Relações entre Ética, Antropologia e Direito são analisadas na EPM
A antropóloga e advogada Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer (foto) foi a palestrante do curso de extensão universitária e formação continuada História da Ética da EPM, no último dia 3. Ela discorreu sobre o tema “Ética e Antropologia”, em aula que contou com a participação do professor Luiz Paulo Rouanet, coordenador do curso.
Autora de trabalhos de pesquisa na interação com a área do Direito, Ana Lúcia Pastore iniciou a preleção com uma breve noção da Antropologia. Ela partiu da ideia de que as ciências, de um modo geral, são apenas uma das possibilidades de conhecimento. “A moral, a religião, a Filosofia, a Psicanálise e as artes são outras formas de produção do saber tão densas, ricas e instigantes quanto as áreas científicas”, observou. Ela afirmou que, no Brasil, a Antropologia é fortemente marcada pelos campos da Antropologia cultural, Sociologia, Etnologia, Biologia, Arqueologia, Psicologia e Linguística. Asseverou ainda que a Ética está na confluência entre Antropologia, Direito, Ciência Política e Sociologia e que há muitas questões comuns a estas disciplinas cujas respostas mais instigantes acham-se em sua interface.
A seguir, apresentou uma definição da Antropologia do Direito, formulada pelo francês Norbert Rouland como “conjunto de estudos a respeito de como cada grupo compreende e pratica “Direito” e “Justiça” no conjunto de seus mecanismos de regulação”. De acordo com esta concepção, o Direito é algo que ganha sentido no interior da vida de cada grupo. “Há línguas indígenas no Brasil em que não se verifica a separação estrita entre Direito e Justiça”, exemplificou. Ela sustentou que a Antropologia do Direito se dedica a analisar discursos orais e/ou escritos, práticas e representações que podem ser considerados “jurídicas” pelo próprio grupo ou que estão incluídos em outros sistemas de controle social, como a moral e a religião.
Em prosseguimento, teceu algumas considerações sobre a história da Antropologia: “A Antropologia nasce da tensão entre universalidade e diversidade. Começou como área do conhecimento no século XIX, com uma pergunta extremamente renovadora e revolucionária para aquele tempo, quando ainda se discutia a humanidade dos indígenas, dos negros e de várias populações, que até então estavam colocadas numa espécie de sub-humanidade ou mesmo de animalidade. ‘A humanidade tem algo que permite pensá-la como um único grupo, apesar dos subgrupos tão diferentes entre si?’ indagaram os antropólogos. Esta questão vinha de longuíssima data e perpassa vários textos filosóficos, desde a Antiguidade clássica, mas só nesse momento foi colocada no campo das ciências acadêmicas, especialmente na Europa Central e nos EUA.”
De acordo com a palestrante, a primeira resposta científica acadêmica dada à pergunta no campo da Antropologia, veio da chamada Escola Evolucionista, que, superando o conceito de “raça”, taxativamente, disse “sim, existe uma unidade humana, e essa unidade é psíquica; todos os humanos são capazes de simbolizar, de abstrair experiências e vive-las num plano que não é só o do concreto, mas o do simbólico”.
Ela falou da superação da “marca de nascença colonizatória”, segundo a qual o primeiro encontro impactante entre Direito e Antropologia deu-se pela lógica do progresso unilinear da humanidade, que permitiu a distinção entre selvageria, barbárie e civilização. De acordo com a professora, esse pensamento influenciou imensamente a mentalidade e a doutrina jurídica no Brasil do final do século XIX e boa parte do século XX, encontrando-se nos livros de Direito Penal, que compreendiam a evolução das penas selvagens às penas civilizadas. Aquelas, baseadas na vingança; estas, na restrição da liberdade.
Ana Lúcia Pastore afirmou que o marco da transição viria com a escola culturalista norte-americana, cuja doutrina afirmou que as diferenças fenotípicas (altura, cor da pele, tipo físico, etc.) são irrisórias diante das diferenças culturais, as quais determinam nossa capacidade de simbolizar. E a universalidade do potencial simbólico humano materializa-se nas múltiplas formas no sistema de trocas e reciprocidades. “Foi essa nova forma de pensar a humanidade que influenciou o movimento dos etnógrafos na busca daqueles humanos exóticos e distantes, iniciando o trabalho de campo que é a menina dos olhos da Antropologia até os dias atuais”, disse.
Ela assinalou, ainda, a ocorrência de dois grandes encontros entre Antropologia e Direito no Brasil. O primeiro deu-se na virada do século XIX para o XX com o evolucionismo social, em que é afirmada a universalidade do “humano”. De acordo com essa concepção, há direitos humanos, mas alguns grupos são “mais humanos” (civilizados) que outros. O segundo encontro ocorreu com a redemocratização, especialmente a partir da promulgação da Constituição de 1988, com as críticas aos discursos jurídicos universalizantes dos direitos humanos, apesar de eles também serem utilizados como instrumentos de lutas democráticas.
A teoria da diversidade cultural
A ideia de Ética desenvolvida por Ana Lúcia Pastore partiu de algo relativo, sempre particular e fruto de um consenso, passível de mudança, distinta da moral, por exemplo, que toma bem e mal como valores absolutos e universais. Ela chamou a atenção para a necessidade de reconhecer a historicidade dos direitos humanos e dos valores que eles trazem. De acordo com a expositora, longe de desvalorizá-los, o intuito é pensá-los como uma semente que foi germinando e ganhando contornos e traços à medida que se desenvolveu, inclusive, em contextos diferentes dos da sua origem.
Desta maneira – refletiu a palestrante –, a Antropologia hoje é encarada como proposta de tentar compreender o que os outros compreendem, uma área do conhecimento especialmente fértil para auxiliar a compreensão das demandas por direitos, justamente porque permite questionar a forma ocidental de compreensão dos direitos humanos, herança das revoluções burguesas. “Com sua consideração dos diferentes pontos de vista e da diversidade, a Antropologia contemporânea ajuda a não cairmos na ideia de que há um bem absoluto a ser alcançado, e que esse bem pode ter o nome de “direitos humanos” ou “democracia” ou “liberdades civis”, pois ela mostra que em nome disto já se matou em diferentes contextos”, sustentou.
De acordo com Ana Lúcia Pastore, a aposta da Antropologia no campo dos direitos humanos é uma aposta no que chama “arte da escuta”, na ampliação de soluções consensuais de conflitos, nas chamadas justiças do diálogo, consenso, reparação, restauração, não em detrimento total, mas deixando justamente à margem o que é central no mundo ocidental, que são as justiças adversariais, justiças do contraditório e do antagonismo, polarizações entre agressor e vítima, entre quem tem que ser absolvido e condenado.
Diversidade como valor e não como estorvo
Como corolário da nova visão antropológica que permeia a compreensão do Direito brasileiro, a professora falou do trabalho desenvolvido na Associação Brasileira de Antropologia (ABA), que atua no campo político da Ética pela defesa de grupos vulnerabilizados, como os indígenas, os remanescentes de quilombos, os membros da comunidade LGBT, grupos de mulheres. Também comentou os constantes ajustes entre princípios e tensões, que ora são aceitáveis, ora são contestados, relativos a comportamentos e ações desses grupos humanos.
“Nosso papel, junto ao Estado brasileiro e à sociedade civil organizada, especialmente em prol da defesa dos direitos humanos e dos sujeitos diferenciados, é levarmos as suas demandas e fazermos com que as suas vozes, muitas vezes abafadas por setores mais hegemônicos, sejam ouvidas, consideradas como a maior riqueza que o humano possui”, defendeu Ana Lúcia Pastore. Entretanto, buscou desfazer a ideia do desinteresse da ABA pelos grupos hegemônicos: “Por ter uma história de fragilização cultural é que a ABA elegeu esses grupos como os seus principais parceiros na luta pela defesa dos direitos humanos”.
ES (texto e foto)