Filosofia de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino são analisadas na EPM

A palestra “A Filosofia medieval: Santo Agostinho e São Tomás de Aquino”, ministrada ontem (8), pelo desembargador Vicente de Abreu Amadei, deu sequência ao curso Os clássicos do pensamento político da EPM. A aula contou com a participação do desembargador Eutálio José Porto Oliveira, coordenador do curso e da área de Filosofia e Direitos Humanos da Escola, e do professor Rodrigo Suzuki Cintra, subcoordenador do curso.

 

Vicente Amadei discorreu sobre o sistema filosófico cristão, desenvolvido na Idade Média por Santo Agostinho (354–430) e São Tomás de Aquino (1225–1274). Imbricada na Teologia, essa filosofia recebeu influxos do pensamento helenístico grego. A influência neoplatônica está no pensamento de Santo Agostinho, para quem Deus é visto como meio de conhecimento da verdade e da justiça. A influência aristotélica, em São Tomás de Aquino, cuja racionalidade do pensamento político leva ao axioma de que o fim verdadeiro do governo é o bem comum.

 

O palestrante iniciou a exposição com um resumo histórico-filosófico da Idade Média, período que marca a transição entre o antigo e o moderno. Ele comentou a dificuldade de enquadramento histórico de Santo Agostinho, “filósofo da antiguidade para uns, medieval para outros”, um dos iniciadores da Patrística, sistema filosófico em defesa da fé cristã contra o paganismo.

 

Articulação entre Filosofia Política e Teologia

 

Vicente Amadei asseverou que a articulação entre razão e fé estão plantadas e abertas com Santo Agostinho, para o qual a Ética, a Filosofia Política e a História dependem de Deus. Ele apontou a centralidade da Filosofia agostiniana – Deus e o amor. E comentou a vertente metafísica de sua reflexão filosófica, de acordo com a qual o verdadeiro filósofo é amante de Deus, e só se chega à verdade pelo amor, cuja expressão é a caridade. Também falou da teoria do conhecimento elaborada pelo filósofo, de inspiração platônica cristianizada, o qual se alcança pela iluminação divina. Na senda dessa teoria, não há conhecimento sem amor; a alma chega a Deus pelo homem interior (intimidade e confissão), numa relação espiritual de amor.

 

Do ponto de vista da Ética e da Filosofia Política, Deus é a fonte e a direção; o amor é a medida de justiça no agir que caminha para a Cidade de Deus, porque a ordem social é prolongamento da ordem moral: reta ordem do amor da vida em comunidade.

 

Adiante, comentou os fundamentos da Filosofia Política agostiniana representada na construção do continuum Cidade dos Homens–Cidade de Deus, representações do lugar terreno e temporal onde pisam os homens com suas agruras e do páramo celestial e eterno onde deve repousar seus olhos e seu coração.

 

De acordo com o filósofo, a Cidade dos Homens é fundada no amor próprio, que leva ao desprezo de Deus, ao passo que a Cidade de Deus é fundada no amor de Deus, que leva até ao desprezo de si próprio, pelo martírio de Cristo; aquela é uma realidade sensível, esta uma realidade mística, encarnada. Na Cidade dos Homens habita o cidadão do mundo, na Cidade de Deus, o peregrino rumo ao céu.

 

O palestrante ensinou que, para Santo Agostinho, embora seja inútil edificar a cidade perfeita na Terra, porque somos “peregrinos terrestres” rumo ao fim celeste, a coexistência harmônica das duas cidades é possível. O Estado, as leis e o Direito das cidades históricas devem ser confrontados com aqueles da cidade celeste. Nesta perspectiva, a teleologia da Cidade dos Homens é propiciar a paz social, preparando com isso a Cidade de Deus. Para tanto, é preciso que a Cidade dos Homens oriente-se e imite em parte a Cidade de Deus com fundamento no amor e harmonizando o bem pessoal (desejo de felicidade), o bem comum (político), e o bem absoluto (Deus), no foco do princípio de totalidade. A preservação da ordem de paz, por outro lado, supõe o direito natural enquanto necessidade de observância a duas normas fundamentais: a) “evitar o mal” (ou “não fazer o mal a ninguém”); b) “ajudar o necessitado” (“socorrer todos os que padecem de necessidades”).

 

O bem absoluto no horizonte humano

 

“Haveria na construção Cidade dos Homens–Cidade de Deus um dualismo platônico ou uma visão centrada na dualidade conflitante matéria/espírito, mal/bem, etc.? – questionou Vicente Amadei. E concluiu pelo dualismo aparente. “Para Santo Agostinho, a contradição está na realidade, mas não há um dualismo. Mal é privação de bem; em si, o mal é um nada; despido de causa eficiente, é deficiente”.

 

Dessa construção é que exsurge o bem absoluto como um aceno de esperança, pois para Santo Agostinho, “existe natureza em que não há nenhum mal nem pode haver mal algum. Mas não pode existir natureza alguma em que não se ache algum bem. Portanto, como natureza, nem a própria natureza do diabo é mal. Sua perversidade é que a torna má”. Noutra parte desse pensamento positivo que deve reger a ordem do mundo, cintilam outros axiomas: “eis a ordem que se há de seguir: primeiro, não fazer mal a ninguém; segundo, fazer bem a quem a gente possa”; “o povo é o conjunto de seres racionais associados pela concorde comunidade de objetos amados”;  “a casa deve ser o princípio e o fundamento da cidade. Todo princípio relaciona-se com seu fim e toda parte com seu todo”.

 

Como derivação dessa filosofia, cuja base assenta-se na noção de que apenas por meio de Deus (e não da experiência sensível) conhecemos a verdade, o bem, a justiça, situam-se sentenças formuladas no campo da Filosofia do Direito, como estas: “uma lei que não seja justa não é lei”; “onde não há verdadeira justiça não pode existir verdadeiro direito”; “não devem chamar-se Direito as iníquas instituições dos homens, pois eles mesmos dizem que o Direito mama da fonte da justiça e é falsa a opinião de quem que erradamente sustente ser Direito o que é útil ao mais forte”; “Desterrada a justiça, que é todo reino, senão grande pirataria?”.

 

A ordem política na ordem universal regida pelo bem

 

Em prosseguimento, Vicente Amadei ensinou que a mesma imbricação da Filosofia na Teologia para a compreensão da ordem do universo é feita por São Tomás de Aquino. Para o filósofo, as categorias Ser, Verdade e Bem, são aspectos ontológicos de uma mesma realidade: Deus. E vem dele a máxima de que “é o homem, por natureza, animal social e político”.

 

De acordo com a filosofia política de São Tomás de Aquino, apoiada em bases racionais aristotélicas, todo homem age de modos diversos para um fim, daí a natural necessidade de governo da multidão, que mantenha a unidade e a direção ao fim comum que os une.

 

O palestrante apresentou, por sua atualidade, um fragmento da obra de Filosofia Política De regimine principium ad regem Cypri, ou De Regno, em que o filósofo aconselha o rei de Chipre: “governar é conduzir convenientemente ao devido fim a coisa governada. Diz-se, assim, que uma nau é governada, quando, pela habilidade do navegante, é dirigida ilesa ao porto, pelo caminho reto (...); uma coisa dirige-se retamente quando vai para o fim conveniente (...). Se, pois, a multidão é ordenada pelo governante, ao fim dela, o regime será reto e justo, como aos livres convém. Se, contudo, o governo se ordenar, não ao bem comum da multidão, mas ao bem privado do regente, será injusto e perverso o governo”.

 

Para o filósofo, a Ética envolve a Política e o Direito, e a justiça tem sede na vontade. Seu valor social está no foco da alteridade, uma visão de justiça particular e distributiva, de raiz aristotélica. A cidade – civitas – é, para São Tomás, a comunidade perfeita, pois o critério para esta perfeição é o da suficiência para todas as coisas necessárias à vida.

 

O palestrante terminou a exposição lembrando que, embora sejam diversos os caminhos em que Santo Agostinho e São Tomás de Aquino trilham – um, de base platônica; outro de base aristotélica –, em ambos existe uma identidade de luz.

 

“Em Agostinho, a luz ilumina o interior, a mente; em São Tomás, essa luz ilumina o externo, as coisas das quais vai partir a sua construção. Um e outro, entretanto, têm bem presente a luz de Deus, que vem iluminar a luz da razão. A razão penetra a realidade das coisas e das ideias, e essa luz divina vem em auxílio à luz da razão, tanto em um quanto em outro. Em ambos, elas penetram a ordem do universo. Dentro dessa ordem universal, desse princípio que é do bem em totalidade (do bem pessoal, do bem comum e do bem absoluto), encontra-se a ordem política. E ela se encontra numa tradição greco-romana-cristã, pautada na objetividade pela realidade das coisas e dos universais e, ainda, pautada numa construção ética, em que a Filosofia Política e a Filosofia do Direito estão fundadas na metafísica. E tem um lastro ontológico, que a modernidade e a pós-modernidade não têm ou, melhor, é indiferente e, de alguma forma, sofre os efeitos desta falta, que sequer sente ante a sua arrogância antropocêntrica, ou a sua perda da noção de fim, de bem e de verdade, e que reduz boa parte de seu pensamento e de seu agir político a mero exercício arbitrário de força, seja econômica, ideológica-partidária ou meramente individual”.

 

Por fim, Vicente Amadei chamou a atenção para a importância dos dois pensadores e para a necessidade de um estudo mais profundo de seus pensamentos, “revigorando o que neles nós podemos aprender de conteúdo ético e moral para uma vida política digna”.

 

ES (texto)

 


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