Violência de gênero e suas consequências legais são debatidas no curso ‘Filhos da violência no Sistema de Justiça’
Exposição foi proferida por Alice Bianchini.
O tema “Os filhos da violência de gênero” foi debatido no último dia 20 no curso Filhos da violência no Sistema de Justiça, promovido pela EPM em parceria com a Escola da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (Edepe) e com a Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (ESMP). A exposição foi proferida pela professora Alice Bianchini e teve a participação da juíza Teresa Cristina Cabral Santana, coordenadora do curso.
Alice Bianchini iniciou a exposição enfatizando a importância do tema da violência de gênero e ressaltou que, embora a sociedade não tolere a violência contra a criança, ainda é muito tolerante em relação à violência contra a mulher. Ela salientou que isso é um contrassenso, pois a violência contra a mulher também é uma violência contra o filho. E lembrou que a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) não é destinada apenas à mulher e ao agressor, mas também aos filhos e demais familiares e às testemunhas.
A palestrante recordou que a lei foi elaborada por meio de um consórcio de organizações não governamentais e que foram feitas várias audiências públicas, contemplando assim o entendimento que a sociedade tinha em relação à violência contra a mulher. Ela lembrou ainda que o movimento de elaboração da lei ocorreu depois que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil, em 2002, por negligência e omissão no caso da biofarmacêutica Maria da Penha Fernandes e recomendou medidas para combater a tolerância estatal à violência doméstica contra a mulher no País.
A professora discorreu acerca da efetividade da Lei Maria da Penha e dos principais desafios a serem enfrentados. Ela esclareceu que desde 1934 as constituições federais já estipulavam a igualdade sem privilégios ou distinções por motivo de sexo, mas isso só foi acatado pela legislação infraconstitucional após a Constituição de 1988. Alice Bianchini identificou dois grupos de argumentação que motivaram esse lapso: um grupo que silenciou, como se não existisse essa contradição entre a constituição e a lei infraconstitucional, e outro que enfrentou o tema, em geral com argumentações machistas, para dizer que há diferenças e que elas deveriam existir.
A palestrante ressaltou que a Constituição de 1988 foi um paradigma, mas a cultura continuou como estava antes e isso respalda na efetividade da Lei Maria da Penha, “pois ainda não conseguimos alterar essa cultura”. Ela salientou que apesar de a lei ser considerada uma das três mais avançadas do mundo na proteção aos direitos da mulher, o Brasil ainda é o quinto país que mais mata mulheres. E explicou que isso ocorre devido ao aspecto cultural de como se reage à violência contra a mulher.
Ela destacou resultado de pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), de 2013, que revelou que 65,3% da população brasileira ainda acreditava que mulher que é agredida e continua com o parceiro gosta de apanhar. E chamou a atenção para a realidade dessas mulheres, de acordo com pesquisa do DataSenado, de 2017, que apontou que 72% das vítimas de violência têm medo do agressor em razão de ameaças às suas vidas e às dos filhos; 33% preocupam-se com a criação dos filhos; 32% dependem financeiramente do agressor; 30% entende que não existe punição; 23% têm vergonha da agressão; 16% acreditam que seria a última vez; 16% não conhecem seus direitos. “Isso é o que faz com que a mulher continue na violência”, declarou, frisando que o que possibilita que a mulher saia do ciclo de violência é a capacitação, a sensibilização, o acolhimento e a escuta especializada.
Desigualdade de gênero e violência de gênero
A palestrante mencionou estudo realizado em 24 países pelo instituto IPSOS, em 2017, que demonstrou que 41% das brasileiras têm medo de lutar por seus direitos, 45% não sentem que têm plena igualdade com os homens e não se sentem livres para realizar seus sonhos e aspirações e que 19% dos homens brasileiros e 14% das mulheres ainda acreditam na inferioridade feminina. E citou estudo da ONG britânica Plan International, também de 2017, que entrevistou 1.948 garotas, revelando que 40% das meninas brasileiras de 6 a 14 anos de idade não se acham tão inteligentes quanto os meninos e desistem de atividades.
Alice Bianchini ressaltou que a análise de dados revela uma lógica perversa: quanto mais desigualdade de gênero existe em uma sociedade, maior é a incidência de violência de gênero. "Ou seja, para que aconteça menos violência de gênero é necessário diminuir a desigualdade de gênero", frisou. Ela revelou que o Brasil vem piorando de posição nas pesquisas sobre igualdade de gênero, ocupando a posição 94, segundo dados de 2017. E alertou para pesquisa do Fórum Econômico Mundial que apontou que, no atual ritmo de redução da desigualdade no Brasil, a equidade seria alcançada somente em 95 anos. Ela discorreu também acerca da diferença de salário entre os gêneros, salientando que em geral a mulher recebe 50% a menos que os homens e que, no mesmo cargo e função, recebe 25% a menos.
Sobre o papel da mídia, advertiu que a forma como a mulher é representada na mídia brasileira deverá atrasar em 40 anos a conquista da equidade de gênero, segundo dados do Monitoramento Global da Mídia de 2014. Nesse sentido, recordou o elevado número de propagandas que foram objetos de representação perante o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), lembrando que a cerveja é um dos itens que mais demanda reclamações perante o Conar.
Ela salientou que o Festival Internacional de Publicidade de Cannes, no quesito propaganda, passou a fazer recomendações aos jurados para não votarem em propagandas sexistas ou racistas. E destacou a técnica recomendada aos jurados para dirimirem dúvidas: colocar no lugar da mulher que aparece na propaganda a mãe, filha, tia ou amiga e tentar imaginar se isso irá incomodá-lo de alguma maneira. “Se isso ocorrer, é porque a propaganda é sexista ou corre o risco de ser”, ponderou.
Receptividade da Lei Maria da Penha
Em relação à receptividade à Lei Maria da Penha, a expositora identificou três grupos. No primeiro grupo, daqueles que ainda resistem à lei, está a sociedade em geral, incluindo os profissionais do Direito, delegados e policiais que opõem resistências à sua aplicação. O segundo grupo abrange aquele que não resistem, mas não compreenderam corretamente a lei, não entendendo que se trata de uma medida especial de caráter temporário para extirpar o fenômeno da violência contra a mulher, enquanto não houver a mudança de cultura. Esses não entendem que a lei trabalha com categorias que não são as do Direito Penal tradicional e utiliza outras formas de interpretar a própria lei. E há o grupo dos que apoiam e compreendem a lei, entre os quais a palestrante destacou o Supremo Tribunal Federal.
A professora discorreu ainda sobre levantamento que fez, durante três anos, de decisões criminais dos tribunais de Justiça e dos tribunais superiores, no qual catalogou mais de cem questões controvertidas sobre a Lei Maria da Penha, entre elas 12 relacionadas a medidas protetivas de urgência. Em um deles, que questionava se o juiz, mesmo contra a vontade da vítima, pode decretar a medida protetiva de urgência, as respostas variaram de um extremo ao outro. “Muitas questões dizem respeito à própria competência e só essa discussão pode levar meses ou anos para daí o processo começar a andar”, ressaltou. Ela questionou como uma lei considerada uma das mais avançadas pode ter tantas complexidades jurídicas atrapalhando a sua aplicabilidade. E ponderou que, por esse motivo, as próprias mulheres não têm segurança na aplicação da lei.
Alice Bianchini apresentou diversas questões para serem trabalhadas, entre elas a dificuldade de a mulher lutar pelos seus direitos e pelos direitos dos filhos em situação de violência doméstica; a falta de sensibilidade de autoridades a essa dificuldade; a divisão que existe entre os problemas de violência nas varas criminais (ou nas varas de violência doméstica e familiar – que ainda são poucas no Brasil) e os problemas nas varas de família com a falta de comunicação entre essas duas esferas, o que tem trazido graves problemas para os filhos.
Ela também citou diversos casos de feminicídio, lembrando que a violência contra a mulher acontece tanto nas famílias menos favorecidas como nas mais abastadas. E citou dados de uma pesquisa realizada pela Secretaria de Estado da Segurança do Ministério do Interior da Espanha, que revelou que 30% dos autores dos feminicídios estudados eram instáveis emocionalmente, 20% sociopatas, 45% ocasionais e 5% psicopatas.
Efeitos da violência familiar nos filhos
A professora asseverou que quem bate na mulher machuca a família inteira. Ela explicou que nessa situação as mães vivem sob uma condição de estresse continuado, que afeta negativamente o apoio emocional que oferecem aos filhos e a supervisão que exercem sobre eles, podendo alcançar o grau de abando emocional e físico, além do próprio trauma gerado na criança, com as consequências presentes e futuras de terem presenciado tais atos e atitudes. E salientou que os efeitos sobre as crianças são muito nefastos, porque a violência contra a mãe é sempre também contra os filhos. “Um bom pai também é um bom marido”, declarou.
Ela discorreu ainda a respeito das teorias sobre os efeitos da violência familiar nos filhos menores de idade: Teoria da aprendizagem social, com introjeção e reprodução da violência; Teoria do desamparo aprendido, causa pela qual muitas mulheres maltratadas não conseguem reagir à violência; e Teoria sistêmica, que explica que a violência contra a mãe afeta os filhos por prejudicar consideravelmente a sua função parental, porque a agressão e hostilidade expressada contra a mulher geralmente também é dirigida contra os filhos e pela inconsistência na educação dos filhos.
Ela esclareceu que a criança e o adolescente, vítimas ou testemunhas de violência têm direito a pleitear, por meio de seu representante legal, medidas protetivas contra o autor da violência, conforme artigo 6º da Lei 13.431/2017, que entrou em vigor no último mês de abril, o que ainda tem sido pouco utilizado.
Por fim, Alice Bianchini explicou que feminismo é o movimento que busca igualdade de gênero, mas notou que no Brasil há confusão do conceito de feminismo com o femismo, que é o inverso do machismo. Ela sustentou que o conceito de feminismo precisa recuperar o sentido de movimento que busca a igualdade entre homens e mulheres. “Esse conceito foi perdido e não foi por acaso. Foi proposital, porque houve um movimento que buscou desestabilizar, desacreditar, desestimular, atribuindo tudo de negativo ao feminismo, quando não é nada disso”, concluiu.
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