Impacto das novas tecnologias no acesso à Justiça é debatido em palestra da EPM

Rebecca Sandefur foi a expositora.

 

A EPM promoveu no último dia 16 a palestra Acesso à Justiça e tecnologia (Access to Justice and technology), com exposição da professora Rebecca Sandefur, da Universidade de Illinois (EUA), e participação como debatedora da promotora de Justiça e professora Susana Henriques da Costa. A palestra foi realizada no Gade 9 de Julho, com mesa de trabalhos composta também pelos desembargadores Francisco Eduardo Loureiro, diretor da Escola, e Carlos Alberto de Salles, coordenador do evento.

 

Em sua exposição Rebecca Sandefur falou sobre a tecnologia legal e o desenvolvimento de softwares para serem executados especialmente pelas pessoas leigas em assuntos jurídicos e a maneira como isso propicia o acesso à Justiça. Ela observou que os problemas de Justiça mais comuns são os mesmos em praticamente todos os lugares, no entanto, a maioria dos problemas relacionados a direitos enfrentados pelas pessoas não vêm para o sistema de Justiça.

 

A palestrante citou pesquisas que realizou em cidades norte-americanas nas quais as pessoas declaram que apenas 14% a 24% dos seus problemas de Justiça são levados ao advogado ou ao Judiciário. Contudo, ponderou que esse número é muito menor considerando que 91% das pessoas não reconhecem que seus problemas são legais. Normalmente atribuem ao azar, aos planos de Deus ou simplesmente a coisas que acontecem e se resignam ou esperam que outras pessoas lhes ajudem de alguma maneira.

 

Ela ressaltou que é precisamente nesse lapso que as ferramentas tecnológicas mais podem ajudar. Entretanto, informou que levantamentos apontam que apenas 7% das ferramentas existentes (nos EUA) fazem a análise dos problemas concretos para diagnosticarem se se trata de um problema legal. A professora comparou à ponta do iceberg a parte dos problemas legais que ingressam no sistema de Justiça e observou que, embora haja um volume fabuloso de processos nos tribunais e nas defensorias públicas, há um grande desequilíbrio pelo fato de o mundo jurídico olhar o que precisa ser feito “por cima da água”, quando, na realidade, o grande problema está acontecendo “embaixo”.

 

Rebecca Sandefur observou que há temor de implementar novas tecnologias no meio legal por parte dos advogados e juízes. Ela lembrou que em um escritório de advocacia muito do que antes era feita à mão está automatizada e os advogados jovens temem perder o emprego. “E já estão perdendo, pois a natureza do trabalho está mudando mesmo”, salientou. E acrescentou que há programas de computador que podem elaborar a decisão judicial. “Todos ficam entusiasmados com isso, mas há uma preocupação no mundo jurídico de que as pessoas serão substituídas por robôs. Hoje se fala em distribuir competências para programas de computadores”, observou. Ela mencionou o programa Robot lawyer mas lembrou que a habilidade de transformar tudo em algoritmos está bem longe. “O processamento de voz natural é bem difícil. É bem difícil um robô conseguir conversar com você da maneira como nós conversamos”, ressaltou.

 

A professora destacou como um dos problemas de acesso à Justiça nos Estados Unidos o reduzido número de advogados em relação à demanda. “Com o número de advogados que temos, não conseguimos atender pessoas que precisam de serviços legais, principalmente as de baixa renda e as das regiões rurais. E comunidades mais isoladas nem têm advogado. Então há o sonho de que a tecnologia permitirá serviços remotos para dar assistência às pessoas que estão isoladas do sistema legal”, ressaltou.

 

Ela destacou que outra razão para o entusiasmo com as ferramentas legais é que talvez elas possam empoderar as pessoas para que passem a vivenciar a cidadania da maneira que não podem fazer hoje em dia. “Se forem desenvolvidas as ferramentas certas, as pessoas poderão entender quais são os seus interesses e direitos e, uma vez que isso aconteça, poderão passar a agir de maneira mais adequada. Essa é a esperança do ponto de vista do público”, explicou.

 

Rebecca Sandefur esclareceu que a tecnologia legal permite que alguém que não é advogado e tem um problema possa aprender por si mesmo, entender seu problema judicial e fazer algo a respeito. Ela explicou que essa tecnologia pode ajudar individualmente, como numa ação de divórcio, e coletivamente, como permitir uma comunidade reportar violência policial.

 

A palestrante relatou que um levantamento identificou 320 tecnologias desenhadas para a jurisdição norte-americana para que alguém que não seja advogado entenda um problema de Justiça. Ela informou que há enorme variação nesses aplicativos e explicou sobre o funcionamento de alguns deles. Observou que alguns apenas prestam informações, mas há outros que relacionam os advogados mais indicados para tratar do caso ou prestam os mais variados tipos de serviços, como redigir documentos e dar entrada em procedimentos relacionados a questões como locação, seguro, pedido de cidadania, ações de divórcio, relações de consumo, multas de trânsito, responsabilidade civil, relato de abuso contra pessoas vulneráveis e diversas outras em várias áreas, inclusive a criminal.

 

Ela destacou um aplicativo que trata questões de habitabilidade contra o locador. O usuário preenche um questionário e o programa efetua o direcionamento com novas perguntas. Se a pessoa responder que existe mofo no banheiro, por exemplo, o programa pede que vá lá e tire uma foto e já anexa. Ao final, o programa escreve uma carta consistente, incluindo os termos legais, e envia de forma registrada para o locador, com as fotos e todas as provas anexadas. E o resultado é que normalmente tudo é resolvido, sem passar pelos tribunais.

 

A professora destacou também aplicativos nos quais a parte convida a outra a resolver o problema on line, fora dos tribunais. E relatou que o Estado de Connecticut está considerando fazer todas as pequenas causas passarem por um programa desses antes de serem encaminhadas para o juiz. Sobre esse aspecto, foi citado por um dos presentes, representante de conhecida plataforma de e-commerce, o programa de conciliação disponibilizado pela plataforma aos usuários, vencedor do prêmio Conciliar é legal, promovido pelo CNJ, por conciliar e evitar a judicialização de conflitos.

 

Rebecca Sandefur citou ainda dificuldades para resolver o problema de acesso à Justiça com a tecnologia legal, tais como dificuldades de acesso à internet em diversas localidades e na área rural, além de questões de privacidade, analfabetismo (ela esclareceu que um em cada seis americanos têm analfabetismo funcional), de modo que a tecnologia não vai necessariamente chegar àqueles que mais precisam. Ela salientou que é importante pesquisar como estão as coisas e como melhorá-las. Lembrou que em 1990, as pessoas queriam ler artigos na internet, mas hoje não. Por isso, há criação de design centrado em consumidores, além da necessidade de investimentos na criação e manutenção de programas e softwares.

 

Ela também relatou algumas dificuldades na implantação de sistemas, entre elas a necessidade de os municípios (nas cortes locais), aceitarem o mesmo tipo de formulário. Muitos não aceitam, mas é altamente contraproducente se tiver de customizar para todos os 3.200 municípios. Também pode haver variação na legislação segundo a região ou localidade. Outra dificuldade relatada é a de estabelecer o que é privativo da profissão do advogado e o que não é.

 

A expositora falou sobre a importância de se fazer um levantamento para entender as necessidades de determinada região e desenvolver aplicativos e softwares mais prestativos e eficientes, sobretudo para a população de baixa renda e comunidades com dificuldades de acesso, pois, no geral, as soluções que a maioria das pessoas precisa é diferente das oferecidas. E salientou que os levantamentos são baratos: “só é preciso ter alguns alunos de graduação e um pouquinho de tempo”.

 

Por fim, frisou que há uma enorme oportunidade na tecnologia para tirar a sobrecarga dos tribunais. “O problema não é tecnológico, é muito mais conceitual e social. A partir desses levantamentos podemos entender muito bem como esses problemas fundamentais funcionam para permitir que as ferramentas sejam implementadas”, concluiu.

 

Susana Costa lembrou que no Brasil há excesso de cursos jurídicos e de bacharéis em Direito e muitos não conseguem se tornar advogados porque não passam no exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Ela observou que no Brasil a tecnologia, num primeiro momento, serviu para gerar demandas em massa. Enquanto uma parcela da população tem acesso à Justiça de forma recorrente e em algumas situações de forma abusiva, grande parte da população tem dificuldades de acesso à Justiça. 

 

O juiz Fernando Antonio Tasso, coordenador da área de Tecnologia da Informação e Direito Digital da EPM, mencionou a atuação da Justiça Restaurativa, que busca trazer para o consenso a solução dos conflitos, e a educação em direitos promovida pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público nas comunidades. Ele destacou duas iniciativas tecnológicas: a plataforma consumidor.gov.br, da Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça, para resolver disputas eletrônicas; e o SOS Mulher, desenvolvido pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, em parceria com o TJSP, o Ministério Público e a Defensoria Pública, que se propõe a reforçar as medidas protetivas a mulheres expostas à violência. Citou também a aplicação da inteligência artificial pelo TJSP nas execuções fiscais estaduais, o que possibilitou  uma redução expressiva do acervo processual, com o uso de um robô que realiza as penhoras on line.

 

Sobre a questão da unificação dos sistemas, Fernando Tasso observou que o CNJ tem oscilado entre duas linhas: a criação de um sistema único ou a implementação de sistemas próprios nos tribunais, interoperáveis. Ele explicou que o sistema do TJSP é aderente a um modelo nacional de interoperabilidade, com integração com os Correios, com o Ministério Público, a Defensoria pública e outros tribunais do País. E lembrou que a revolução industrial está em sua terceira fase, marcada pela automação, iniciada em 1970. "Ainda não entramos na quarta revolução industrial, com o uso massivo de inteligência artificial e de outras tecnologias aliadas. O tema é absolutamente pertinente e urgente”, frisou.

 

RF (texto e fotos)


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