JOSÉ WILSON GONÇALVES [1] – Juiz de Direito
Execução ou cumprimento de decisão – medidas concretamente aptas à localização ou recuperação de ativos visando à realização do crédito – uma exigência constitucional
Dispõe o art. 139, IV do CPC (trata-se do poder/dever geral de efetivação) que ao juiz incumbe: “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”. Por sua parte, a Constituição exige, insistentemente (princípio da efetividade; princípio da eficiência; princípio da razoável duração do processo, compreendida a fase de cumprimento das decisões; princípio da técnica concretamente adequada), que sejam praticados atos executivos aptos à realização do crédito - não apenas, pois, para figuração no processo de execução. A propósito, Constituição, arts. 37 caput e 5º, XXXV, LIV e LXXVIII; CPC, arts. 1º 4º e 8º (tratando-se de tutela provisória – antecipada, incluindo a da evidência, ou cautelar -, arts. 297 e 301).
Nessa toada, de partida devem ser praticados atos que sejam aptos à realização do crédito, mas que, ao mesmo tempo, sejam menos onerosos ao devedor (princípio da economicidade). Por isso mesmo, o art. 805 do CPC (correspondente ao art. 620 do CPC revogado) preceitua: “Quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado”. Ademais, o parágrafo único dispõe que “Ao executado que alegar ser a medida executiva mais gravosa incumbe indicar outros meios mais eficazes e menos onerosos, sob pena de manutenção dos atos executivos já determinados”.
Veja que esse dispositivo infraconstitucional, em harmonia com a Constituição, deixa claro que, havendo vários meios aptos à realização do crédito (havendo, ao menos, mais de um meio), o juiz mandará que se observe o meio menos gravoso ao devedor. Dito de outro modo, se não houver mais de um meio (ou, pior, se não houver um meio sequer conhecido), o juiz deverá determinar providências visando construir concretamente condição à realização do crédito, porque essa situação, de per si, gera inconstitucionalidade (por configurar, na prática, óbice ao acesso à justiça). Trata-se, aí, da inconstitucionalidade a posteriori (o que a priori é constitucional, a posteriori pode não sê-lo, mas antes, pode ser inconstitucional).
Sob a perspectiva do credor, impedido pelo Estado de Direito de agir com as próprias forças na finalidade de receber o devido, o Estado tem o dever de pôr em prática medidas que tenham tal aptidão concreta, ainda que, por outro lado, gere ao devedor limitações severas, máxime porque a dignidade do credor igualmente deve ser resguardada e promovida, conforme, aliás, dispõe o art. 8º do CPC (que não se reduz, evidentemente, ao devedor).
Esse dispositivo, além disso, determina (em reforço pedagógico) que sejam observadas, no resguardo e na promoção da dignidade, a proporcionalidade, a razoabilidade e a eficiência (consta, ainda, desse preceito, expressamente, a legalidade e a publicidade). Seja como for, parece claro que, sob a perspectiva do credor, o juiz deve determinar a prática de atos que, pela regra da proporcionalidade (fala-se, aqui, em regra, em homenagem a Alexy), resguardem e promovam, equidosamente, a dignidade do devedor e, também, a do credor.
Por essa regra, compreendidos no princípio do justo processo constitucional e, igualmente, no princípio da economicidade, tomam-se em consideração três aspectos importantes: a necessidade concreta da medida gravosa; a adequação concreta dessa medida gravosa; a proporcionalidade concreta em sentido estrito. Pois bem. Se o credor, que, enfim, não pode atuar diretamente para fazer valer seu direito, depende inexoravelmente do serviço judicial adequado, inclusive temporalmente; se o devedor não coopera e, ademais, em que pese às medidas já adotadas, o estado de insatisfação persiste, pelo insucesso dessas medidas já adotadas; se esse estado de insatisfação, por conseguinte, implica estado indigno em desfavor do credor; abrem-se, consequentemente e indissociavelmente, as válvulas excepcionais para a limitação de direitos fundamentais do devedor, com a observância, por certo, da proporcionalidade (isto porque a limitação também sofre limitação).
Significa isto dizer que: diante do insucesso dos atos executivos já praticados, a limitação a direito fundamental do devedor se torna concretamente necessária e, pois, justificável; com isso, ficam autorizadas decisões e práticas que, se bem sucedidas, conduzam à realização do crédito; a operacionalização de tais medidas deve atentar a que se resguarde e se promova a dignidade do devedor (por exemplo: em caso de constrição de verba salarial, fazê-lo em porcentagem tal que não comprometa substancialmente a subsistência do devedor, admitindo-se, todavia, pela regra da proporcionalidade, certa dose de sacrifício) (proporcionalidade em sentido estrito ou limitação à limitação).
Portanto, esgotando-se os meios executivos ordinários sem que se consiga a realização do crédito e, sobretudo, sem que haja cooperação do devedor, devem (isto mesmo: devem, porque é dever do Estado, em contraponto ao direito do credor) ser empregadas concretamente medidas excepcionais, elegidas caso a caso, de acordo, enfim, com a justificativa concreta fundada na necessidade, na adequação e na proporcionalidade em sentido estrito, destinadas à consecução do correspectivo resultado prático.
Veja que, em boa hora, também em reforço pedagógico, o CPC estatui que “As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa” (art. 4º), referindo-se, pois, expressamente, a direito do credor quanto ao emprego de técnicas concretamente adequadas à satisfação de seu direito de crédito. Esse dispositivo, assim, amolda-se perfeitamente ao princípio da técnica concretamente adequada previsto, também expressamente, no art. 5º, LXXVIII da Constituição Federal, nos seguintes termos: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Ou seja, ao credor, quer em processo de execução fundada em título extrajudicial, quer em cumprimento de decisão judicial (decisão interlocutória ou sentença, provisória ou definitiva), a Constituição confere o direito (portanto, institui o dever do Estado-Judiciário) à adoção de técnicas concretamente adequadas à realização do crédito em tempo razoável, ainda que tal postura compreenda severo sacrifício ou limitação a direito fundamental do devedor, conquanto se deva atentar à limitação da limitação ou proporcionalidade em sentido estrito (também, em reforço, princípio da economicidade).
Admitem-se, por hipótese: a expedição de ofícios a órgãos de proteção ao crédito; a expedição de certidão para protesto cambial; a quebra de sigilo bancário visando ao acesso à movimentação bancária do devedor; a quebra de sigilo perante a Receita Federal, com o fito de apurar fontes de renda, bens, créditos e valores pertinentes à restituição de imposto; a expedição de ofício à Comissão de Valores Mobiliários, principalmente quando o devedor for pessoa jurídica; a expedição de ofício à respectiva agência reguladora, quando o devedor estiver sujeito à regulação; a expedição de ofícios à Bolsa de Valores; a constrição de créditos correspondentes a recebíveis perante administradoras de cartão, quando o devedor utiliza cartão de crédito ou de débito no desempenho de sua atividade; a constrição de investimentos resgatáveis ou resgatados a título de previdência privada; a constrição do valor recebível (quando devedor procederá ao levantamento, em razão de demissão, por exemplo) ou recebido a título de FGTS; a constrição de verba indenizatória recebível ou recebida em rescisão de contrato de trabalho; a constrição de indenização recebível ou recebida a título de férias; a constrição de certa porcentagem dos vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios e dos honorários de profissionais liberais; a apreensão de passaporte e de habilitação para dirigir veículos (altamente discutível essa medida, mas tem sido adotada); a determinação à concessionária de energia elétrica para interromper o fornecimento de energia ao devedor (altamente discutível essa medida, mas já foi adotada pelo menos em um caso).
Na finalidade de sintonizar sistematicamente esse argumento principalmente com as vedações expressas constantes do CPC, art. 833, impende ter claro que esse dispositivo, por ser infraconstitucional, sofre a influência direta da Constituição, seja por sua força natural, enquanto Lei Maior, seja por previsão expressa do próprio CPC, já pelo seu art. 1º. Por isso mesmo, essa regra deve ser interpretada em harmonia, já de partida, com o princípio da economicidade (princípio, como se sabe, tem força normativa), competindo ao juiz, gradativamente, eleger o meio mais eficiente, porém menos oneroso para o devedor. À medida, todavia, que os meios menos onerosos não surtam resultado, caber-lhe-á eleger outros meios, ainda que esses outros meios impliquem a mitigação da regra proibitiva (que proíbe penhora sobre os bens aí indicados) prevista nesse art. 833. Significa isto dizer que essa regra, de início (a priori), não é inconstitucional, mas, concretamente (a posteriori), poderá ir de encontro à Constituição, por negar o acesso à justiça ao credor, embora haja meio apto, como, enfim, a penhora de certa porcentagem do salário, mesmo que não ultrapasse o limite estipulado de cinquenta salários mínimos (sobre o excedente a esse limite o código permite a penhora (§ 2º desse art. 833)).
Finalmente, algumas das medidas acima arroladas (não se cuida, evidentemente, de rol taxativo, mas sim exemplificativo e a título de sugestão) são fervorosamente duvidosas, razão por que caberá à jurisprudência, com o auxílio da doutrina, a indicação, ao longo do tempo, das medidas admitidas e das medidas não admitidas, bem como dos critérios objetivos que haverão de ser observados, na medida em que se está diante de regras jurídicas indeterminadas e de princípios normativos que, por excelência, são abertos. O essencial, entretanto, é a inquietação à impunidade civil, sobrelevando notar que, assim como a criminal, a impunidade civil é lesiva ao Estado de Direito, gerando, de per si, desequilíbrio social. Afinal, “Direito é a proporção real e pessoal de homem para homem que, conservada, conserva a sociedade e que, destruída, a destrói” (intuição de Dante (Dante Alighieri)).
[1] Professor de Teoria Geral do Processo e de Direito Processual Civil em Graduação e Pós-Graduação. Extensão em Direitos Fundamentais na Université Paris I (Panthéon-Sorbonne). Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP.