Juízes debatem Direito e Economia na EPM

No centro da discussão, a independência ao Banco Central e sua transformação em um quarto poder, com status de corte constitucional, desvinculado das incertezas políticas, como se tem desenhado no plano internacional


O professor Jean Paul Cabral Veiga da Rocha foi o expositor do Encontro para magistrados interessados em Filosofia – trocas de experiências filosóficas, realizado na EPM, no último dia 3, sob a coordenação do desembargador Eutálio José Porto de Oliveira e da juíza Camila de Jesus Mello Gonçalves. O evento teve como tema “Direito, moeda e sociedade” e como subtema “Direito, moeda, democracia e separação dos poderes: o discurso tecnocrático e a constitucionalização do poder monetário”.

 

Jean Paul Rocha iniciou a exposição com uma definição do pano de fundo teórico: uma reflexão baseada no livro Economia e sociedade, do pensador alemão Max Weber (1864-1920). Ele comentou preliminarmente o caráter profético do autor, que descortinou em sua obra, “uma visão trágica da sociedade capitalista”, fundada na descrença no socialismo já em seu nascedouro e prenunciadora da tendência à degeneração autoritária dos estados nacionais, com ênfase nos efeitos perversos da tecnocracia.

 

“Na visão weberiana, grosso modo, a sociedade vai ficando mais racional, o Estado vai ficando mais complexo, as empresas vão se profissionalizando e ficando mais sofisticadas, e é como se fosse se espraiando pela sociedade uma racionalidade instrumental. Isso tende a sufocar, no limite, a liberdade do indivíduo, e é um desafio à democracia representativa, pois cada vez mais as decisões e os rumos de um projeto nacional passam a ser tomados de forma tecnocrática, e não de forma democrática”, resumiu o palestrante.

 

Tecnocratização socioeconômica e função da moeda

 

O expositor especulou sobre o que o teórico diria sobre aspectos gerais da tecnocratização fora da democracia representativa, como os rumos de nossas vidas e de nossas economias, definidos pelo regime de meta de inflação, nível de emprego e de renda, crescimento econômico e inflação. Também considerou no exercício os parâmetros técnicos internacionais de solidez bancária e relação entre quanto os bancos criam em termos de ativos e o seu patrimônio líquido. Sob esse aspecto, asseverou que as políticas financeiras são decididas em um foro tecnocrático de bancos centrais do mundo inteiro – o Acordo de Basileia, já em sua terceira versão – e incorporadas diretamente no ordenamento jurídico nacional dos países, sem passar pelo congresso nacional.

 

“Até hoje não se chegou a uma solução pacífica sobre os limites da delegação legislativa para órgãos burocráticos do Poder Executivo. E a questão é saber como controlar o poder econômico democraticamente, sem inviabilizá-lo”, pontuou o professor. E discutiu uma proposta de emenda constitucional de autoria do professor Fabio Konder Comparato, para criação de órgãos normativos autônomos, “dotados de poder normativo e de polícia, para regular a moeda e o crédito e outros setores determinados da ordem econômica e social”.

 

Adiante, o palestrante discorreu sobre a função da moeda nos estados nacionais, como instrumento de intermediação de trocas, medida e reserva de valor, função liberatória e padrão de pagamentos diferidos da concessão de crédito, base do investimento, produção e consumo.

 

Ele lembrou que o problema do descrédito da moeda nacional causado pela inflação brasileira foi resolvido com a criação da correção monetária, uma solução admirada por muitos países por seu engenho. “Do ponto de vista conceitual, adotamos a correção monetária como um mecanismo jurídico e psicológico, de modo a manter a inflação sob controle e não renunciar à soberania monetária. Esse artifício paralelo salvou a economia do país e permitiu que ela funcionasse, mas se tornou uma armadilha, porque desenvolvemos a cultura da indexação e queremos sempre cláusulas automáticas de correção monetária nos contratos”, sustentou o professor.

 

A visão estrutural da macroeconomia

 

Na sequência, Jean Paul Rocha delineou o que considera equivocado na agenda jurídica doutrinária para a área bancária brasileira: “nós nos perdemos em debates doutrinários que não vão ao âmago dos problemas, algo que teria sido evitado se houvesse uma compreensão mais clara do que é macroeconomia e função da moeda”.

 

Ele afirmou que a agenda é equivocada porque partiu de premissas equivocadas, de falsos problemas, e de uma certa mistificação da atividade bancária. Entre os falseamentos, citou como exemplos os “debates extenuantes, que não entendiam a questão macroeconômica subjacente, ficando na letra da lei e numa confiança otimista no poder de enquadramento do Direito e da Constituição, como o tabelamento constitucional dos juros, a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor ao sistema financeiro e a questão ainda não resolvida da ideia de que há um vácuo regulatório no sistema financeiro”.

 

De acordo com o palestrante, “os economistas e os cientistas políticos precisam conhecer a costura interna do Direito, pois costumam trabalhá-lo com o conceito formalista do positivismo jurídico, e não percebem toda a sofisticação da hermenêutica pós-positivista, a diferença entre princípios e regras, nem qual é a ideia entre razão prática e o vínculo interno entre Direito e Moral”. Em sua opinião, ao invés da discussão episódica sobre legalidade ou constitucionalidade de medidas, a verdadeira agenda para o pensamento jurídico há de reduzir a desvantagem dos juristas em relação aos economistas, que pensam em ter o monopólio do debate, fazendo uma abordagem mais estrutural.

 

Em primeiro lugar, apontou a necessidade de superação da ideia de que apenas o Banco Central cria a moeda que os bancos redistribuem pelo corpo econômico. “Os bancos não fazem somente intermediação financeira entre unidades superavitárias e deficitárias, emprestando-a e cobrando juros. Bancos comerciais criam moeda através de empréstimos sucessivos do mesmo dinheiro”, asseverou.

 

Na visão do expositor, a consequência imediata dessa lógica do sistema foi a financeirização da economia. Ele explicou que o fenômeno não se define somente pelo fato de os bancos criarem moeda, mas também pelo fato de que essa criação de moeda, antes a serviço do setor produtivo, passou a ter vida própria, e o lucro derivado de receitas estritamente financeiras, inclusive de gigantes industriais, passou a superar aquele derivado da venda dos bens produzidos. “Grandes montadoras de veículos passaram a ter mais lucro com o financiamento do que com o próprio valor de venda do veículo”, sustentou.

 

A reformulação do desenho institucional

 

Em prosseguimento, sustentou a necessidade de separação entre conceito e desenho institucional. E explicou que “conceitualmente,  stricto sensu, a autoridade monetária do Banco Central não cria normas ou regula; apenas emite moeda e usa instrumentos de política monetária para calibrar inflação e oferta de moeda. Já a regulação do mercado financeiro é algo mais amplo, pois implica criar as regras gerais para a bolsa de valores, regras contábeis para os bancos e para os derivativos (contratos nos quais se estabelecem pagamentos futuros).

 

O palestrante criticou a visão de curto prazo da classe política contra a necessidade do horizonte de longo prazo das decisões e explicou que, do ponto de vista institucional, embora as funções possam estar misturadas, dependendo do desenho jurídico de cada país, uma abordagem mais ampla da regulação financeira passa pela necessidade de reformulação do desenho institucional, com separação clara entre autoridade monetária e órgão de regulação, independência da autoridade monetária e criação de uma agência reguladora única.

 

Em um aprofundamento de questões filosóficas em torno do tema do discurso tecnocrático, comentou a tese do “quarto poder” que seria constituído pelo Banco Central e pelas agências reguladoras. De acordo com a tese, o Banco Central deve ter a mesma independência e status de uma corte constitucional, e ser constituído para ter um papel contramajoritário em defesa dos interesses econômicos nacionais, uma instituição “legitimamente tecnocrática e paradoxalmente democrática”.

 

Entretanto, ponderou que, “ao invés de esperar o efeito colateral de um desenho institucional mal resolvido, como é o caso brasileiro, a contribuição dos juristas é repensar as instituições de maneira a azeitar as relações entre os órgãos, sem fazer retrabalho, sem agregar burocracia, agregando sofisticação regulatória”. E sustentou que o pensamento jurídico não tem que ser uma espécie de parceiro de segunda classe desse debate, alguém que apenas transforma em legislação aquilo que os economistas acham bom. “O papel do jurista na democracia é repensar as instituições, não só em seu aspecto de eficiência, mas também de legitimidade. É nessa tensão entre legitimidade democrática e eficiência é que se situa o debate”, resumiu Jean Paul Rocha.

 

ES (texto e fotos)

 


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