EPM conclui o curso “Temas atuais do Direito das Famílias e das Sucessões”
Com a palestra “A curatela à luz do novo CPC e do Estatuto da Pessoa com Deficiência”, proferida pelo procurador de Justiça de Minas Gerais Nelson Rosenvald, foi concluído no último dia 29 o curso Temas atuais do Direito das Famílias e das Sucessões. A aula teve a participação do juiz Hamid Charaf Bdine Júnior, conselheiro da EPM.
Nelson Rosenvald iniciou a preleção com uma análise das mudanças estruturais e funcionais na antiga teoria das incapacidades e a nova visão do legislador sobre o tema, materializada no Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015), que alterou institutos correlatos nos códigos Civil e de Processo Civil. “Os novos institutos representam notável avanço para a proteção da dignidade da pessoa com deficiência, notadamente o instituto da curatela”, observou.
Nesse sentido, recordou o Estatuto da Interdição, um instituto jurídico surgido no século XIX na Alemanha como uma via processual para neutralizar a capacidade civil da pessoa, e também sobre a curatela, um encargo deferido a alguém, “que se tornava um alter ego da pessoa na manifestação da vontade”. De acordo com o expositor, essa lógica de exclusão das pessoas dos parâmetros da normalidade, num momento em que a Ciência ainda não era capaz de estipular exatamente quais eram as patologias, foi adaptada para o Código Civil brasileiro de 1916, o chamado “Código Beviláqua”.
“O Direito Civil clássico, fundado pelo Código Civil Napoleônico, nunca enxergou o ser humano gente, nunca gostou da pessoa humana de verdade”, asseverou Nelson Rosenvald. E ensinou que o Código Civil francês e todos os outros códigos que o seguiram, só se preocupavam com o indivíduo, o ente abstrato titular de relações patrimoniais. “Para esses códigos, não havia o ser humano, mas o proprietário, o contratante, o marido, o testador, personagens de relações jurídicas patrimoniais, porque seu objetivo era a segurança jurídica dos entes abstratos, ou seja, pouco interessava as vicissitudes dos seres humanos que se encontravam subjacentes a essas relações econômicas”.
De acordo com o palestrante, se qualquer um tivesse dificuldade em realizar uma relação econômica, por uma fragilidade da vida ou problema psicológico, o Direito Civil simplesmente o excluía da sociedade. “As pessoas consideradas diferentes eram simplesmente neutralizadas pelo ordenamento jurídico porque seriam incapazes de protagonizar as relações patrimoniais”.
Ele explicou que a justificativa do Direito Civil para legitimar esse paradigma de exclusão vem do jurista alemão Friedrich Carl von Savigny (1779 – 1861), da Escola Pandectista, que criou a teoria das incapacidades. “Savigny, em um esquema artificial de laboratório, dividiu o mundo em três níveis, e os seres humanos em três categorias, do céu ao inferno, passando pelo purgatório. Ele colocou no céu os absolutamente capazes, que são aquelas pessoas que têm livre trânsito nas relações econômicas; alojou no purgatório os relativamente incapazes, que eram aquelas pessoas assistidas ou auxiliadas para a prática dos atos da vida civil; e, finalmente, pôs no inferno os absolutamente incapazes, que eram aquelas pessoas representadas pelos seus curadores, completamente substituídas no exercício dos atos da vida civil, sejam patrimoniais ou existenciais”.
O protagonismo do ser humano no ordenamento jurídico
Nelson Rosenvald observou que o sistema de categorização e alijamento social criado pela teoria das incapacidades deveria ter ruído com a Constituição Federal de 1988, quando o diploma da cidadania afirmou o princípio da dignidade do ser humano e o colocou como protagonista do ordenamento jurídico. “A dignidade da pessoa humana impactou no tratamento da capacidade civil tanto pela eficácia negativa – já que, a partir dela, todo ser humano tem o direito de excluir de sua vida qualquer interferência negativa do Estado e da sociedade –, como pela eficácia positiva, pois para além de um direito de proteção, o ordenamento jurídico passa a ter um dever de promover a dignidade e a autonomia”, afirmou.
Nesse sentido, assinalou uma clara mensagem passada pelo legislador em resposta ao Código Civil de 1916: que a capacidade civil é um direito fundamental da pessoa humana, e só poderá haver incapacidade por exceção e sempre por proteção em hipóteses excepcionais, e nunca como punição.
Entretanto, afirmou que os civilistas não entenderam esse recado e insistiram nessa linguagem de exclusão na redação dos artigos 3º e 1.772 do Código Civil de 2002. “Houve uma troca de vocabulário, mas o conteúdo continuou sendo essencialmente discriminatório, restrito a um critério médico que reduzia o ser humano, em toda sua complexidade, a uma doença e desconsidera a sua dignidade inerente”.
Como evolução do sistema protetivo à pessoa com deficiência, ele lembrou o advento da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, recepcionada pela Constituição e orientadora do Estatuto, cuja redação afirma a plena capacidade das pessoas com deficiência, que apenas sofrem de uma vulnerabilidade, assimetria ou menos valia, sem que isso possa gerar qualquer possibilidade de discriminação ou exclusão.
“A Convenção cria uma nova estratégia para a inclusão social objetiva das pessoas com deficiência. Nesta perspectiva, as sociedades terão que criar legislações internas que sejam capazes de tratar esses seres humanos com respeito, privilegiar a sua autonomia, e inseri-las na sociedade, respeitando as suas diferenças”.
De acordo com o palestrante, é no contexto de um ordenamento jurídico comprometido com a promoção das liberdades civis, no qual o sujeito de direito passa a ser protagonista de sua própria história, que o legislador atuou ao traçar as normas do Estatuto da Pessoa da Pessoa com Deficiência.
Nesse sentido, ele festejou a alteração do artigo 4º do Código Civil, enfatizando o inciso III, de acordo com o qual, agora, os relativamente incapazes são “aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade”. Também destacou o artigo 8º do CPC, dispositivo que preconiza que o juiz, ao aplicar o ordenamento jurídico, resguarde e promova a dignidade da pessoa humana.
A curatela no novo ordenamento jurídico
Em prosseguimento, Nelson Rosenvald comentou o instituto da curatela no atual ordenamento pátrio. “O código Civil abandona aquela linguagem médica e o monopólio da Psiquiatria, em nome de um critério objetivo da absoluta impossibilidade de interação social”, observou.
Também comentou o artigo 757 do CPC, que traz novas disposições sobre a autoridade do curador, não mais extensiva aos filhos e seus bens, mas restrita à pessoa do curatelado e de seu patrimônio, e o artigo 758, que define o seu papel em relação ao curatelado: “o curador deverá buscar tratamento e apoio apropriados à conquista da autonomia pelo interdito”.
Ele discorreu, finalmente, sobre a curatela no Estatuto da Pessoa com Deficiência. Segundo o expositor, pelas novas regras, a pessoa com deficiência assume o protagonismo de sua vida, valendo-se, eventualmente, de coadjuvantes para o pleno exercício de seus direitos. Nesse sentido, o exercício da curatela, previsto nos artigos 84 a 87, é visto como uma medida protetiva extraordinária, de caráter transitório. “A curatela agora é um processo remodelado; sua finalidade é, ao longo de um processo, recuperar a autonomia da pessoa. Não é mais um destino final, mas uma fase intermediária, por isso não falamos mais em interdição”.
A tomada de decisão apoiada
Por, fim, o palestrante abordou o instituto da tomada de decisão apoiada, regrado pelo Estatuto como uma faculdade da pessoa com deficiência. De acordo com o § 2º do artigo 84 e artigo 1.783-A, a pessoa com deficiência pode valer-se do apoio de duas pessoas que vier a eleger para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade.
“Ao contrário da tutela e curatela, a tomada de decisão apoiada diferencia-se delas tanto em sua estrutura como em sua função, indo muito além. Ela não pensa na palavra proteção, mas quer promover a autonomia da pessoa apoiada. Tanto é que a pessoa apoiada continua plenamente capaz”, asseverou Nelson Rosenvald.
Ele sustentou que, de acordo com o novo ordenamento pátrio, a pessoa com deficiência é plenamente capaz. Eventualmente, ela será relativamente incapaz, quando não tiver possibilidade de se autodeterminar. “Mas, se necessitar de apoio para praticar atos da vida de um modo geral, será direcionada à tomada de decisão apoiada”, sintetizou.
Curso
O curso “Temas atuais do Direito das Famílias e das Sucessões” iniciou-se no dia 8 deste mês, com o debate sobre o tema “Multiparentalidade: abrangência e repercussões”, desenvolvido em duas aulas. Também foram abordados os “Temas atuais do Direito Sucessório”.
Coordenado pelo desembargador Luiz Fernando Salles Rossi e pelo juiz Augusto Drummond Lepage, coordenadores da área de Família e Sucessões da EPM, o curso também teve como palestrantes o desembargador Cláudio Luiz Bueno de Godoy e os juízes Hamid Charaf Bdine Júnior e Mauro Antonini.
ES (texto e fotos)