Tercio Sampaio Ferraz ministra aula sobre concepção de Justiça no Brasil no curso “Teorias da Justiça”

As concepções da Justiça ao longo da história e seu aproveitamento no Direito contemporâneo brasileiro foram discutidas pelo professor Tercio Sampaio Ferraz Junior na aula de hoje (1º) do curso Teorias da Justiça da EPM. A exposição contou com a participação do diretor da Secretaria da Presidência, Wilson Levy Braga da Silva Neto.

 

Tercio Sampaio iniciou a palestra com a análise da tradição estatuária simbólica da Justiça, a partir de suas representações grega e romana. “Falar de concepções de Justiça num determinado país é uma tarefa que inevitavelmente leva a uma rede de relações que não podem ser imediatamente particularizadas”, alertou. Nesse sentido, asseverou que o tema vem ligado a problemas de diferenciação social que marcam a reflexão desde a antiguidade.

 

A seguir, falou dos objetos e personagens que integram as diferentes representações da estátua da Justiça na tradição ocidental. “O objeto principal e mais difundido é a balança. A personagem mais difundida da Justiça é uma mulher. A Justiça é uma divindade feminina”.

 

O professor ensinou que a representação grega da deusa da Justiça, Teké, é a mais antiga. “A divindade é representada carregando com a mão esquerda levantada uma balança, e empunhando uma espada com a mão direita. Em nosso imaginário, pensamos na balança e também na espada, o que nos faz pensar que a Justiça tem a ver com o equilíbrio e com a força”.

 

Ele referiu como terceiro atributo os olhos vendados da deusa, de onde deriva a expressão comum na língua portuguesa “a Justiça é cega”. Entretanto, esclareceu que, observando as diversas representações, os olhos vendados não são uma representação da Justiça grega, e sim da romana. “Na Grécia, a deusa Diké é uma representação da Justiça em pé e com olhos abertos. Olhos vendados tinha Iustitia, a deusa romana correspondente que, curiosamente, não tinha a espada. Tinha apenas uma balança que segurava com as duas mãos estendidas, sentada”.

 

Levando em consideração as especulações de antropólogos, psicanalistas e filósofos, Tercio Sampaio sustentou que a percepção grega da Justiça - em que a deusa é representada com os olhos abertos, segurando a balança e a espada -, além de associar sua realização às noções de equilíbrio e força,  também estava intimamente ligada ao sentido da visão. “De acordo com a tradição grega, fazer Justiça é ver aquilo que está evidente, descoberto, verdadeiro. Justiça, portanto, é um atributo que precisa da verdade”.

 

Por outro ângulo de análise, afirmou que, na percepção grega da Justiça ligada à evidência, o justo depende daquilo que é e só pode ser um só, pois a visão gera uma unidade.

 

Já na representação romana, em que a deusa comparece com os olhos vendados e a balança nas mãos, o importante para fazer Justiça são os ouvidos. “Os olhos vendados aguçam os ouvidos. Na tradição do Direito romano, a voz é fundamental. Ao contrário do privilégio dos olhos na percepção grega, os dois ouvidos da representação romana são capazes de ouvir coisas diferentes, até ao mesmo tempo. Ao ressaltar a audição, a Justiça romana passou a apontar para um outro lado na percepção da Justiça: a possibilidade e até a exigência da capacidade de ouvir um e outro para a Justiça se realizar”.

 

O professor afirmou, nesse sentido, que a ideia do contraditório, que não chegou a ser um princípio em Roma, mas se tornou princípio na Idade Média, está intimamente ligada ao modo romano de ver a Justiça e, por consequência, o Direito”.

 

As confluências na percepção da Justiça

 

Em prosseguimento, Tercio Sampaio falou sobre as confluências na percepção da Justiça, a balança e a mulher, que está em ambas concepções. “Porque um ente feminino?”, indagou. “Diké era uma deusa telúrica, considerada filha de Geia, a Terra. Não vivia no Olimpo. Ela tem a ver com todo o processo de fertilização da vida. Justiça, assim, está ligada a um processo capaz de gerar a distribuição da vida por toda a parte. Por isso tinha que ser uma mulher e não um homem”, explicou.

 

Por outro lado, esclareceu que a simbologia da balança, uma tradição não só ocidental, guarda relação não só com a noção do equilíbrio, mas também com o modo como encaramos a distribuição da vida em toda a parte.

 

Ele também ensinou que a expressão “direito” também advém da simbologia da balança. “O fiel da balança mostrava quando o equilíbrio entre os dois pratos se realizava. Quando estava reto de cima abaixo, dizia o romano: “temos o fiel de cima abaixo, de recto, daí a expressão Direito. A concepção de Justiça para os romanos, pois, tem a ver com retidão, com o que é reto”.

 

Entretanto, falou da outra balança, já existente em Roma ao tempo da sistematização do Direito, a de um só prato, onde o equilíbrio não é dado por um fiel, mas por um peso, que serve para dar a medida, o pondos. “Da palavra pondos vem uma palavra importante para o Direito contemporâneo, especialmente no Brasil, que se chama ‘ponderação’. Nós estamos hoje envolvidos por teorias da ponderação, ‘neoconstitucionalismo da ponderação’, ‘ponderação de princípios’”. Mas advertiu aqueles que pensam em colocar um princípio em um prato e outro em outro prato da balança e tentar o equilíbrio entre vida e liberdade, por exemplo. “Quem sopesa com um só prato há de ter bem justo seu ponto de apoio. Ponderar não significa colocar em dois pratos e sim em um prato, mas tendo por outro lado um peso fundamental, capaz de medir todo e qualquer objeto”.

 

Sentido relativo e absoluto da Justiça

 

Adiante, o professor falou do sentido relativo e absoluto da concepção de Justiça, “duas hipóteses coexistentes na concepção contemporânea do Direito”. Ele esclareceu que, de acordo com a tradição romana, do ponto de vista da horizontalidade da balança de dois pratos, Justiça é sempre comparação, uma percepção relativa, ao contrário da verticalidade da Justiça do pondos, que guarda relação com o absoluto. “São duas formas de mensuração humanas e universais. Uma, vertical, com um sentido animal enraizado entre nós; outra, horizontal, que aponta para uma fórmula mais humana”. Acerca do manejo das fórmulas para a busca da equação entre o equilíbrio e o justo, ele lembrou ainda a origem latina comum das palavras vingar e reivindicar: vindicare.

 

E sustentou que o Direito brasileiro lida com as duas fórmulas da tradição clássica romana. Exemplificou com o modelo horizontal do equilíbrio da balança, próprio da distribuição buscada no Direito Civil, e com o modelo vertical do equilíbrio, próprio da retribuição buscada do Direito Penal. E ainda do conceito de hipossuficiência, atrelado à noção de Justiça social, presente no Direito trabalhista e no Código do Consumidor. “Na busca do equilíbrio, o modelo vertical perturba: ele tem alguma coisa de animalesco”, asseverou, ao comentar as gradações das penas, inclusive a de morte, em alguns estados nacionais.

 

Falou, finalmente, das relações entre igualdade e identidade, temas caros à ideia de Justiça contemporânea, aquela referida em mais de um artigo da Constituição brasileira, da importância da manutenção das diferenças pela chamada prática jurisdicional principiológica da “desigualdade em nome da igualdade”, assimetria presente nos princípios da Justiça social, uma  “fórmula difícil, porque junto com a Justiça vem a ideia de bondade”.

 

ES (texto e foto)


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