Meios de comunicação, mitos políticos e autoritarismo são debatidos no curso ‘Democracia e razões de Estado’

Os debates realizados ontem (27) no curso Democracia e razões de Estado da EPM gravitaram em torno do tema “Ética e autenticidade”, com palestras do jornalista e escritor Marcelo Penteado Coelho e da psicanalista Maria Rita Kehl. O evento teve a participação dos coordenadores do curso, desembargadores Paulo Magalhães da Costa Coelho e Dimas Borelli Thomaz Júnior e juiz Luis Manuel Fonseca Pires.

 

Marcelo Coelho incumbiu-se da exposição do tema “Democracia e meios de comunicação”, tendo abordado três tópicos relativos à especificidade dos meios de comunicação, em particular os jornais, no que diz respeito à democracia: a questão institucional da sua relação com partidos e sua alternativa monopolização, a partir da análise dos modelos norte-americano e europeu; a questão dos conteúdos e das preferências do que é noticiado, bem como as relações entre o que é público e moral na política; e, por fim, a questão da forma noticiosa e dos seus limites com relação à discussão democrática.

 

Em sede preliminar, o jornalista observou que a relação entre a democracia e os meios de comunicação parece, mais do que nunca, posta em cheque no momento atual brasileiro, porque verificou-se uma extrema polarização nas discussões em torno do impeachment da presidente Dilma Roussef.

 

O palestrante sopesou o volume das correntes que se antagonizaram no debate em torno da legalidade ou da ilegalidade do processo. De um lado, aqueles que o qualificaram como um grave atentado à democracia; de outro, os que o entenderem como uma ferramenta jurídica adequada para a responsabilização de um desvio da função administrativa. De todo modo, observou que a grande maioria dos meios de comunicação teve uma visão favorável ao impeachment.

 

Em que pesem as convicções pessoais inclinadas para um ou outro polo do debate, Marcelo Coelho ponderou não considerar “que tenha havido, substancial prejuízo na ordem democrática, pois nenhuma liberdade foi atingida, e não se está diante de uma situação pós-golpe, em que alguma liberdade tenha sido tolhida”.

 

Em uma abordagem mais genérica da relação entre os meios de comunicação e a democracia, ele falou sobre os conteúdos veiculados pela grande imprensa, a forma como esses conteúdos são abordados, e a questão do quadro institucional em que a imprensa e os meios de comunicação se colocam dentro do sistema político brasileiro.

 

“Os conteúdos não se restringem à discussão das notícias cotidianas, mas são marcados por dois outros campos de interesse, que alcançam uma preponderância extrema para a maioria dos brasileiros: a religião, nos programas evangélicos e a violência nos programas televisivos voltados para o noticiário policial. Nesse contexto, comentou a gravidade da extrema concentração ideológica nas emissoras da televisão aberta como fonte do prestígio eleitoral crescente das chamadas “bancada da bala” e “bancada religiosa”.

 

“Para mim, a maior lavagem cerebral promovida pela mídia ocorre aí, e eu não sei que mecanismos de controle podemos ter numa sociedade democrática e de livre mercado quando esse tipo de realidade se instaura. Nesse campo, não temos nenhum modelo democrático de meios de comunicação, pois trata-se de um modelo politicamente privatizado, um sistema político oligárquico, concentrado, que faz uso dos meios de comunicação para perpetuação no poder de oligarquias regionais ou como trampolim eleitoral para outras formas de liderança política”, sustentou o expositor.

 

O jornalista também comentou a corrupção como matéria jornalística: “os casos de corrupção constituem, de forma inevitável, notícias por excelência. Quero ressaltar o quanto é importante falar ‘notícia por excelência’ porque, qualquer que seja a preferência ideológica do jornalista, o que fundamenta a ação jornalística é tornar público alguma coisa que o interesse privado quer deixar oculto”.

 

Ele lembrou que esse princípio recupera o que já havia sido afirmado pelo filósofo Inmanuel Kant, para quem a única solução do conflito entre moral e política está no princípio da publicidade, “pois só é moral na política aquilo que se tem coragem de tornar público ou que é passível de se tornar público”.

 

Marcelo Coelho comentou, finalmente, a ampliação do espaço de debate democrático, de participação e comunicação sobre fatos da vida pública com a internet. “Surgem novos canais de debate político, ideológico, e mesmo de discussões técnicas a respeito de tudo o que interessa à nossa sociedade ou é passível de uma tomada de decisões democráticas. Não se trata apenas de ter acesso a essas discussões, mas também de poder intervir, escrever artigos, manifestos, abaixo-assinados, projetos de lei e notícias. Cada cidadão pode se transformar em repórter ou em legislador virtual. O monopólio dos meios de comunicação e a distância entre representante e representado estão com os dias contados”, concluiu.

 

Mitos políticos como sustentáculos do autoritarismo

 

Coube à Maria Rita Kehl a análise das relações entre “Mitos políticos e autoritarismo”. Ela comentou a origem de suas constatações: a participação na Comissão Nacional da Verdade (CNV), que atuou entre 2012 e 2014 na investigação das violações de direitos humanos perpetrados sobretudo no período ditatorial, com apoio ou no interesse do Estado brasileiro.

 

A expositora lembrou preambularmente que o autoritarismo é um padrão na estrutura de mando no Brasil, e que, nesse sentido, há uma constante na brutalidade exercida pelo Estado já nos primórdios da República. “É importante lembrar que o primeiro ato de vulto do primeiro presidente da República, Deodoro da Fonseca, foi o massacre de Canudos, uma comunidade religiosa de gente miserável e faminta no sertão da Bahia, e também que tivemos, no século XX, duas ditaduras de efeitos graves e prolongados sobre a sociedade, com um hiato democrático de apenas dezenove anos”.

 

Ela sustentou a tese de que uma expressiva parcela da sociedade brasileira faz vista grossa diante dos atos autoritários e adere à tese de que os fins justificam os meios, “quer para conseguir que um bandido confesse quem são os seus parceiros, ou simplesmente pela cultura da violência dentro das delegacias e da tortura nas ditaduras”.

 

Falou ainda sobre o trabalho de investigação desenvolvido na CNV para fundamentar o raciocínio sobre a questão dos mitos políticos e autoritarismo no Brasil. Lembrou que todos os países latino-americanos que tiveram ditadura julgaram e prenderam os agentes de Estado que cometeram graves violações de direitos humanos com a redemocratização, à exceção do Brasil. “Foi o único país que anistiou igualmente violadores de direitos humanos e militantes que lutavam contra a ditadura”, observou.

 

Maria Rita Kehl também comentou o efeito perverso dessa anistia para os dois lados, “como se fossem equivalentes os crimes de militantes que queriam combater a tirania e os crimes de agentes do Estado contra a vida de pessoas já em seu poder, sendo que têm o dever de protegê-las”. De acordo com a opinião da palestrante, por esse efeito, demoniza-se a esquerda como se qualquer movimento ou partido de esquerda fosse equivalente à ameaça da luta armada.

 

Entretanto, explicitou as razões de sua crítica (confluente com a dos membros da CNV) à anistia, esclarecendo que recomendaram em parecer que o Estado repense a lógica da anistia bilateral. “Nós sabemos – e não acusamos os parentes e familiares dos que foram presos políticos, e que hoje formam a comissão permanente pelos mortos e desaparecidos da ditadura militar –, que eles, na redemocratização, negociaram essa anistia para os dois lados porque tinham muita pressa em que fossem soltos os últimos presos políticos que ainda estavam em poder de agentes do Estado”, observou.

 

Para a psicanalista, é compreensível que na angústia, com medo até que na redemocratização houvesse uma ameaça de julgamento dos agentes do Estado, se torturasse, matasse ou se fizesse desaparecer durante o processo de transição os últimos presos políticos, como vendetta ou retaliação.

 

Ela também assinalou a contribuição da forma como ocorreu a anistia para a criação de alguns mitos políticos que fundamentam o autoritarismo. “Quando vemos, nas manifestações de 2014, pedidos de intervenção militar, ainda que oriundos de alguma cabeça fraca, e constatamos que não há ao menos uma grita contra isso nas redes sociais, percebemos o tamanho do mal entendido de como se divulgou a ideia de que a ditadura é um mecanismo para se botar ordem numa sociedade conflagrada”.

 

Nesse sentido, entre os mitos “que fundamentam não só o autoritarismo, mas também a naturalização da desigualdade”, ela citou a ameaça de uma revolução social ao tempo do estado de exceção, considerando equivocado o movimento de luta armada nos anos 1970.

 

“No contexto do chamado ‘milagre econômico brasileiro’, a aprovação da ditadura era gigantesca, e jamais se conseguiria abalar aquele consenso das classes médias e de uma grande parte das classes trabalhadoras pegando em armas. Ao contrário, esses grupos se isolaram, se dividiram pelas disputas ideológicas da esquerda e fracassaram. Mas foi o suficiente para que esses movimentos, até hoje, sejam mal julgados e mal compreendidos por quem tem simpatia pelo autoritarismo e mesmo por quem não a tem, porque me parece que está impregnada na sociedade brasileira, desde a dominação cordial do coronel do interior ”, avaliou Maria Rita Kehl.

 

Ela explicou o termo “cordial” aplicado à instância política, tomado de empréstimo ao poeta santista Ribeiro Couto pelo historiador Sergio Buarque de Holanda: “o cordial é a dominação pelo coração, e o coração não é confiável politicamente”.

 

O último dos mitos que fundamentam o autoritarismo tratado pela psicanalista foi o da noção de que as terras indígenas têm que ser ocupadas para produzir economia. Ela lembrou que a ocupação da Amazônia tem produzido desertificação e um ciclo de secas cada vez maior. Também recordou a responsabilidade do Estado brasileiro pela mortandade de tribos por doenças de brancos, “situações em que as frentes da Funai eram obrigadas a fazer contatos com tribos isoladas sem levar vacinas ou remédios, causando com isso a dizimação de diversas populações, quando isso podia ser evitado”.

 

ES (texto e fotos)


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