das políticas públicas. Contrários são aqueles estribados na chamada “teoria da reserva do possível”, que leva em consideração os aspectos fáticos, quais sejam, os recursos financeiros e humanos e os limites técnicos do Judiciário, e os aspectos jurídicos, que abarcam a noção da separação dos Poderes, as leis orçamentárias e ausência de representação do Judiciário.

 

Já os argumentos favoráveis compõem-se pela associação do conteúdo essencial dos direitos fundamentais e da interpretação constitucional da busca de sua máxima efetividade. Nesta perspectiva, mencionou o controle jurisdicional das políticas públicas na área da saúde, marcada pela garantia de fornecimento do coquetel de medicamentos para tratamento da Aids.

 

Diante dos argumentos contrários e favoráveis, Fonseca Pires propôs parâmetros objetivos para equacionar o controle dos atos políticos e das políticas públicas. Entre estes, comentou a necessidade do controle da racionalidade da decisão administrativa lastreada na premissa de que “o Judiciário não pode apreciar o mérito das decisões administrativas em processos disciplinares”. Em sua opinião, a premissa reproduz o poder gracioso e o ato de império e precisa ser superada, não para que o Judiciário seja uma instância revisora do processo disciplinar, mas verificador da racionalidade da decisão, pois em determinados casos impõe-se a explicitação da motivação da administração pública para a prática do ato discricionário.

 

ES (texto e fotos) 


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