Posição do Judiciário perante as posturas religiosas é debatida na EPM

No dia 30 de setembro, a EPM realizou o painel “A posição do Judiciário perante as posturas religiosas”, que teve a participação dos desembargadores Antonio Rulli Junior, diretor da EPM; Armando Sérgio Prado de Toledo, conselheiro da EPM e coordenador do evento; e Antonio Carlos Malheiros, coordenador da área de aperfeiçoamento funcional de servidores da EPM; do engenheiro Guilherme Castro Machado Rabello, coordenador do Centro de Pesquisas Médico-Científicas da Comissão de Ligação com Hospitais (Colih) de São Paulo; do médico cardiologista Antonio Alceu, e dos advogados Raquel de Souza Franzine e Felipe Augusto Basílio, além de profissionais de diversas áreas de atuação que prestigiaram o evento.

 

A abertura dos trabalhos foi feita pelo desembargador Antonio Rulli Junior, que destacou a importância dos temas em discussão para os magistrados e demais profissionais: “O posicionamento do Judiciário perante as posturas religiosas, bem como os aspectos éticos envolvidos, constituem um tema de grande preocupação, que está sendo debatido, pela primeira vez, em uma escola de magistratura e, certamente, despertará o interesse de outras escolas do País”, ressaltou.

 

A palestra inicial, “A postura religiosa das Testemunhas de Jeová quanto a tratamento de saúde”, foi proferida por Guilherme Castro Machado Rabello. Ele explicou que as Testemunhas de Jeová não aceitam receber transfusões de sangue ou de seus componentes principais (exceto produtos resultantes de frações do sangue, a critério do paciente), nem a autotransfusão de sangue pré-depositado ou armazenado no pré-operatório. Entretanto, observou que aceitam a recuperação do sangue perdido durante a cirurgia, que é feita por meio de processos de filtração e diluição. Acrescentou que essa recusa decorre, primariamente, de motivos religiosos, mas envolve uma escolha moral, baseando-se no direito da autonomia e do consentimento informado esclarecido. Entretanto, frisou que não recusam tratamento médico, apenas desejam receber tratamentos alternativos não-transfusionais. “O que as Testemunhas de Jeová pleiteiam à classe médica é que o profissional procure saber quais os procedimentos que o paciente consente em receber e verifique a possibilidade de ajustar sua técnica à vontade desse paciente”, ressaltou.

 

Na sequência, o médico Antonio Alceu proferiu a palestra “Os avanços da medicina quanto à realização de tratamento médico sem sangue – uma realidade brasileira”. Ele citou algumas das técnicas utilizadas, no Brasil e em outros países, para se evitar a transfusão de sangue nos procedimentos cirúrgicos – algumas simples e de baixo custo. Nesse contexto, chamou a atenção para a crescente escassez mundial de sangue; para os custos envolvidos no armazenamento e na realização de testes; e para os riscos da transfusão de sangue. “A necessidade de sangue, no mundo, aumenta à taxa de 1% ao ano, enquanto que as doações crescem à taxa de 0,5% a 0,7% ao ano. De acordo com artigo publicado, em dezembro de 2007, na ‘Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia’, estima-se que, em 2030, haverá um déficit de 1 milhão de unidades de sangue coletado. Isso deixa claro que a Medicina deve estar preparada para a possibilidade de não haver sangue para todos os procedimentos médicos solicitados”, salientou, frisando a importância das técnicas de gerenciamento e conservação do sangue e das alternativas à transfusão.

 

Em seguida, a advogada Raquel de Souza Franzine discorreu sobre o tema “Liberdade e autonomia do paciente na escolha de tratamento médico e sua relação com a dignidade da pessoa humana”. Ela considerou que é um mito a idéia de que o paciente Testemunha de Jeová abre mão de sua vida ou da vida de seus filhos, em razão de convicções religiosas, ao recusar uma transfusão de sangue. “Não há conflito de direitos fundamentais (direito à vida e liberdade religiosa), porque eles não estão recusando, de forma fanática, o tratamento médico. Estão exercendo, de forma consciente e esclarecida, seu direito de escolha, porque a Medicina pressupõe uma série de tratamentos médicos, entre eles, os tratamentos não-transfusionais”, ponderou, salientando que essa questão deve ser analisada de acordo com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. “Esse princípio fundamenta a relação médico-paciente no Código de Ética Médica e tem como facetas a autonomia, o direito à vida digna (livremente auto-determinada) e o fato de que o Estado existe em função da pessoa humana e não o contrário, daí o direito subjetivo do cidadão de agir contra o Estado, quando sua autonomia for desrespeitada, de forma ilegítima, e o comando endereçado ao Estado para que interfira quando a autonomia do cidadão for violada, que é a postura do Supremo Tribunal Federal”, afirmou.

 

A advogada salientou, ainda, que o consentimento informado não é apenas um aspecto da relação médico-paciente, mas um direito humano fundamental, consagrado pela Teoria dos Direitos Humanos e por tribunais como o Supremo Tribunal da Espanha. “Embora seja a parte mais frágil da relação médico-paciente, o paciente deve ser visto como um sujeito de direitos, independentemente de seu estado clínico, e nunca como um objeto de cuidados médicos, que perde sua autonomia em uma situação de iminente perigo de vida”, ressaltou.

 

Encerrando o painel, foram debatidas várias questões, levantadas pelos participantes da platéia, entre elas: o desafio de se aplicar os procedimentos não-transfusionais diante das deficiências do sistema de saúde brasileiro; a hipótese de responsabilização do médico que desrespeita a vontade do paciente; e a necessidade de se estender o debate às associações e entidades representativas da classe médica.

 

Os debates foram mediados pelo desembargador Armando Sérgio Prado de Toledo, que observou que os palestrantes expuseram um ponto de vista, trazendo informações relevantes para reflexão dos aplicadores da lei e demais profissionais do Direito, mas ressaltou que a Escola Paulista da Magistratura está aberta às manifestações de outras correntes de pensamento.  “O profissional do Direito é, por vocação, um pesquisador, tendo interesse em obter o máximo de informações para evoluir e melhor se conduzir em tudo o que faz. Por essa razão, o relacionamento com profissionais de outras áreas é fundamental e espero que tenhamos outras oportunidades de trocar conhecimento, atendendo aos interesses da sociedade”, concluiu.


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