Direito à moradia e mediação nos conflitos fundiários urbanos são debatidos na EPM

O curso Temas controvertidos de Direito Urbanístico recebeu, na última sexta-feira (8), o desembargador aposentado Gilberto Passos de Freitas, ex-corregedor-geral da Justiça, e a professora Betânia de Morais Alfonsin, que discorreram sobre os temas da mediação nos conflitos fundiários urbanos e o direito à moradia, respectivamente. As aulas contaram com a participação do diretor da Secretaria da Presidência, Wilson Levy Braga da Silva Neto, coordenador do curso.

 

Betânia Alfonsin iniciou as exposições com a palestra “O direito à moradia no Estatuto da Cidade”, com uma reflexão sobre o contexto sociojurídico em que  a discussão se estabeleceu e avançou. Ela discorreu sobre o processo de urbanização, articulado com o processo de industrialização no Brasil, assinalando a desigualdade que o marcou, com a concentração da industrialização no Sudeste. “A indústria automobilística, intensamente incentivada desde o governo de Juscelino Kubitschek, mas principalmente durante o governo militar, tem em São Paulo um parque industrial muito importante, que atraiu populações rurais de todo o Brasil”, recordou.

 

De acordo com o quadro comparativo que apresentou sobre essa urbanização, em um período de 50 anos, 31% da população vivia nas cidades em 1940, caracterizando um país eminentemente rural, invertendo-se completamente a curva gráfica em 2010, quando já se flagrava 84,35% da população brasileira vivendo em áreas urbanas.

 

Adiante, a palestrante comentou os impactos desse padrão acelerado de desenvolvimento das cidades despreparadas, caracterizado como excludente e promotor de desigualdades regionais e segregação socioespacial: falta de infraestrutura, de oferta habitacional adequada e de empregos suficientes. Além desses problemas, também comentou as ocupações irregulares para fins de moradia, o crescimento das periferias, a ocupação desordenada do solo, a insegurança da posse, as irregularidades urbanísticas, o aumento da pobreza e da violência urbana.

 

Salientou ainda um aspecto perverso da ocupação urbana, que diz respeito ao preço da terra, aumentado pela procura de maneira irreversível e em uma curva ascendente, tornando-a inacessível. “Isso não é só no Brasil. É próprio do modelo de urbanização capitalista do mundo, em que a terra foi transformada em mercadoria e absorve, como uma esponja, a valorização dos investimentos públicos feitos no entorno. Aqui moram 19 milhões de brasileiros, e se alguém retém de forma especulativa um terreno, enquanto tem gente que não tem onde morar, isso caracteriza um comportamento antijurídico”. De acordo com ela, a efetivação do direito civil à moradia tem um marco no Código Civil de 1916, quando ainda não se falava sobre função social da propriedade, e “o direito de propriedade era tratado numa perspectiva do liberalismo jurídico clássico, como um direito absoluto, individual, exclusivo, perpétuo, quase sagrado”.

 

Ela ensinou que só com a Constituição de 1988, o sistema jurídico brasileiro passa a ter um capítulo de política urbana, onde a função social da propriedade transitou para um outro patamar. Comentou que o princípio não era novo, pois já tinha sido referido na Constituição de 1934 como norma programática, pairando sobre o ordenamento jurídico. “O que a Constituição de 1988 faz – que é a grande virada –, é trazer um capítulo de política urbana por conta de uma mobilização por reforma urbana, fazendo uma leitura e um diagnóstico e propondo uma cidade que pudesse cumprir com suas funções sociais, na qual se reconhecesse o direito à moradia, com dois artigos. Um deles é sobre usucapião, o que é muito sintomático, porque é a primeira vez que a função social da propriedade vai ter efeitos jurídicos concretos”, afirmou.

 

Do ponto de vista dos avanços legislativos, a professora citou ainda a Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei 6.766/79), que previa um projeto de parcelamento do solo, a implantação da infraestrutura, o registro imobiliário, e, finalmente, a disponibilidade de lotes para venda. “O que aconteceu no Brasil foi o contrário: primeiro veio a população, e depois a infraestrutura. E é muito complicado e mais caro colocar a urbanização a posteriori”, observou.

 

Lembrou ainda o Estatuto da Cidade, denominação oficial da Lei 10.257/2001, que regulamenta o capítulo "Política urbana" da Constituição brasileira. Seus princípios básicos são o planejamento participativo e a função social da propriedade. “No Brasil, tivemos, nos últimos anos, uma melhoria das condições de moradia nos territórios ou assentamentos autoproduzidos, não por conta de políticas públicas relacionadas ao direito à moradia, mas por um incremento da renda da população, convertido em sacos de cimento e tijolos para a construção de suas moradias”.

 

Os dados do processo de produção irregular de cidade

 

Betânia Alfonsin revelou os dados de ocupação irregular de risco na cidade de São Paulo, às margens dos mananciais Guarapiranga e Billings: 800 mil pessoas, equivalente à metade da população de Porto Alegre. “Não é só por causa dos câmbios climáticos que a população está sofrendo com falta de água. É também por conta de uma gestão urbana ambiental omissa, que permitiu que essa população se produzisse na margem dessas represas sem tomar providências adequadas”, sentenciou.

 

Falou também da geração de territórios urbanos segregados, em condições de subcidadania, sem título garantidor da posse, como as 80 mil pessoas que vivem na Rocinha, no Rio de Janeiro, que “não têm acesso aos bens materiais e simbólicos que traduzem a ideia de cidade, porque sem vias públicas transitáveis,  inacessíveis para a ambulância, o caminhão do lixo, o de bombeiro, e o carro a polícia”.

 

De acordo com a palestrante, há 11 milhões de brasileiros morando em territórios urbanos como favela, loteamentos clandestinos ou irregulares, ocupações de conjuntos habitacionais, cortiços, áreas inapropriadas para fins de moradia e milhões de casas sem “habite-se”, segundo dados do IBGE.

 

A mediação como solução de conflitos fundiários

 

Na sequência, o desembargador Gilberto Passos de Freitas discorreu sobre o tema “Mediação em matéria de conflitos fundiários”. Ele apontou preliminarmente que, no que concerne à matéria de Direito Ambiental tratada na Corte paulista, a maioria das ações versa sobre ocupação irregular de áreas de proteção ambiental.

 

O palestrante sustentou os benefícios da mediação como alternativa para a solução de conflitos fundiários urbanos, diante da insuficiência do modelo adversarial de aplicação da Justiça aos casos concretos. Ele conceituou mediação como “meio extrajudicial não adversarial, método de resolução de conflitos baseado no diálogo, na intercompreensão e na inclusão dos sujeitos na tomada da decisão”. Lembrou ainda a Resolução 87/2009 do Ministério das Cidades, que recomenda: “é o processo que, envolvendo as partes afetadas pelo conflito, instituições e órgãos públicos, entidades da sociedade civil vinculadas ao tema, busca a garantia do direito à moradia digna e adequada e impeça a violação dos direitos humanos”.

 

A propósito da ineficácia do provimento jurisdicional para a solução efetiva dos problemas fundiários urbanos, o professor comentou o ajuizamento da ação civil pública para desocupação de áreas de proteção ambiental do complexo Billings-Guarapiranga, objeto de sentença julgada procedente e confirmada pelo Tribunal, mas não efetivada por óbices materiais, como a indisponibilidade de área para realocação dos moradores a serem destituídos da posse.

 

Além disso, comentou os aspectos negativos ordem administrativa, como a dificuldade do município em fazer a fiscalização da ocupação irregular de áreas reservadas, e da fase de conhecimento processual da ação civil pública para desocupação de áreas de mananciais, como a multiplicidade crescente de invasores ao longo da demanda, dificultado a citação. Diante desse quadro, lembrou que propôs a criação de um grupo de mediação para solução de conflitos ambientais e urbanísticos no âmbito do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemec), aprovado pelo CSM em data recente, tendo sido convidado a supervisioná-lo.

 

Gilberto Passos de Freitas asseverou que a resolução dos conflitos fundiários urbanos por meio da mediação, com a reunião de todos os atores sociais, tem sido um caminho melhor do que aguardar uma sentença judicial e o desfecho do recurso de apelação. E lembrou que, apesar da complexidade, essa nova cultura está sendo disseminada por todo o Brasil. “A mediação tem sido utilizada mesmo em matéria de ocupação de área de mananciais, tida como um bem de interesse público indisponível, relativizada por um novo entendimento doutrinário e jurisprudencial”.

 

Ele lembrou ainda que a Lei da Mediação está para ser aprovada, mas que o Novo CPC, em vigor a partir do ano que vem, torna obrigatória a mediação em todas as ações.

 

ES (texto e fotos)

 


O Tribunal de Justiça de São Paulo utiliza cookies, armazenados apenas em caráter temporário, a fim de obter estatísticas para aprimorar a experiência do usuário. A navegação no portal implica concordância com esse procedimento, em linha com a Política de Privacidade e Proteção de Dados Pessoais do TJSP