Autorização judicial para o aborto de feto anencefálico é discutida no curso “Direitos humanos em Juízo”

O debate sobre o tema “O direito à vida e a autorização judicial para o aborto – o caso do feto anencefálico” deu sequência hoje (8) ao curso Direitos humanos em Juízo da EPM. A palestra foi proferida pela professora Marta Rodriguez de Assis Machado e contou com a participação dos coordenadores do curso, desembargador Fernando Antonio Maia da Cunha, diretor da EPM, e a juíza Camila de Jesus Mello Gonçalves, coordenadora da área de Filosofia e Direitos Humanos da Escola.

 

Marta Machado apresentou um panorama dos debates que culminaram na decisão da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 54, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) em 2004 e julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012. Por maioria de votos (8 a 2), a Corte julgou procedente o pedido, para declarar a inconstitucionalidade de interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal. Ficaram vencidos os ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso, que julgaram a ADPF improcedente. “Minha intenção é discutir como a lógica interna do Judiciário vê essa decisão, e como é que os que lidam com conflitos morais dessa magnitude movem-se dentro de um tema tão complexo”, anunciou a palestrante.

 

Ela recordou que, à época dos debates institucionais e públicos em torno do aborto por anencefalia (malformação congênita do feto, por ausência de crânio e de encéfalo), tinha havido um fechamento da discussão genérica sobre o aborto no âmbito parlamentar e no Ministério da Saúde, por razões de ordem política e moral, verificando-se uma contrapartida com a abertura do Judiciário para o debate em torno da ADPF 54. E comentou o enquadramento discursivo do caso: “em nenhum momento, a linguagem utilizada na petição fala em “aborto”, e sim em “antecipação terapêutica do parto”. Para a palestrante, essa análise revela a construção de “uma estratégia muito fina, para diferenciar esse caso da discussão do aborto, moralmente controvertida”.

 

A professora comentou as duas hipóteses de aborto legal previstas no Código Penal de 1940 – quando a gravidez implica risco à saúde da mulher ou quando é fruto de estupro – e lembrou o estado político e jurídico da questão à época da discussão da matéria no Supremo. “A questão não era nova para o Judiciário. “Desde 94, havia uma discussão sobre a possibilidade ou não desse caso ser interpretado como uma excludente à norma penal. Havia uma norma técnica do Ministério da Saúde que admitia o aborto nesses casos, controvertida e debatida no Judiciário, e muitas mulheres grávidas nessa situação entravam com ação pedindo autorização judicial para o aborto”.

 

A palestrante salientou a importância da decisão, a primeira mudança na regulação jurídica do aborto desde 1940. “Embora o aborto legal estivesse previsto desde 1940, tratava-se de um direito que ninguém sabia como implementar, e as primeiras normas técnicas que permitiram que fosse realizado datam do início dos anos 2000”. Ela lembrou a fala de dois ministros sobre a importância da decisão. Marco Aurélio Mendes salientou o fato de o Brasil ser o quarto país do mundo com incidência de fetos anencéfalos; Cezar Peluso classificou o caso como o mais importante da história do STF, porque nele se definiria o alcance constitucional da proteção da vida.

 

Marta Machado comentou a participação decisiva de movimentos sociais na discussão por meio da audiência pública realizada em 2008, quando entidades religiosas, médicas, feministas, protetoras de direitos de deficientes, etc., puderam falar como interessados. “Foi o segundo caso de participação da sociedade civil como “amigos da corte”, os amici curiae. O primeiro foi o caso das pesquisas com células tronco”.

 

Conceito biológico versus conceito jurídico

 

Em prosseguimento, a palestrante comentou a instauração de um debate que extrapolou os limites do caso em discussão: a relação entre Direito e Ciência e o sopesamento de quanto a decisão jurídica sobre a vida deveria ou não estar ligada ao seu conceito científico. “De acordo com a ministra Rosa Weber, a própria Ciência não é unívoca, tem conceitos diferentes do que pode ser vida. Logo, o conceito jurídico não tem como tomar a Ciência como verdade, até porque a ideia de verdade sequer existe na Ciência”, pontuou. E comentou, a propósito, posição filosófica segundo a qual o Direito acaba internalizando a Ciência como uma espécie de argumento de autoridade. “Isso fica claro nas manifestações dos amici curiae, em que se verificam argumentos científicos divergentes, e a vida aparece como o valor mais importante do ordenamento jurídico, quando o próprio ordenamento jurídico traz relativizações”, observou.

 

Marta Machado falou ainda de outras controvérsias suscitadas. Para ela, as duas questões mais importantes discutidas nos votos são conceito de vida e como se dá a proteção do direito em relação à vida, se é ou não absoluta, desde quando o nascituro precisa ser protegido e em que circunstâncias, e questões laterais como o direito das mulheres, eugenia (termo criado em 1883 por Francis Galton (1822-1911), significando "bem nascido") e discriminação, papel do STF, papel do Direito Penal, laicidade, e possibilidade de servir como precedente.

 

No plano da discussão substantiva, a palestrante assinalou “uma divergência enorme sobre como o Direito deve relacionar-se com o conceito científico de vida”. Ela comentou a argumentação de três ministros que fizeram uma analogia com a Lei de Transplante de Órgãos, na qual a morte é conceituada como morte cerebral. Sob esta ótica, se para o Direito o fim da atividade cerebral representa a morte, um feto sem atividade cerebral (anencéfalo), não é um feto com vida.

 

De acordo com a palestrante, quatro ministros falam da potencialidade de vida extrauterina. Estes reconhecem a vida enquanto essa vida for viável. “O ponto sensível da discussão é a falta de clareza quanto ao que seja viável. Mas a ministra Rosa Weber adiciona à potencialidade de vida um requisito específico: a capacidade do ser fazer parte do convívio social. Esta posição foi rebatida por Cezar Peluso, para quem não se pode estabelecer a superioridade de uma vida sobre outra”.

 

“De acordo com diferentes conceitos de vida, a posição majoritária de cinco ministros foi a de que o feto anencéfalo não tem vida e, portanto, trata-se de uma conduta atípica. Quatro ministros, entenderam que o feto anencéfalo tem vida. Dois deles entenderam que tem vida, porém num segundo passo da teoria da aplicação do delito, chegaram à conclusão de que, embora tenha vida, balançando os valores protegidos pelo Direito, a conduta não deve ser criminalizada, tratando-se conduta típica, porém não antijurídica. Dois ministros, com votos dissidentes, entenderam que era ainda uma hipótese de crime, fato típico, antijurídico e culpável”, comentou Marta Machado.

 

A palestrante observou que, embora houvesse como pano de fundo do debate a questão dos direitos da mulher, nenhum ministro a decidiu com base na discussão desses direitos, “mas a questão aparece na ponderação dos ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Joaquim Barbosa, para os quais o sofrimento psíquico de carregar o feto anencéfalo seria equiparável à tortura, ferindo a dignidade humana. Aduziu ainda que eles também falam da questão da liberdade, autonomia e direito de escolha da mulher.

 

Ela observou, finalmente, que a decisão do STF sobre a ADPF 54 não criou precedente sobre o conceito de vida. “Os passos para a decisão da interrupção da gravidez no caso do anencéfalo não se enrijecem como precedente. O Judiciário não fecha a questão e o conceito de vida remanesce em aberto. Decide as questões mais urgentes, mas não decide todos os embates políticos e morais da sociedade”.

 

ES (texto e fotos)


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