Processo de tomada de decisão em saúde é discutido no encerramento do curso “Direitos humanos em Juízo”
Com a análise do tema “O processo de tomada de decisão em saúde e a decisão judicial substitutiva da vontade da parte”, feita pelo professor de Medicina José Roberto Goldim, foi concluído ontem (22), o curso Direitos humanos em Juízo da EPM. A aula teve a participação da juíza Camila de Jesus Mello Gonçalves, que coordenou o curso, juntamente com o diretor da EPM, Fernando Maia da Cunha.
“Nunca se viveu tamanha fase de interação entre Direito e saúde, principalmente no Brasil. E a questão que envolve tomada de decisão é fundamental para tranquilizar de alguma forma todas as pessoas envolvidas, porque uma das coisas que sempre chama a atenção é a tensão que existe entre a decisão que o médico ou o paciente toma e a decisão que o juiz vai ter que tomar”, declarou preliminarmente José Roberto Goldim, que é diretor e professor de curso interdisciplinar na pós-graduação da Faculdade de Medicina e do laboratório de Bioética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
O palestrante discorreu inicialmente sobre a tomada de decisão propriamente dita, citando temas centrais como o consentimento informado, “uma decisão estratégica importante” e sobre as diretivas antecipadas de vontade, “um desafio para todos nós”.
Ele chamou a atenção para a “confusão conceitual feita por diversos autores sobre a questão da autonomia e da autodeterminação, duas coisas diferentes, frequentemente tomadas como a mesma coisa”. E lembrou que grandes autores da Bioética trabalham a autonomia como um dever de respeitar a autonomia, mas ponderou que “o que respeitamos é a autodeterminação, e não a autonomia, porque esta é uma capacidade que a pessoa tem, fruto de um desenvolvimento psicológico moral, enquanto a autodeterminação não é a capacidade, mas o exercício dela”.
O professor ensinou que a autonomia aplicada ao campo do Direito remete à definição de capacidade legal. Ele lembrou que o Código Civil enfatiza a noção de capacidade na perspectiva do discernimento da pessoa, mas manifestou preocupação com a mudança que o Estatuto da Pessoa Deficiente irá implantar a partir de janeiro de 2016, quando entrará em vigência: “o texto legal altera a noção de capacidade de discernimento para manifestação da vontade. Mas há vontade sem discernimento, como é o caso de um bebê que manifesta a fome chorando, no qual está ausente a capacidade de discernimento”.
No âmbito da autodeterminação como exercício, lembrou ainda de pessoas com incapacidade legal, mas com capacidade moral, como os adolescentes com câncer, os quais “pela vivência adquirida com a doença, já têm condições de discernir adequadamente o que é melhor em termos de tratamento”. Também recordou pessoas que têm capacidade legal, mas que, do ponto de vista moral e psíquico, estão privados de discernimento. “O risco da mudança do Estatuto da Pessoa Deficiente é transformar a noção de capacidade legal em mera manifestação da vontade, o que merece uma discussão aprofundada, porque acarretará muitos problemas para os profissionais de saúde”, alertou.
Diretivas antecipadas de vontade na prática médica brasileira
Em prosseguimento, José Roberto Goldim comentou as diretivas antecipadas de vontade, objeto de resolução do Conselho Federal de Medicina, “colocada lucidamente como uma diretiva de orientação e não de obrigação, porque se eu perguntar a uma pessoa, fora do conjunto real de circunstâncias, se ela gostaria de ir ou não para a UTI, ficar ou não na dependência de um respirador artificial ou de nutrição parenteral total, é óbvio que ela vai dizer que não”.
Ele apontou um avanço no Brasil sobre essa questão, “porque, ao contrário de outros países, que têm cartórios para essa manifestação, ou de alguns estados norte-americanos, nos quais a manifestação de vontade é uma obrigação de conduta para os médicos (que burocratiza desnecessariamente o serviço de saúde), aqui basta manifestar essa vontade perante o próprio médico e registrá-la no prontuário do paciente, para que se tenha a manifestação como uma orientação do que o paciente pensava fora do conjunto das circunstâncias reais do atendimento médico”.
Outro ponto abordado foi o vínculo fundamental de confiança entre os profissionais de saúde e a população. Ele comentou, a propósito, a legislação de doação de órgãos. Lembrou que, antes de 1997, a doação post-mortem dependia da manifestação prévia do doador, prevalecendo sobre a vontade da família, e que, com a Lei de Transplante de Órgãos (Lei 9.434/97), houve a destituição da autodeterminação da pessoa e a doação passou a ser presumida.
“O início da vigência da nova Lei em 1997, com o consentimento presumido de todos para o transplante, foi um desastre, tendo havido uma redução significativa do número de transplantes, causada pelo temor da população de que as pessoas teriam seus órgãos tirados sem controle”, lembrou o médico. Contudo, afirmou a reconquista gradual da relação de confiança entre a área da saúde e a população, “o que faz com que, hoje em dia, Santa Catarina, o Estado que tem o melhor sistema de captação de órgãos do país, seja equiparado à Espanha, o maior país em captação de órgãos”.
O palestrante observou que, de acordo com a legislação atual, a decisão sobre a doação de órgãos da pessoa falecida cabe à família, independentemente de qualquer manifestação positiva ou negativa da pessoa com relação a transplante.
Decisão médica ao revés da vontade da parte
Adiante, o palestrante falou do conflito de interesses na área da saúde, nem sempre detectável nas demandas levadas ao exame do Judiciário. E comentou a relação entre procedimentos de saúde e preceito religioso, lembrando que, em algumas ordens religiosas, preserva-se a autonomia da pessoa, mas suprime-se a autodeterminação, alienada a um superior hierárquico.
José Roberto Goldim destacou, como situação “delicada do ponto de vista da autodeterminação” a questão da transfusão de sangue em pacientes Testemunhas de Jeová, que muitas vezes chega ao Judiciário. “Tenho trabalhado em uns 400 casos em que pacientes que professam essa fé põem a restrição para transfusão de sangue e hemoderivados, e sempre é muito desconfortável para as equipes não poder usar um recurso que pode salvar a vida daquela pessoa”, observou o palestrante.
Ele revelou que o problema da transfusão de sangue nesses pacientes é um embate para o qual não há receita ou resposta pronta, porque varia de acordo com as peculiaridades da pessoa ou de sua família. E ressaltou que há situações em que ocorre pressão da família: “nesses casos, temos que ouvir o paciente em separado para verificar se ele está querendo tomar uma decisão diferente por constrangimento ou se aquilo realmente é um exercício de manifestação de uma crença religiosa que ele tem o direito de ter e exercer, o que vai determinar a tomada de decisão da equipe médica”.
Entretanto, observou que acatar uma decisão dessas numa situação clínica é totalmente diferente de acatá-la numa situação cirúrgica. E exemplificou com o caso hipotético de um sangramento digestivo, em que o acatamento da vontade do paciente em não receber sangue significa apenas aceitar o curso de uma ação, diferente de uma situação cirúrgica. “Imaginem o rompimento de um vaso em um paciente que a equipe médica tenha assumido que não iria colocar sangue. Nenhuma equipe cirúrgica iria assistir passivamente o paciente ‘exanguinar’ para atender uma manifestação de vontade prévia baseada numa crença religiosa”, sustentou.
Decisão judicial substitutiva da vontade da parte
O palestrante ponderou ser um equívoco levar a questão da resistência à transfusão de sangue ao Judiciário, porque isso significa a extrapolação de uma relação a ser preservada no âmbito da saúde, ponderando que a questão deve ser muito bem discutida no pré-operatório. Mas frisou que a decisão radical dos Testemunhas de Jeová tem contribuído para o debate acerca da autonomia do paciente no mundo inteiro, tendo sido motor de questionamentos.
Além de comentar aspectos da responsabilidade conjunta de médicos e juízes na liberação de medicamentos off label – prática da prescrição de medicamentos registrados para uma indicação não incluída na bula –, ele comentou, por outro lado, “demandas sem sentido” que chegam ao Judiciário, como aquelas que reivindicam a liberação de uso de um medicamento ainda em fase experimental. Também comentou a questão de interrupção de gestação por variadas razões, e que também pode ter componentes religiosos de impedimentos, muitas vezes centrais nas doutrinas cristã e islâmica, e que podem envolver risco de vida materna ou do nascituro.
Lembrou ainda o problema de tomada de decisão de realização de necropsias em pacientes de fé judaica, em mortes violentas, e situações de morte sem assistência médica, como nos casos de infarto fulminante em casa, em que ocorre grande desconforto para os familiares.
Além da necessidade de informação dos pacientes, ele ressaltou a importância da compreensão para uma boa tomada de decisão, “porque, muitas vezes o paciente recebe as informações, mas não tem a compreensão adequada, de maneira que, em muitos processos que chegam à Justiça, vemos um conjunto de informações, mas não se depreende da leitura dos materiais que, efetivamente, aquelas pessoas compreenderam a magnitude daquelas situações e de sua complexidade”.
ES (texto e foto)