Constitucionalização do Direito Civil é analisada em aula na EPM
O juiz Marco Fábio Morsello foi o palestrante da aula de ontem (31) do 3º curso de especialização em Direito Civil, que versou sobre o tema “Constitucionalização do Direito Civil”. A aula teve a participação do coordenador do curso, desembargador Carlos Alberto Garbi, que também coordena, juntamente com o palestrante, a área de Direito Civil da Escola.
Marco Morsello dedicou-se à análise do que chamou “eficácia de irradiação do Direito Civil Constitucional”, em uma perspectiva interdisciplinar. “O Direito Civil está no seu crepúsculo?”, indagou, mencionando afirmação da chamada “Escola carioca”, segundo a qual o Direito Civil está nos seus estertores. Na raiz dessa afirmação, estaria a noção de perdimento do eixo central do Direito Civil, que teria sido esvaziado com o advento do sistema constitucional, panaceia para todos os problemas jurídicos.
“A assertiva baseia-se em premissas que, de início, poderíamos até concordar. Mas vamos demonstrar que talvez essa escola tenha uma posição extremada”, sustentou o palestrante. E ponderou que nem tudo em matéria de Direito Civil encontra solução na Constituição, porque a interação com o Direito Civil Constitucional não pode prescindir de alguns conceitos que antecedem o diploma.
Nesse sentido, discorreu sobre a ideia de paradigma e sistema. Lembrou que, no período positivista, havia um sistema fechado, inspirado no hermetismo do código francês de 1904, defendido pela “Escola da exegese”. “A ideia preconizada pela Escola da exegese era ‘tudo no Código, nada além do Código’, porque ele conteria todas as soluções imagináveis no caso concreto. O juiz, nesse paradigma da lei, não recebia influxos do sistema social; estava atrelado a um sistema como mero aplicador ou “boca da lei” (la bouche de la loi, segundo Montesquieu), ou seja, um autômato”. Nesse momento, a ideia do Direito como subsistema do sistema social ainda não vingava”, ensinou Marco Morsello.
Adiante, o palestrante asseverou que esse sistema autorreferente embora revelasse uma autossuficiência, esgotou-se diante das transformações socioeconômicas, sobretudo com a Revolução Industrial. Se era suficiente numa sociedade de relações paritárias, ainda com influências feudais, tornou-se insuficiente para acobertar as relações em uma sociedade de operações em massa, num contexto de contratos e transportes massificados, acidentes do trabalho com sinistralidade manifesta e modificação dos núcleos familiares acarretada pelo êxodo rural.
De acordo com o expositor, diante do paradoxo configurado pelas novas relações jurídicas, de um lado, e a visão dogmática do Código, de outro, a primeira reação, ainda dentro da escola positivista, foi a edição de leis extravagantes, para demonstrar que o Código era intocável, mas a nova realidade necessitava de novos diplomas para a regulação de situações específicas. “Esse sistema revelou esgotamento mesmo com a chamada ´orgia legiferante´, termo cunhado pelo jurista italiano Mauro Cappelletti (1927–2004), que fala das reflexões da jurisprudência no tempo presente, justamente com essa ideia de constitucionalização do Direito Civil”, lembrou.
A intervenção do Estado nas relações jurídicas socioeconômicas
Para Marco Morsello, fatores como a ideia da autonomia da vontade –, depois transformada em autonomia privada –, já impunham a revisão de uma autonomia social e da intangibilidade dos contratos, levando a uma intervenção do Estado nas relações jurídicas socioeconômicas, passando o paradigma do Estado-Juiz a sobrepujar o da lei. “Isso ocorre, num primeiro momento, por meio dos conceitos jurídicos indeterminados, inseridos pelo Estado para intervenção nas relações jurídicas, sem fundamentação ou vetores materiais, orientados em função da ordem pública, interesse público, função social e boa-fé, não objetivada”, esclareceu.
Entretanto, observou que o paradigma contemporâneo da aplicação do Direito Civil, diante da intervenção estatal desmesurada e do vazio axiológico dos conceitos jurídicos indeterminados que a sociedade passou a repudiar, exige o preenchimento dos vetores materiais. Assim, sobreveio a ideia de uma intervenção estatal fundamentada, de uma ordem pública de proteção a uma das partes integrantes da relação jurídica nos contratos existenciais, em uma situação de concretude.
O professor aduziu que o paradigma da pós-modernidade, de acordo com o “crepúsculo do dever legal”, de que falava o filósofo francês Gilles Lipovetsky, apresenta fragmentação e dispersão de valores. Daí a importância das cláusulas gerais, da concretude e da tópica. “A tríade do Código Civil é a socialidade, a eticidade, a operabilidade e atividade”, afirmou.
Para o palestrante, é o termo “neopositivista” e não “pós-positivista” que se enquadra melhor àqueles que defendem a constitucionalização do Direito Civil, porque o fato é que algumas soluções para os problemas do Direito não mais se encontram no Código Civil e sim na Constituição. E pela via-reversa, às vezes a solução não está no diploma constitucional , mas permanecem no Código Civil.
“Essa ideia da Constituição ser um bloco monolítico, uniforme, não é tão perfeita como se coloca. Vamos ter colisão de princípios e regras, vamos ter que usar a técnica da ponderação, elementos extremamente relevantes para demonstrar que essa obsessão unificadora da Constituição não é, na verdade, aquilo que leva ao fim da história e ao estancamento da evolução do Direito, como disse Francis Fukuyama. A nossa colocação é que, embora a Constituição tenha trazido um papel relevante, ela não vai trazer soluções automáticas, e sempre seremos levados a interpretar, a ponderar princípios e, por vezes, também nos basearmos em conceitos do Código Civil”, concluiu Marco Morsello.
ES (texto e fotos)