Racismo é debatido em ciclo de palestras na EPM

Ciclo teve três encontros.

 

Nos dias 24, 27 e 29 de novembro, foi realizado na EPM o Ciclo de palestras sobre o racismo no Brasil, coordenado pelos juízes Camila de Jesus Mello Gonçalves e Sansão Ferreira Barreto. O ciclo teve início com uma exposição sobre o tema “Ações afirmativas e cotas raciais no Brasil”, ministrada pelo professor Thiago Amparo.

 

A abertura dos trabalhos foi feita pelo diretor da EPM, desembargador Antonio Carlos Villen, que destacou a importância da realização do debate na Escola e agradeceu a presença de todos, em especial dos palestrantes, e o empenho dos coordenadores e servidores.

 

A mesa de abertura também teve a participação da desembargadora Flora Maria Nesi Tossi Silva e do juiz Sansão Ferreira Barreto, que agradeceu a oportunidade de debater o tema, “tão importante para a nossa sociedade e para o desenvolvimento do País”.

 

Ao iniciar sua exposição, Thiago Amparo mencionou o chamado “racismo à brasileira”, que consiste em não se falar em racismo, embora ele esteja implícito nas condutas, ações, omissões e comentários da população. Ele observou que normalmente é lembrado que no Brasil não existiram leis segregacionistas como houve nos Estados Unidos da América e no regime do Apartheid da África do Sul, mas diversos autores falam sobre o “racismo institucional”, relacionado aos atos discriminatórios e práticas individuais ou institucionais de caráter circunstancial ou sistêmico, que produzem vantagens sociais para certos grupos, conforme definido pelo pesquisador Adilson José Moreira. “O racismo pode ser colocado dentro de instituições ou nos modos como as instituições trabalham e não necessariamente por meio de leis segregacionistas”, ensinou.

 

Em seguida, conceituou as ações afirmativas como medidas para alocar recursos escassos, mas lembrou que elas não se restringem ao sistema de cotas, existindo outros métodos, como a atribuição de pontuação ou de uma vantagem na classificação do candidato em concursos. Ele frisou que as ações afirmativas foram desenvolvidas ao longo de um processo de construção de movimentos sociais. E recordou a evolução legislativa, citando as leis 12.711/2012, que estabelece cotas raciais e de renda nas universidades federais, e 12.990/2014, que reserva 20% das vagas para negros em concursos públicos federais.

 

Thiago Amparo mencionou também ações que questionaram a constitucionalidade das cotas raciais em universidades públicas, como a ADPF 186, de abril de 2012, que questionou as cotas raciais de 20% na Universidade de Brasília, e a ADIN 3330, de maio de 2012, que questionou, entre outros pontos, a inclusão de aspectos de raça nas bolsas do Prouni para universidades privadas. E lembrou que as cotas foram declaradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

 

Questões raciais e sistemas de Justiça nacional e internacionacional

 

No dia 27, o ciclo teve continuidade com o tema “Questões raciais e sistemas de Justiça nacional e internacional”, com palestra da juíza federal do Rio de Janeiro Adriana Alves dos Santos Cruz. O evento teve a participação como debatedor do juiz Edinaldo Cesar Santos Junior, do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe.

 

Adriana Alves salientou a importância de se debater o racismo no Judiciário, ponderando que se trata de um problema que é fonte de grandes injustiças. “A questão das relações raciais no Brasil precisa de luz e de visibilidade e precisa sair da companhia da poeira que fica debaixo dos tapetes, porque somente enfrentando nossos problemas poderemos resolvê-los”, frisou.

 

Ela chamou a atenção para o “déficit democrático” relacionado à sub-representação de determinados grupos nos órgãos de Estado. “Não existe igualdade de oportunidades de acesso de todos os grupos da sociedade”, asseverou. E apresentou dados do Censo do Poder Judiciário de 2014, que revelaram que 84,2% dos magistrados do País são brancos, 15,6% são pretos e pardos e apenas 1,4% são pretos, embora 54% da população sejam pretos e pardos.

 

A expositora ressaltou também que o Mapa da violência de 2015 mostrou um aumento de 54% do número de homicídios de mulheres negras entre 2003 e 2013, enquanto que, no mesmo período, o número de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8%. Citou também dados do Atlas da violência de 2016, que demonstraram que o Brasil é responsável por mais de 10% dos homicídios no mundo, destacando que entre 2004 e 2014, houve um aumento de 18,2% do número de homicídios de pessoas pretas e pardas, sendo que, no mesmo período, o número de homicídios de pessoas brancas caiu 14,6%. Ela acrescentou que o estudo revelou que as chances de um indivíduo com até sete anos de estudo sofrer homicídio no Brasil são 15,9 vezes maiores do que as de alguém que ingressou no ensino superior. “O acesso ao nível superior para as pessoas pretas e pardas não é meramente uma questão de ascensão social; é uma diferença entre viver e morrer”, enfatizou.

 

Na sequência, Adriana Alves discorreu sobre os instrumentos legais disponíveis para punir comportamentos discriminatórios e para promover a igualdade. Ela observou inicialmente que foi adotada uma política de Estado eugenista no Brasil logo após a abolição, que se traduziu na legislação e na realidade da população, com reflexos até os dias de hoje.

 

A palestrante salientou que a Constituição Federal de 1988 incorporou o conceito de raça como um dado que não pode ser ignorado, especialmente ao estabelecer como um dos objetivos da República o combate ao preconceito racial e ao fixar o racismo como crime imprescritível. “A Constituição de 1988 incorporou o conceito de raça em uma concepção de combate à desigualdade, de se buscar a igualdade material e não formal”, frisou, esclarecendo que “raça” é uma construção social. “Em função disso se constrói uma relação hierarquizada entre os grupos e esse conceito pode ser utilizado para inferiorizar as pessoas, mas também haverá a incorporação desse conceito pela legislação”, acrescentou.

 

A seguir, falou sobre a legislação antirracista, mencionando a Lei 7.716/89, que criminaliza o preconceito racial; o artigo 140, paragrafo 3º, do Código Penal, que traz o tipo penal da injuria racial; a Lei 10.639/2003, que alterou as diretrizes e bases da educação nacional, incluindo no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira"; e a Lei 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial); bem como os normativos e as resoluções que implantaram as cotas nos concursos da magistratura e do Ministério Público e a Convenção internacional sobre eliminação de todas as formas de discriminação racial. “Essas medidas são fruto de muita construção da sociedade e nós, como membros da magistratura, não podemos ignorar que o STF já afirmou que a legislação que promove igualdade está de acordo com a Constituição Federal”, frisou.

 

Por fim, apresentou duas ferramentas conceituais: o racismo institucional e a interseccionalidade. Ela definiu o primeiro como uma manifestação de racismo mais velada e muitas vezes imperceptível, que ocorre quando as instituições são desenhadas para funcionarem de uma determinada maneira e privilegiarem um determinado grupo, ainda que as pessoas individualmente não sejam ou não se considerem racistas. “Precisamos enxergar isso, porque essa realidade é complexa e muitas vezes opera de maneira sutil”, salientou.

 

Em relação à interseccionalidade, explicou que o conceito foi criado pela professora de Direito norte-americana Kimberlé Crenshaw (1959-) para descrever situações em que múltiplas opressões recaem sobre determinado grupo, como gênero, raça e classe social.

 

Democracia racial

 

No último dia do ciclo, foi discutido o tema “Democracia racial na contemporaneidade”, tendo como expositor o advogado e professor Silvio Luiz de Almeida, presidente do Instituto Luiz Gama, e como debatedora a psicóloga Mafoane Odara, coordenadora da área de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres do Instituto Avon.

 

Silvio Almeida afirmou que a questão racial tem um papel estrutural e uma relação direta com os problemas vivenciados no Brasil, de ordem econômica, institucional e moral. Ele ponderou que as teorias sobre a democracia racial são tratadas de maneira quase folclórica no País, mas possuem um elevado nível de sofisticação. “Se quisermos entender o problema racial no Brasil, temos que entender como se deu a construção do discurso de democracia racial”, frisou.

 

Ele lembrou que no século XIX, na República Velha, o racismo científico foi a maneira para explicar as diferenças raciais, econômicas, e de participação política no Brasil. “A estratégia de integração nacional logo após a abolição foi dizer que os negros eram biologicamente inferiores e não eram talhados, portanto, para qualquer posição de liderança ou protagonismo”, ensinou. E acrescentou que o racismo científico foi institucionalizado por meio das faculdades de Direito e de Medicina e museus de História Natural. “O determinismo biológico foi institucionalizado no Brasil como forma de justificar e naturalizar as desigualdades sociais”, complementou.

 

O palestrante observou que no início do século XX foi abandonada essa visão, em decorrência dos problemas financeiros, salientando que as crises econômicas sempre geram mudanças no processo de racialização e de intervenção do Estado em relação ao controle social. “O racismo científico foi abandonado por um discurso não mais de eliminação da população negra, mas de conformação com a sua existência e de necessidade de controlá-la”, afirmou.

 

Ele explanou que a base material e econômica que sustenta o discurso da democracia racial é a necessidade de integrar o Brasil ao circuito do capitalismo mundial. Entretanto, lembrou que o processo de industrialização e de modernização exige um mínimo de igualdade formal. “Para isso, é necessário estabelecer uma relação entre o rústico, que é aquilo que a tradição nos legou, e a modernidade do capitalismo, o que só é possível preservando-se aquilo que no Brasil é essencial e nos diferencia de outros países: uma dinâmica em que existe conflito, mas na qual o conflito abrange os métodos para solucioná-lo, não impostos pelo poder estatal”, explicou, citando ideias do escritor Gilberto Freyre (1900-1987). “Existe tensão racial no Brasil, mas ela traz o germe de um bom convívio entre as raças, porque existe uma relação de complementaridade entre os brancos e os negros. Desde o latifúndio, há conflitos, mas também há afeto e compreensão, diferentemente do ódio racial que se estabeleceu no Sul dos Estados Unidos”, frisou.

 

Nesse contexto, conceituou o discurso da democracia racial como um processo de estruturação da realidade social brasileira, que leva a uma naturalização da desigualdade. E apontou três componentes: o econômico, “que ajuda na manutenção de certos privilégios, que são naturalizados”; o político-institucional, relacionado à ideia de que a maneira como as instituições políticas funcionam ajuda a normalizar a reprodução da desigualdade racial; e a ideologia, “não como maneira de ocultação do real, mas de introjeção do imaginário socialmente construído”.

 

O evento foi encerrado com uma apresentação do grupo artístico Núcleo Bartolomeu de depoimento.

 

Participaram também do ciclo o desembargador Paulo Magalhães da Costa Coelho, conselheiro da EPM; e os juízes Egberto de Almeida Penido e Teresa Cristina Cabral Santana Rodrigues dos Santos, entre outros profissionais e estudantes.

 

MA (texto) / MA e EA (fotos)


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