Análise da reprodução e emancipação das práticas jurídicas conclui o curso “Hermenêutica Constitucional e Filosófica”

A aula do desembargador Paulo Magalhães da Costa Coelho (foto), realizada no último dia 7­, concluiu o curso Hermenêutica Constitucional e Filosófica, da EPM, coordenado pelo palestrante e pelo juiz Luis Manuel Fonseca Pires, ambos coordenadores da área de Direito Público da EPM. Com o tema “Hermenêutica Constitucional: uma abordagem filosófica – da reprodução à emancipação”, a exposição versou sobre as relações entre linguagem, ideologia e Direito, e também sobre o contraponto entre uma hermenêutica conservadora e outra emancipadora, no horizonte da possibilidade das transformações sociais.

 

Paulo Magalhães discorreu preliminarmente sobre a teoria do conhecimento, investigando as condições e o método de apreensão do saber na história, tomando como base a crítica kantiana. De acordo com o palestrante, Kant ensinou que não conhecemos o objeto como está na natureza, mas aquele construído pelos juízos apriorísticos da razão, e disso resulta que a relação entre o sujeito e o objeto não é abstrata, mas histórica. Um derivativo dessa assertiva é a necessária relativização da verdade axiológica das ciências, que não são neutras, como se pretendem. “O conhecimento científico que se estrutura na relação sujeito-objeto é conhecimento produzido histórica e socialmente e, portanto, sempre inacabado e sujeito a retificações”, concluiu.

 

A norma jurídica como filtro das relações sociais

 

Adiante, o professor explorou a relação dialética entre hermenêutica jurídica e sociedade. Ele descortinou as relações sociais sob dois prismas: como conjunto de relações interpessoais ou vínculos entre pessoas; e como relações sociais mediadas por bens que condicionam e produzem a vida material. Sob a ótica da partilha ou disputa de bens, a sociedade é locus de antagonismos por excelência, e “o conflito que permeia a sociedade está presente nas várias visões do Direito”.

 

Nesta perspectiva, a tese adotada pelo palestrante é a de que não é possível operar no plano do Direito com o pensamento lógico abstrato, puramente racional, de acordo com o qual todos os homens são sujeitos de direito e iguais perante a lei, porque a captação do real só se pode dar através da análise das relações sociais históricas e concretas. “O Direito é uma construção que se dirige aos homens que sofrem angústias, desemprego, desamparo, violência e falta de dignidade. Sua razão é dialético-dialógica, ou seja, deve se abrir para a realidade e dialogar com ela para mediar e resolver os conflitos”, observou o palestrante.

 

Por outro viés, Paulo Magalhães sustentou que a lógica do Direito não se assenta em critérios de verdade e falsidade, mas de razoabilidade e de valores. “A razão do Direito não pode ser monológica, aquela que dialoga só consigo mesma e produz resultados independentemente das consequências que possam gerar para os seres humanos. Deve ser dialógica, aquela que dialoga com a realidade”, asseverou.

 

Ele também refletiu sobre a maneira como o Direito é interpretado e aplicado na contemporaneidade. “Interpretar é, em última análise, dotar um signo abstrato de um certo sentido. Esse processo de interpretação não é neutro, nem lógico-formal, e o sujeito que interpreta não é abstrato, mas imerso nas teias sociais e concretas da experiência humana”, ensinou.

 

Para o palestrante, as práticas jurídicas esforçam-se pela manutenção do status quo em busca da garantia de privilégios. Portanto, seu discurso está contaminado pela ideologia lastreada em uma concepção positivista funcionalista e harmônica do corpo social. E isso que explica a visão da norma jurídica como resultado, e não como processo.

 

Paulo Magalhães assinalou que a característica fundamental das sociedades capitalistas é a divisão em classes sociais hegemônicas e subalternas e, de permeio, uma classe média que oscila ao sabor das conveniências entre um e outro polo. “A ideologia do discurso jurídico tenta ocultar essa circunstância através de um discurso da universalidade, da racionalidade, da abstração, da ocultação da realidade e das suas contradições”, observou.

 

Uma hermenêutica emancipadora do Direito

 

Na esteira desse pensamento, ele comentou “a reprodução acrítica de teorias e práticas, permeadas pela ideologia e fundada em uma hermenêutica conservadora, em nome da segurança jurídica, na qual se dissolvem os antagonismos com a exclusão social e ocultação das contradições da realidade geradas pelas relações de produção e poder”.

 

Diante desse caráter político e não técnico do Direito, apresentou a proposição de uma hermenêutica emancipadora, que transite do texto normativo para a riqueza da realidade, de modo a romper o ciclo de reprodução da hermenêutica conservadora. “Só uma hermenêutica emancipadora pode desconstruir o discurso jurídico alienado e o mito da neutralidade axiológica do Direito, construindo um outro paradigma mais humano e solidário, aberto aos valores,  de modo a possibilitar o acesso de todos aos bens sociais”, sustentou o professor. E asseverou que não se trata de utopia, porque “esse é justamente o modelo de sociedade que está pensado em nossa constituição”.

 

Em sua última reflexão, citou o jurista português José Joaquim Gomes Canotilho, para quem, no processo de interpretação, há de ser feita a distinção entre o texto (programa normativo, que são os signos linguísticos da norma) e o domínio normativo (que é o corte da realidade ao qual o texto vai se referir). “A norma é construída, e não dada. O que é dado é o texto linguístico. E se a norma é construída, podemos redefinir os seus sentidos de acordo com cada realidade, com cada necessidade, fazendo com que o texto normativo seja fecundado pela realidade e dê uma resposta justa, adequada e razoável para as aflições humanas”, concluiu o palestrante.

 

ES (texto)


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