Aplicabilidade dos tratados internacionais de direitos humanos é analisada na EPM

O juiz do TJRS Ingo Wolfgang Sarlet ministrou palestra “A aplicabilidade dos tratados internacionais de direitos humanos pelos juízes brasileiros” na EPM, último dia 25. A aula fez parte da programação do curso Direitos humanos em Juízo e contou com a participação da juíza Camila de Jesus Mello Gonçalves, coordenadora do curso e da área de Filosofia e Direitos Humanos da Escola.

 

O palestrante examinou os dispositivos constitucionais que regulam a  incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro e aspectos relacionados ao controle e aplicação prática desses mecanismos jurídicos.

 

Ingo Sarlet assinalou em princípio os três principais tratados internacionais de direitos humanos, ratificados desde o início dos anos 1990 pelo Brasil: a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, OEA, 1969, promulgada pelo Decreto 678/92); o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU, 1966, promulgado pelo Decreto 591/92); e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966, promulgado pelo Decreto 592/92).

 

Contudo, ele observou, no que concerne à aplicação direta desses institutos no sistema jurídico brasileiro, que referidas normativas são subutilizadas, tratando-se de “um tema quase ficcional, porque é como se não existissem na nossa experiência cotidiana”. Sob esse aspecto, citou como exemplo o desenvolvimento da audiência de custódia (objeto de projeto-piloto em São Paulo e no Rio Grande do Sul), cuja regra determina a apresentação do preso à autoridade judiciária responsável pela prisão no prazo de 24 horas, e que envolve a aplicação do Pacto de São José da Costa Rica. “Ainda há resistências, sob o argumento de que a audiência de custódia sequer integra a ordem jurídica brasileira”.

 

Mas Ingo Sarlet ressalvou, por outro lado, que embora haja resistência cultural e dificuldades concretas para a aplicação dos tratados, estamos avançando numa cultura de conhecimento e de aplicação, e que há ambientes judiciários, como a área da Infância e Juventude e a do combate à violência doméstica e à discriminação, nas quais vige maior preocupação com a aplicação dos estândares internacionais de direitos humanos.

 

“Temos que ser prudentes em generalizar e afirmar uma cultura que apenas se nega a aplicar tratados”, ponderou o palestrante. E para desfazer a impressão de uma cultura jurídica refratária, explicou que a constitucionalização das convenções internacionais ocorreu antes de sua ratificação, na Constituição Federal de 1988. Como consequência prática dessa internalização, a aplicação da Constituição substitui em grande parte a aplicação dos tratados internacionais. E lembrou, como exemplo, a proteção integral à criança.

 

Também recordou que a ausência de conflito normativo direto entre a Constituição e o sistema de garantia internacional dos direitos humanos  é um fator que contribui para que os juízes brasileiros valham-se da ordem jurídica e não precisem recorrer aos tratados. “A Constituição é tão rica em direitos e garantias que, se cotejada com os tratados, verifica-se uma sintonia substancial, quase simetria, ao menos quanto à enumeração dos direitos como tais”, afirmou o palestrante.

 

Pressupostos de aplicabilidade dos direitos humanos

 

Em prosseguimento, Ingo Sarlet apontou uma distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais. Ele asseverou que os estados constitucionais não são obrigados a ratificar os tratados internacionais de direitos humanos. E exemplificou com o ordenamento jurídico da Indonésia – país que não os ratificou, e cuja constituição não baniu a pena de morte. “Ao aplicar a pena de morte a traficantes condenados em data recente, a Indonésia não está violando direitos fundamentais ou humanos, embora possa estar violando uma certa noção de direitos humanos em uma perspectiva moral e universalizante de um patamar ético-jurídico mínimo”, explicou.

 

O palestrante assinalou, por outro lado, direitos fundamentais da Constituição que não são direitos humanos, como o 13º salário, o terço de férias, o fundo de garantia por tempo de serviço, o mandado de injunção e o mandado de segurança.

 

Adiante, discorreu sobre os pressupostos de aplicabilidade dos direitos humanos. Falou do pressuposto formal, que diz respeito ao processo de incorporação desses tratados à ordem jurídica interna, tendo comentado o artigo 84 da Constituição – uma cláusula genérica que dispõe a competência do presidente da República para a celebração de tratados e acordos internacionais e para submetê-los ao Congresso Nacional – e o artigo 49, que atribui ao Congresso a competência para dispor em caráter definitivo sobre acordos e tratados internacionais que acarretem gravame ao patrimônio nacional.

 

“Na prática, os tratados de direitos humanos internacionais têm sido incorporados no ordenamento jurídico brasileiro mediante decretos do Legislativo, como foi o caso da aprovação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto Legislativo no 186/2008)”, comentou o professor.

 

Ele mencionou ainda a inserção do § 3º no artigo 5º da Constituição, pelo qual criou-se um procedimento especial dedicado apenas a tratados em matéria de direitos humanos. Reza o dispositivo que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.

 

De acordo com o palestrante, essa regra específica gerou importantes discussões doutrinárias em relação à matéria, ainda sem resposta jurisprudencial do STF. Uma delas é se o dispositivo não seria inconstitucional, sob o argumento que estaria dificultando a incorporação dos tratados de direitos humanos em relação ao modelo anterior. Outra discussão, considerada mais relevante do ponto de vista prático, é que o sentido literal do texto aponta para a facultatividade do procedimento de incorporação dos direitos humanos.

 

Controle de convencionalidade e de constitucionalidade

 

Ingo Sarlet falou, finalmente, sobre controles de convencionalidade e de constitucionalidade, no que diz respeito a matérias de direitos fundamentais e direitos humanos, suas distinções e possibilidades de convergência ou conflito entre eles. E chegou a três hipóteses em que pode haver um conflito no plano de controle da convencionalidade externo ou interno. “Um é o conflito normativo objetivo, quando o texto do direito objetivo interno viola ou está em desacordo com o tratado, menos frequente. O segundo nível de conflito é interpretativo, quando a interpretação que os juízes fazem do direito interno sobre determinada matéria vai em desacordo com a interpretação que os juízes internacionais fazem do direito internacional, mais frequente. O terceiro nível é quando não há maior dificuldade da interpretação do direito interno em relação ao internacional, mas há um déficit fático de execução”.

 

Quanto ao último caso, ele exemplificou com a legislação penal pátria, “um modelo para o mundo em termos de garantia e segurança do preso, que vai muito além dos patamares mínimos que os tratados estabelecem, mas que esbarra nas dificuldades de execução e nas deficiências do sistema prisional. Na prática, se traduzem como um descumprimento fático, de não realização dos parâmetros, e acaba violando tanto a lei interna quanto a convenção”.

 

ES (texto e foto)


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