Contratos de assistência à saúde são tema do curso de Direito do Consumidor

Os novos paradigmas de interpretação dos contratos de seguro, especialmente os de assistência à saúde, à luz da Constituição Federal, do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e da Lei 9.656/98 foram analisados pela professora Patrícia Caldeira, no dia 4, no Curso de especialização em Direito do Consumidor da EPM. A aula fez parte do Módulo III, "Oferta e proteção contratual no CDC" do curso, também oferecido como extensão universitária, e  teve a participação da juíza Claudia Maria Chamorro Reberte Campaña, professora assistente do curso.

 

Em sua exposição, Patrícia Caldeira discorreu sobre a principiologia jurídica aplicável aos contratos, e sobre os avanços e conquistas no plano da jurisprudência dos tribunais de São Paulo e do Rio de Janeiro e do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

 

Para a compreensão das razões do surgimento do CDC, ela retrocedeu à era do liberalismo econômico no século XIX, onde o dogma no qual se baseavam os contratos era a autonomia da vontade, e as partes podiam negociar amplamente o seu conteúdo, em uma situação absolutamente equilibrada.

 

De acordo com a palestrante, esse tipo de contrato, considerado uma fonte de circulação de riquezas para a sociedade, foi incorporado pela legislação privada brasileira, com a edição do Código Civil de 1916. Lastreava-se na ideia de que o Estado não podia intervir nas relações comerciais, a não ser para fazer com que a vontade manifestada alcançasse o fim pretendido pelas partes contratantes. “Tanto é verdade que, nos artigos 86 a 113 do CC de 1916, foram traçados os vícios de consentimento e os vícios sociais ensejadores da anulação do negócio jurídico, como o erro, dolo, coação, fraude contra credores e dissimulação”, pontuou.

 

Ela observou que o contrato baseado na autonomia da vontade traduzia o corolário do princípio do pacta sunt servanda, pelo qual o contrato tem força de lei entre as partes. E afirmou que a única exceção a esse princípio era representada pela cláusula rebus sic stantibus, a teoria da imprevisão, que trazia a possibilidade da revisão dos contratos e até mesmo a sua modificação diante de um evento extraordinário.

 

De acordo com a expositora, esse cenário foi transformado pela nova realidade social pós revolução industrial, representada pela sociedade de massa, crescimento populacional, migração do campo para a cidade, maior competitividade, facilitação de acesso a produtos e serviços de todas as formas.

 

A era dos contratos de adesão

 

“Na sociedade massificada, em função da industrialização, a gente passa a ter produção, consumo e distribuição de produtos em série e, consequentemente, uma modificação na forma de elaboração dos contratos. Eles passam a ser também distribuídos em série, com conteúdos padronizados e homogêneos. Passamos a viver a era dos contratos de adesão, dotados de cláusulas pré-elaboradas por uma única parte e com condições oferecidas em bloco a um número indeterminado de pessoas”, ensinou a professora.

 

Ela falou da pequena margem de negociação nos contratos de adesão, prevista no artigo 54, parágrafo primeiro do CDC, em contraposição com aqueles estabelecidos por “condições gerais”, que afastam a possibilidade de negociação, como nos casos dos seguros de saúde, contratos de seguro em geral, viagens aéreas, serviços de hotelaria, etc.

 

“Nessa nova era dos contratos de adesão, não podemos mais falar no dogma da autonomia da vontade, porque só há duas opções: aderir ou não aderir a um conteúdo pronto e regulamentado. Por esta razão, identifica-se a necessidade de cair por terra o princípio do pacta sunt servanda, já que a sujeição a condições pré-estabelecidas abole a possibilidade da livre discussão, rompe o equilíbrio paritário, fortalecendo o poder de uma das partes em detrimento da outra”, asseverou a palestrante.

 

Patrícia Caldeira concluiu que, ausente a liberdade contratual, não há como invocar a força de lei entre as partes contratantes. Nessa nova era dos contratos de adesão, impõe-se a busca do equilíbrio entre as partes por meio de uma interpretação dos contratos voltada para a equidade e cumprimento a sua função social. “Temos que primar pela transparência, pela cooperação, pela lealdade, pela fidelidade e, principalmente, pela legítima expectativa das partes, especialmente da figura do consumidor. E isso só pode acontecer com a intervenção estatal, afastada do modelo tradicional clássico do Código Civil”, ponderou.

 

A palestrante lembrou que a intervenção estatal para a busca do equilíbrio iniciou-se de maneira tímida, apenas em determinadas relações contratuais consideradas imprescindíveis, como transporte e fornecimento de água, luz, gás, etc. Visava regulamentar o conteúdo dessas espécies de contratos e, inclusive, o preço que devia ser pago pelos serviços. “A intervenção, inicialmente tímida, foi completamente modificada com o advento do CDC (Lei 8.078.90), dispositivo responsável pela alteração de toda interpretação da teoria clássica dos contratos”, anunciou.

 

Ela esclareceu que a nova interpretação veiculada pelo CDC estabeleceu normas cogentes de ordem pública, trazendo novos conceitos e limites à autonomia da vontade. E o próprio CDC assegura que nas relações de consumo não deve mais vigorar o pacta sunt servanda, podendo sofrer os contratos revisão pura, não mais condicionada a eventos extraordinários. A lei, assim, visa assegurar a função social dos contratos, observando a real expectativa das partes e a realidade econômica e social em que estão inseridas. “Por ser fulcrado no texto constitucional, o CDC é uma lei principiológica, que vai prevalecer sobre todas as legislações que puderem colidir com as suas normas, com o seu espírito, sejam anteriores ou posteriores à sua edição”, sustentou.

 

A seguir, comentou a política nacional das relações de consumo, que coloca em prática o princípio da isonomia, preconizado pelo artigo 5º, caput, da Constituição: “O primeiro passo que deu o CDC foi reconhecer expressamente a vulnerabilidade do consumidor, absoluta em relação ao consumidor pessoa física e relativa em relação à pessoa jurídica”.

 

Ela afirmou que, ao reconhecer a vulnerabilidade, o código estabeleceu a necessidade de uma proteção efetiva ao consumidor, trazendo um rol de direitos que devem ser assegurados, como as regras gerais do artigo 6º, especificados nos artigos subsequentes; a possibilidade de inversão do ônus da prova, a responsabilidade objetiva, a proibição da intervenção de terceiros, da publicidade enganosa, entre outros. Adiante, citou os princípios doutrinários que devem nortear as relações de consumo, resumidamente a boa-fé objetiva e a equidade.

 

O diálogo entre as fontes do direito do consumidor

 

Em prosseguimento, a palestrante discorreu sobre a evolução da jurisprudência no que tange à interpretação dos contratos de seguro, com vistas à ampliação da proteção efetiva do consumidor.

 

Ela explicou que a interpretação jurisprudencial culminou na edição da Lei 9.656/98, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, a ser aplicada em conjunto com o CDC aos contratos novos, mas também servindo de fonte interpretativa para os contratos antigos. Os tribunais estabeleceram, então, um novo paradigma, uma nova forma de interpretação dos contratos de seguro, pautada pela boa-fé e pelo reconhecimento de sua finalidade social, especialmente quando envolvem direito à saúde.

 

“Muitas cláusulas inseridas nos contratos de seguro foram reconhecidas como abusivas pela jurisprudência, consideradas nulas de pleno direito e retiradas das condições contratuais. Os tribunais passaram a reconhecer como abusivas, por exemplo, as cláusulas que estabeleciam limitação de cobertura, de tratamento, prazo ou limite de internação, agravamento dos riscos, etc.”, lembrou Patrícia Caldeira.

 

A expositora discorreu, finalmente, sobre a declaração de abusividade da cláusula que prevê reajuste de mensalidade por sinistralidade nos planos coletivos: “A previsão de socialização dos riscos impede a majoração dos planos em razão de um mal grave identificado dentro da carteira. Devemos considerar que são contratos cativos de longa duração, que envolvem um consumidor e um fornecedor por longos anos numa relação de mutualidade, sem que, necessariamente, o consumidor seja submetido a algum tipo de tratamento. A forma como esses contratos são estabelecidos já assegura rentabilidade suficiente para que as operadoras possam suportar pessoas com doenças graves ou idosas”, ponderou.

 

ES (texto)

 


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