EPM inicia o curso “Hermenêutica Constitucional e Filosófica”
Com a aula “Fundamentos filosóficos da Hermenêutica Constitucional”, o professor Alysson Leandro Barbate Mascaro realizou ontem (16), na EPM, a primeira das quatro palestras do curso Hermenêutica Constitucional e Filosófica. Participaram do evento os coordenadores do curso e da área de Direito Público da EPM, desembargador Paulo Magalhães da Costa Coelho e juiz Luis Manuel Fonseca Pires.
Na abertura, Paulo Magalhães saudou os participantes presenciais e a distância, frisando que “não é uma tarefa simples reunir um grupo tão expressivo de interessados num curso de hermenêutica constitucional, notadamente com uma fundamentação filosófica, daí a nossa alegria e o nosso reconhecimento pela aceitação do convite”.
Ao iniciar sua exposição, Alysson Mascaro salientou: “o nosso sonho de pensar o Direito de modo melhor não é por nenhuma razão de diletantismo, mas porque, para o nosso tempo, quanto mais pudermos avançar na compreensão do Direito e da sociedade, melhor poderemos postular uma compreensão social que possa ser transformadora, e que possa um dia a humanidade se orgulhar da Justiça plena de toda essa ação jurídica”. E ensinou a origem da Hermenêutica (ciência da interpretação), cujo primeiro registro, mitológico, refere a interpretação que o deus Hermes, o mensageiro, fazia da vontade ou dos desígnios dos deuses aos homens”.
“Quando se falava na Grécia antiga em Hermenêutica, não se pensava em Direito. Pensava-se na interpretação dos seres humanos em conversa e, mitologicamente, na relação dos seres humanos com os deuses, por meio de sinais, interpretados pelo deus Hermes. É depois de muito tempo que recorremos ao assunto da Hermenêutica para falar, via de regra, a respeito de textos e palavras”, ensinou Alysson Mascaro.
De acordo com o palestrante, é nesse contexto evolutivo tardio que surge a Hermenêutica jurídica. Antes dela, “a religião foi o primeiro escopo do trabalho hermenêutico textual, que se levantou na Idade Média como um problema fundamental de interpretação dos códigos religiosos, notadamente a Bíblia”. E sustentou que a interpretação religiosa é que foi consolidando as técnicas de entendimento acerca da palavra de Deus, ao nível gramatical, lógico e sistemático.
“Esse estágio da Hermenêutica é confortável para o intérprete, tanto da hermenêutica religiosa quanto jurídica. O problema começa com a axiologia (valores) da interpretação da norma, com a interpretação histórica, sociológica e evolutiva do sentido da palavra”, observou.
O horizonte da experiência média e da interpretação uníssona
O palestrante lembrou que, nas sociedades absolutistas, o problema da interpretação da norma não era relevante. Entretanto, com o advento do capitalismo, assentado em sociedades concorrenciais, com burgueses, trabalhadores e normas múltiplas enfeixadas em códigos, ampliam-se as interpretações de mundo e a contradição de horizontes.
“No contexto jurídico do absolutismo, o juiz, a mando do rei, tinha critérios hermenêuticos próprios, ao passo que, no presente, aprende-se a Hermenêutica jurídica, porque o capitalismo tem que dar solução final ao problema das pluralidades normativas. Até duzentos anos passados, desempatava-se a Hermenêutica pela vontade de quem mandava, por meio de uma lista de preceitos. Hoje, o horizonte do jurista não depende só da faculdade, mas da experiência média, que vai se postulando na mesma modulação, como se fosse algo natural. O juiz, por exemplo, advém de uma classe média ou média alta, que tem um mesmo grau de valor. A interpretação uníssona leva à crença de que o Estado é a ordem, e é praticamente universal que a classe média reconheça no Estado o seu salvador, numa visão que tende a fluir para um mesmo ângulo ou prática reiterada de intelecção do mundo”, sustentou Alysson Mascaro.
Adiante, ele discorreu sobre o problema das antinomias e contradições do texto religioso, que assinala a origem do problema hermenêutico. “Temos um problema filosófico no passado que levantou uma cadeia de reflexões, e só recentemente na história temos um problema de Hermenêutica jurídica. Quando o Direito foi montado, há duzentos anos, no momento em que a burguesia toma o poder nos estados europeus, o saber jurídico determinou que as pessoas interpretassem a partir de determinados critérios, e o juiz passasse a aprender em linhas gerais, no mundo inteiro, o mesmo padrão de Hermenêutica jurídica, através de uma instituição que lhe forma”.
O palestrante defendeu a tese do fechamento do horizonte do Judiciário no campo hermenêutico, pela tendência à homogeneização do pensamento e, ao revés, uma maior abertura do Legislativo, pela pluralidade de seus integrantes. “O campo jurídico/judiciário tende a ser mais fechado e uníssono que o campo legislativo”, asseverou.
Nesta perspectiva, falou da ilusão do controle do juiz sobre o processo hermenêutico. Ele citou a obra do jurisfilósofo austríaco Hans Kelsen (1881–1973), para quem há dois tipos de interpretação: a autêntica (traduzida como o ato de vontade de quem pode) e a doutrinária (o resto). Pela lente de Kelsen, para o qual a Hermenêutica jurídica é um problema de poder, não há pureza normativa para a interpretação. Alysson Mascaro afirmou que é uníssona a ojeriza de juristas à resposta de Kelsen sobre a Hermenêutica como um ato de decisão e poder, porque aceitá-la seria jogar por terra a vã ciência do Direito.
O professor também comentou a obra Verdade e método, do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer (1900–2002), “o maior filósofo da Hermenêutica de todos os tempos”. De acordo com o palestrante, para esse teórico, não existe hipótese do jurista ler uma palavra, absorvê-la por ela mesma e interpretá-la, porque toda vez que alguém lê qualquer texto o interpreta a partir de uma pré-compreensão, que quer dizer pré-conceito, presente na totalidade dos seres humanos.
“Gadamer nos ensina que há determinados padrões de experiência que habilita a nossa interpretação, que mais alto que o texto da lei é a experiência hermenêutica existencial que a pessoa tenha, daí a experiência média de interpretação que se faz nos tribunais. Na prática, quem interpreta o Direito como norma ou como regra e princípios, quer se chame neopositivismo ou neoconstitucionalismo, chega à mesma conclusão. A interpretação independe de ponderação de princípios ou de norma reta, porque quem define a hermenêutica não é o método usado pelo jurista, mas a estrutura social. Diz Gadamer que a lei fala que todos somos iguais perante a lei, mas vem o intérprete e lê a lei com o seu preconceito. Ou muda a experiência existencial do preconceito ou não tem lei que mude”.
Para ilustrar a tese, Alysson Mascaro observou ser reiterado em todos os países racistas que a raça vítima do preconceito é aquela que tem mais gente na cadeia. “Como é possível que um cristão mate o outro?, pergunta Gadamer. E responde que é porque um cristão lê um texto sagrado de acordo com a sua experiência. Assim, a hermenêutica de uma pessoa não é ela com o texto, mas com seu contexto existencial. Portanto um Tribunal faz com que seus magistrados interpretem a lei de acordo com a experiência média de seus integrantes. Temos a interpretação da cadência média de reprodução da sociedade presente: capitalista, cheia de preconceitos, de regras, e que considera que isso é ordem e justiça”.
Na mesma linha de pensamento, ele mencionou aquela que considera a questão filosófica mais alta da modernidade – a percepção de que a compreensão de mundo advém de horizonte que nos constitui, e não que nós constituímos. E citou os principais formuladores dessa tese: o psicanalista Jacques-Marie Émile Lacan (1901–1981), o filósofo Louis Althusser (1918–1990), e o sociólogo Michel Foucault (1926–1984). “Nas palavras de Althusser, a ideologia constitui a experiência e a interpretação de mundo de todas as pessoas”.
ES (texto)