Constituições pacifistas e eficácia do Direito frente aos conflitos internacionais são debatidas na EPM
Palestram Mario Losano e Tércio Sampaio Ferraz Junior.
A EPM realizou ontem (15) o curso Constituição e paz, com exposições dos juristas Mario Giuseppe Losano, professor emérito de Filosofia Jurídica e Informática Jurídica na Università degli Studi del Piemonte Orientale (Itália) e integrante de diversas instituições acadêmicas, e Tércio Sampaio Ferraz Junior, professor aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e docente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. O curso teve 414 matriculados nas modalidades presencial e a distância, abrangendo 97 comarcas.
Na abertura, o diretor da EPM, desembargador Gilson Delgado Miranda, agradeceu a participação de todos, em especial dos palestrantes, e o trabalho do coordenador, juiz Alexandre de Mello Guerra. Ele destacou o objetivo do evento de proporcionar a reflexão acadêmica com renomados juristas e a atuação da Escola no aprimoramento e na difusão do conhecimento para magistrados, estudantes e demais profissionais da comunidade jurídica, convidando todos a participarem das atividades da EPM.
O juiz Alexandre de Mello Guerra ressaltou a oportunidade do encontro acadêmico com expoentes da teoria geral do Direito e da Filosofia do Direito, lembrando que ambos são referenciais teóricos para muitos magistrados e profissionais do Direito.
Iniciando as exposições, Mário Losano discorreu sobre o contexto da inclusão de artigos pacifistas nas constituições do pós-guerra do Japão (1947), Itália (1948) e Alemanha (1949), países que compunham o Eixo durante a Segunda Guerra Mundial, descrito em sua recente obra As três constituições pacifistas: a rejeição à guerra nas constituições do Japão, da Itália e da Alemanha. Ele recordou que os artigos pacifistas ou de renúncia ao direito de declarar a guerra foram incluídos por exigência dos países aliados e salientou que sua formulação não foi genérica, mas refletiu a história bélica e as especificidades de cada país.
O professor lembrou que os artigos foram elaborados com base nas técnicas militares da Segunda Guerra, que mudaram totalmente após o advento dos mísseis e drones. Observou que, com o emprego dos drones, não há uma implicação direta de um Estado, como existia com o uso da aviação militar, em que a responsabilidade do Estado agressor ficava clara ao derrubar outro avião, porque havia piloto e tripulação. Acrescentou que o Direito Bélico Internacional também passou por uma mudança radical, porque originariamente a guerra ficava clara, com fronteiras definidas, uniformes diferenciados para cada exército e havia regras internacionais para evitar danos à população civil e limitar a luta entre os dois exércitos beligerantes.
Nesse contexto, ressaltou que se tornou cada vez mais difícil a aplicabilidade das constituições que proíbem a guerra, porque ela passou a ter uma estrutura híbrida, em que participam estados nacionais, vinculados aos tratados subscritos, mas também atuam organizações militares não diretamente vinculadas a um Estado, com os grupos terroristas e os mercenários, que não respeitam tratados internacionais e praticam atos contrários ao Direito Internacional. Além disso, lembrou que os estados agressores muitas vezes não reconhecem a jurisdição internacional e, como as organizações internacionais não têm uma força própria para impor suas decisões, eventuais condenações não têm efeito prático. Falou também sobre as consequências geopolíticas e econômicas da invasão da Ucrânia pela Rússia e da guerra de Israel na Faixa de Gaza, além da crescente tensão entre a China e Taiwan, no sudeste asiático, ponderando que esses conflitos demonstram o embate do Direito contra a força bruta e o choque dos projetos teóricos de paz mundial e do desejo de uma “paz perpétua” internacional com a realidade.
As transformações da guerra ao longo do tempo
Na sequência, Tércio Sampaio Ferraz Junior fez considerações sobre a obra de Mario Losano sobre as constituições pacifistas, enfocando o tema da guerra. Ele recordou a origem da palavra guerra, relacionada a concepções de confusão, violência, agressão e força, mas também de retaliação, no sentido de reparação, e revanche. Lembrou também a exaltação do herói guerreiro na antiguidade, com ações glorificadas pela comunidade, em que a guerra era vista até com propósito construtivo, ligado à preservação da espécie ou do grupo, ou como manifestação instintiva da sobrevivência, produzindo as “virtudes guerreiras”, até chegar à celebração ainda mais efusiva da guerra na Idade Média europeia.
O expositor discorreu sobre o contexto político e as concepções de soberania e de poder entre os anos 1930 e 1940 na Alemanha nazista, identificada com o termo “realismo heroico”, mencionando “a elite guerreira, as lutas interna e externa e a aniquilação, sem necessariamente odiar o inimigo, mas também sem sofrer, unicamente guiado pela força da compreensão fria das leis, da vida e dos interesses do próprio povo, com a certeza de que o compromisso com aqueles objetivos estava em harmonia com a natureza e com a vida”. Citou ainda o sentido estético da guerra para o nazismo, seus traços lúdicos e a “volúpia de Hitler em construir e destruir”, observada por Elias Canetti (1905-1994). Recordou também as concepções presentes no Japão nesse período, em especial a divinização do imperador e do próprio país, e o adágio romano “si vis pacem, para bellum” (se quer paz, prepare-se para a guerra), relacionado à noção de paz por meio da força e ao direito à guerra como expressão da soberania.
Ele ressaltou que a transformação radical da guerra, conforme apontado por Mario Losano, reduziu progressivamente a eficácia dos artigos pacifistas. Mencionou o conceito de “ameaça híbrida”, utilizado pela Otan, que designa a ameaça imposta por um adversário real ou potencial, que inclui Estados, grupos terroristas e outras unidades que tenham capacidade real ou provável para empregar meios bélicos convencionais e não convencionais, de maneira combinada. “Mudou a relação entre guerra e forças armadas, pois todos os meios se tornam armas”, frisou, lembrando que, embora ainda predomine o poderio bélico, também são usados outros instrumentos, como sanções econômicas, protestos populares e reações da mídia, e há uma diversidade de atores além das forças armadas, que incluem forças não convencionais, a população local, milícias militares, guerrilhas urbanas e o terrorismo como uma verdadeira instituição política, uma atividade semiestatal”, afirmou.
O professor acrescentou que a relação entre guerra e paz deixou de ser alternativa (guerra ou paz) e passou a ser “progressiva regressiva” (vai e volta). “De um lado, temos uma paz relativa e, de outro lado, uma guerra intermitente, que passa por uma zona intermediária de crise permanente, conforme níveis de intensidade da violência utilizada”, explicou, observando que, diante disso, não é possível dizer claramente quando ela começa, porque não há uma declaração de guerra. “Os instrumentos jurídicos que pressupõem a existência da guerra acabam entrando em disfunção e isso afeta o contexto constitucional, quando prevê o jus ad bellum (direito à guerra) ou a sua renúncia”, asseverou, lembrando que as constituições definem não apenas as condições para se declarar uma guerra, mas também o que sucede internamente quando a ela é declarada.
Por fim, Tércio Sampaio Ferraz Junior destacou a menção de Mario Losano ao renascimento da direita, citando em seu livro o alerta de Umberto Eco (1932-2016) a estudantes da Universidade de Columbia, em 1995, quando lembrou que o fascismo de Mussolini e o nazismo de Hitler não podem voltar, mas podem se manifestar em novas formas autocráticas. E concluiu parafraseando a frase de Erasmo de Roterdã (1466-1536) “dulce bellum inexpertis” (a guerra é doce para quem não a conhece): “talvez pudéssemos dizer algo como ‘dulce autocratismus inexpertis’, o autocratismo é doce para quem não sabe o que é”.
Participaram também do evento o desembargador Luis Francisco Aguilar Cortez, coordenador de Comunicação e Divulgação e ex-diretor da EPM; o presidente do Instituto Norberto Bobbio (INB), Celso de Souza Azzi; o diretor-executivo do INB, César Mortari Barreira; e o professor Antonio Carlos Morato, entre outros magistrados, servidores e outros profissionais.
MA (texto) / MB (fotos)