Reprodução e emancipação das práticas jurídicas são analisados no curso de Direito Público

O tema “Hermenêutica jurídica: uma abordagem filosófica – da reprodução à emancipação” foi analisado na aula do último dia 1º de junho do 9º Curso de especialização em Direito Público da EPM, ministrada pelo desembargador Paulo Magalhães da Costa Coelho, coordenador do curso e da área de Direito Público da Escola.

 

A palestra consistiu em uma reflexão sobre a interpretação jurídica no mundo contemporâneo, e o expositor iniciou-a com uma abordagem dos aspectos históricos e filosóficos da teoria do conhecimento.

 

De acordo com o palestrante, a história humana distingue-se da dos demais animais justamente por ser uma história de dominação da natureza e de conhecimento, um processo pelo qual o homem vai modificando a natureza, imprimindo nela as suas marcas, autoconhecendo-se e diferenciando-se dos demais seres. “A natureza humana é, portanto, social e cognitiva, ou seja, o processo pelo qual o homem humaniza-se e distingue-se da natureza é justamente a possibilidade que ele tem de exercer um trabalho consciente que, inicialmente, existe como representação e que ele executa ao dominar a natureza, tornando o mundo natural em mundo cultural”.

 

Nesta perspectiva, Paulo Magalhães assinalou o caráter essencialmente provisório e, portanto, antidogmático do conhecimento, por ser sujeito a retificações, acertos e justaposições. Ele chamou a atenção para a relação fundamental entre sujeito e objeto no processo de conhecimento, citando as correntes filosóficas que se ocuparam dessa construção ao longo da história, quais sejam, os empiristas, os racionalistas, os criticistas e os dialéticos, tendo examinado as condições e os métodos empregados pelos filósofos dessas correntes de apreensão do saber.

 

Ele comentou a base da crítica kantiana, que promove uma síntese dos pensamentos empírico (o conhecimento radicado no objeto) e racionalista (o conhecimento como emanação do sujeito). De acordo com Paulo Magalhães, Kant ensinou que não conhecemos o objeto como está na natureza, mas aquele construído pelos juízos apriorísticos da razão. Entretanto, os dialéticos aduziram a ideia que a relação entre o sujeito e o objeto não é abstrata, mas histórica, “daí o caráter eminentemente antidogmático da dialética, que aponta para o caráter provisório do conhecimento científico”, assinalou o professor.

 

E como derivação dessa assertiva, ele ensinou que os dialéticos denunciaram o mito da neutralidade das ciências e a necessária relativização de sua verdade axiológica, pois elas não são neutras, como se pretendem. “O conhecimento científico se estrutura na relação sujeito-objeto, é conhecimento produzido histórica e socialmente e, portanto, sempre inacabado e sujeito a retificações”, resumiu o professor.

 

A concretude do real como base do pensamento jurídico

 

Adiante, Paulo Magalhães tratou das relações entre a visão dialética do processo de conhecimento e a hermenêutica jurídica, objeto da análise. Ele chamou a atenção para a intensa conexão entre pensamento e realidade. “O pensamento não existe abstratamente, não paira sobre o mundo ou não surge no mundo a partir do nada, de uma mente luminosa. Antes, surge para dar resposta a uma realidade ou, muitas vezes, para questionar ou justificar uma determinada ordem social”, observou.

 

Ele descortinou as relações sociais sob dois prismas: como conjunto de relações interpessoais ou vínculos entre pessoas. Além desses vínculos intersubjetivos, fundados nos mais variados interesses, falou das relações sociais mediadas por bens que condicionam e produzem a vida material. “Sob a ótica dessas relações estruturais, mediadas por bens de produção, de partilha ou disputa de bens, a sociedade é lugar de contradições e de antagonismos por excelência, e o conflito que permeia a sociedade também permeia o Direito”, sustentou.

 

Nesta perspectiva, a tese adotada pelo palestrante é a de que não é possível operar no plano do Direito com o pensamento lógico abstrato, de acordo com o qual todos os homens são sujeitos de Direito e iguais perante a lei, porque a captação do real só se pode dar através da análise das relações sociais históricas e concretas. E aduziu que as práticas jurídicas esforçam-se pela manutenção do status quo em busca da garantia de privilégios. “Seu discurso está contaminado pela ideologia lastreada em uma concepção positivista funcionalista e harmônica do corpo social. E isso que explica a visão da norma jurídica como resultado, e não como processo”, afirmou.

 

Ainda de acordo com seu pensamento, essa ideologia do discurso jurídico tenta ocultar a divisão da sociedade capitalista em classes sociais hegemônicas através de um discurso da universalidade, da racionalidade, da abstração, da ocultação da realidade e das suas contradições.

 

“O Direito é uma construção que se dirige aos homens que sofrem angústias, desemprego, desamparo, violência e falta de dignidade. Sua razão implica um outro tipo de abordagem, que não a lógica puramente científica, abstrata, encarcerada em sistemas formais, que produza resultados sem qualquer questionamento sobre a realidade a que se refere, por mais absurdo, doloroso, terrível e nefasto que seja.  Há de ser a lógica do razoável, dialética, que se assente em valores, que dialogue com a realidade buscando respostas para as aflições dos homens”, defendeu Paulo Magalhães.

 

Uma hermenêutica emancipadora do Direito

 

No campo da necessária relação entre norma e Justiça, Paulo Magalhães comentou a cilada das “ilusões jurídicas”, à qual o intérprete está infenso, como a concepção funcionalista da sociedade, lastreada na estrutura lógica da norma como resultado, sem questionar o aspecto histórico da produção normativa. Para o expositor, trata-se de uma hermenêutica reprodutiva de um saber que nada constrói de novo e não faz avançar o conhecimento e o mundo, notadamente na questão da ética, da igualdade e dos valores humanos”. Neste sentido, ele lembrou que a lei é tida como fruto de uma racionalidade abstrata, como expressão do interesse comum.

 

“Esse é um jogo intrincado e difícil”, comentou. E defendeu que, para a solução da contradição apontada e formulação de uma interpretação adequada, o analista tem que olhar para além da ordem jurídica da positividade, para a ordem jurídica da estruturação econômico-social.

 

Como contraponto à hermenêutica conservadora, cujo papel é justificar e manter o status quo e os privilégios, em prejuízo de direitos e acessos aos bens sociais e materiais de uma imensa maioria – um exercício interpretativo sem dúvida redutor –, o palestrante apresentou a proposição de uma hermenêutica emancipadora, “que não se prende somente às normas, mas que também tenha um olhar para a realidade”.

 

De acordo com o palestrante, o papel da hermenêutica emancipadora é denunciar e desconstruir o mito da neutralidade axiológica do Direito, pois nem o Direito nem os seus operadores são neutros e seu discurso está contaminado pela ideologia lastreada em uma concepção positivista funcionalista e harmônica do corpo social.

 

“A norma é construída, e não dada. O que é dado é o texto linguístico. E se a norma é construída, podemos redefinir os seus sentidos de acordo com cada realidade, com cada necessidade, fazendo com que o texto normativo seja fecundado pela realidade e dê uma resposta justa, adequada e razoável para as aflições humanas”, refletiu o palestrante.

 

ES (texto)

 

 


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